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O negócio da cultura. Por Sérgio de Carvalho e Marco Antônio Rodrigues

4 - 5 minutos de leituraModo Leitura

A idéia da Lei Rouanet parece boa, mas contém um movimento nefasto: verbas
públicas passam a ser regidas pela vontade privada


O DEBATE sobre a extinção da Lei Rouanet tem mobilizado setores importantes
da sociedade brasileira. Parte da classe artística, secretários de governo e
jornalistas têm assumido o ponto de vista "reformar, sim, acabar, nunca!".

De fato, a Lei Rouanet tem se mostrado uma força miraculosa em seus 17 anos
de vida. Basta dizer que mudou a paisagem da avenida Paulista, em São Paulo, ao
fazer surgir uma dezena de centros culturais. Curiosamente, instituições com
nomes de bancos, que elogiam o espírito abnegado da instituição financeira. Seu
nascimento está ligado à caneta do presidente Collor de Mello, em 1991. Tinha,
então, um nobre objetivo pré-iluminista: incentivar o mecenato. Só que a
aristocracia do passado contratava diversão com recursos do próprio bolso. Já a
Lei Rouanet está mais afinada com a cartilha liberal-conservadora de sua época:
"O Estado deve intervir o mínimo, a sociedade deve se autogerir, mas, para isso,
é preciso uma ajudazinha".

Todo o poder miraculoso da lei tem a ver com seu
mecanismo simples: ela autoriza que empresas direcionem valores que seriam pagos
como impostos para a produção cultural.

A idéia parece boa, mas contém um
movimento nefasto: verbas públicas passam a ser regidas pela vontade privada das
corporações, aquelas com lucro suficiente para se valer da renúncia fiscal e
investir na área.
Assim, os diretores de marketing dos conglomerados
adquirem mais poder de interferir na paisagem cultural do que o próprio ministro
da Cultura. E exercem tal poder segundo os critérios do marketing empresarial. O
estímulo aos agentes privados resulta em privatismo.

Diante da grandeza do
fundo social mobilizado desde 1991 (da ordem de R$ 1 bilhão só no ano de 2007),
é possível compreender a gritaria das últimas semanas. Por trás da defesa da Lei
Rouanet, há maciços interesses. Não só os das instituições patrocinadoras, que
aprenderam a produzir seus eventos culturais, mas os da arte de índole comercial
(feita para o agrado fácil), que ganha duas vezes -na produção e na circulação-,
na medida em que os ingressos seguem caríssimos.

Os maiores lucros, contudo,
ficam com os intermediários. De um lado, as empresas de comunicação, cujos
anúncios pagos constituem gigantesca fonte de renda, em média 30% dos
orçamentos. De outro, a casta dos "captadores de recursos", gente que embolsou
de 10% a 20% do bilhão do ano passado apenas por ter acesso ao cafezinho das
diretorias de empresas.

Como não há julgamento da relevância cultural na
atribuição dos certificados que habilitam o patrocínio, a lei miraculosa abriu
as portas dos nossos teatros às megaproduções internacionais, que ganham mais
aqui do que em seus países de origem.

O caso do Cirque du Soleil, com seus
R$ 9 milhões de dinheiro público e ingressos a R$ 200, está longe de ser
exceção. Ao contrário, é a norma de um sistema em que o Estado se exime de
julgar a qualidade em nome do ideal liberal de tratar os agentes desiguais como
iguais e "conter o aparelhamento político da cultura".
O pressuposto
filosófico do debate foi revelado pelo secretário da Cultura de São Paulo, João
Sayad: "Antigamente, numa era religiosa, o natural era a coisa criada por Deus.
Hoje, o natural é o que dá lucro".
Ao defender o subsídio contra o mercado
excludente, assume a impotência do Estado e endossa a idéia de naturalidade
(portanto, imutabilidade) do império do capital sobre qualquer coisa que já se
chamou "vida".
Uma reforma da Lei Rouanet incapaz de impedir o controle
privado de recursos públicos não faz sentido.
O Estado pode estimular a
generosidade humanista dos empresários com renúncia fiscal, mas não pode deixar
de regular a distribuição do fundo social com regras claras de concorrência
pública. Não parece óbvio? Então, por que não enfrentar o debate sobre valores
culturais? Por que contribuir para a universalização da lógica mercantil? O
"aparelhamento político da cultura" pode ser questionado em público. O desejo
unilateral de um gerente de marketing, não.

Num passado recente, o governo
Lula sacrificou seus membros para não enfrentar a tropa de elite da mídia
eletrônica. Estava em questão a exigência de "contrapartida social" no
patrocínio das estatais.
Sua disposição conciliatória pode, de novo, impedir
uma transformação maior, rumo a uma cultura livre, pensada como direito de
todos. Mas qualquer mudança exige, no mínimo, considerar a hipótese de que a
realidade e o mercado não são uma coisa só.

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