Aldeia Nagô
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O pardo por João Carlos Salles

4 - 6 minutos de leituraModo Leitura





O pardo parece estar entre o nada e ninguém. Como
categoria, habita o reino das coisas difusas, servindo pouco para discernir ou
localizar pessoas.






Eu mesmo, por exemplo, nunca tendo sido chamado assim, só
descobri que era pardo ao tirar a carteira de reservista. O exército não
erraria, pensei então. E, se não me percebi pardo bem antes, deve ter sido
porque, com minha pronunciada discromatopsia, nunca vi mesmo cores direito. Mas
tal novidade fez-me embaralhar toda uma gama de classificações.

Achava-me, em pequeno, moreno bem claro. Um moreno de
cabelos e olhos castanhos. E assim me situava, com a devida imprecisão, em
alguma fração ideal do território de raças e cores, em algum lugar de uma
escala cromática, ao lado de brancos mais ou menos azedos, morenos claros e
escuros, loiros, caboclos, cafés com leite, mulatos, cabos verdes, gazos,
sararás e pretos retintos. Em Cachoeira, ao que me lembre, não havia outros – à
exceção talvez de Tinhoso, um mendigo albino que imitava animais e simplesmente
não podia ser mesmo deste ou de qualquer mundo.

Sendo pardo, um ser de mistura, virei doravante meio
coisa nenhuma, uma espécie cinzenta, sem croma e sem história, sem raça e sem
cultura, um dependente de circunstâncias externas para me reconhecer em alguma
tonalidade que eu mesmo sou incapaz de ver.

Como pardo, perguntaria, quem são os meus próximos? Quem,
os distantes? Nós, pardos, o que quer que sejamos, parecemos condenados à
fragmentação, à estranheza, sem jamais poder organizar, digamos, um Movimento
Pardo Unificado ou um dia vestir com orgulho a camisa "100% pardo!" –
expressão que parece comportar algum sem sentido lógico.

Minha bagagem genética deve ser um monumento à
biodiversidade. E, tendo um pouco de tudo, não é nada estranha ao mulato
retinto que me criou, juntamente com uma branca de olhos azuis. Sendo pardo,
porém, tudo pode confundir-se num átimo. E não só por recentes usos de exames
de DNA, que mostram não ser a pele um índice claro de pertencimento a uma raça
e, vez por outra, podem nos tornar, ao mesmo tempo, mais negros que Seu Jorge
ou tão brancos quanto a Gisele Bündchen.

Nossa cor muda, a três por dois, pelo olhar do outro, que
é sempre nossa mais cruel circunstância. Lembro então que, para minha surpresa,
quando estive pela primeira vez na Alemanha, em 1986, uma garotinha de uns
cinco anos aproximou-se de mim, escapando a seus pais atônitos, e me perguntou
afoita: "Você é um negro?". A frase me surpreendeu e me fez hesitar.
Mas depois, meio de improviso e como se lutasse por libertar-me de uma
indefinição atávica, respondi: "Eu acho que também sou".

Com efeito, minha resposta apressada e incerta, a pouco e
pouco, serviu-me a um progressivo reconhecimento. Entre outras coisas, a um
reconhecimento de minha terra negra, com meus colegas de escola mais ou menos
claros, bem como de uma outra de minhas mães, uma negra que ajudou a me criar,
tendo povoado e enriquecido meu imaginário com lendas, medos, conselhos e
imprecações.

Um reconhecimento assim nunca cessa. Entretanto, como o
pardo que está em mim e no olhar do outro não se extingue, ele pode ressurgir
como um arco de possibilidades a ser visitado ao sabor do vento, fazendo-nos
assumir cores que propriamente não temos.

Com efeito, semana retrasada, chegava à Faculdade de
Filosofia, em São Lázaro, e me deparei com sete adolescentes, todos bastante
fortes e diversamente pardos, maltratando um cavalo, que diziam pertencer-lhes.
Não exatamente por coragem, mas sim por completa insanidade, investi furioso
contra eles.

Para minha sorte e para sorte momentânea do cavalo, eles
recuaram. Creio que, ao ousar enfrentá-los, eles julgaram que eu só poderia
estar armado, quando o saco que carregava continha apenas inocentes provas de lógica.
Depois, quando os vigilantes, por conta da confusão, vieram a meu socorro,
devem ter imaginado que eu detinha algum poder, sem o qual, supunham, ninguém
tomaria minhas dores. E assim recuaram mais ainda, soltando desaforos, ameaças
e, especialmente contra mim, o fatal e repetido diagnóstico: "Você só está
fazendo isso porque é branco".

Casos assim, pequenos ou não, colecionados vida afora, só
podem confundir o pardo, enquanto lhe reafirmam a vagueza constitutiva. Não
podem ser afastados de uma narrativa pessoal, que é decerto um tanto imune ao
rigor de uma leitura antropológica ou biológica ou ainda, quem sabe, econômica.
Mostram todavia que, para além do discurso da ciência ou da correção de alguma
bandeira política, somos mesmo no dia-a-dia agarrados e cifrados pela pele.

Em meu caso, mesmo sem muita preocupação científica ou
filosófica, os fatos às vezes fazem lembrar essa dimensão de superfície. E,
sendo às vezes branco e às vezes negro (ou mesmo índio o bastante para ter
alguns traços orientais), os fatos me fazem querer continuar sobretudo um
discromatópico, a esperar o dia em que não precisemos ver cores direito, quando
se tratar de reconhecer o rosto de alguém. Um dia talvez em que todos nós,
porque humanos, sejamos tão-somente 100% pardos.

João Carlos Salles é professor do Departamento de
Filosofia da UFBA e publicou os livros A Gramática das Cores em Wittgenstein e
O Retrato do Vermelho e outros ensaios.

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