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O que a palavra diz sem dizer . Por Ségio Rodrigues

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Sergio_Rodrigues

Mais do que forma e sentido, palavras têm uma aura, um cheiro, um jeito. Podem ser legais ou malas, bonitas ou feias, difíceis ou oferecidas, sisudas ou frívolas, francas ou enigmáticas, de boa índole ou perversas.

Podem enganar, fingindo uma facilidade que vira pedreira ali na esquina. Mas também pode ser que, ao contrário, escondam as delícias mais inebriantes sob uma casca dura e espinhenta.

Dito assim, as palavras soam como as pessoas, o que não está longe da verdade. Como nas relações humanas, seu mundo é atravessado por uma rede de simpatias e antipatias que precede o sentido e, em certa medida, sobrevive a ele.

Isso ocorre porque, ao nos relacionarmos com as palavras, usamos reservas —-cognitivas, emocionais e intuitivas— que vão muito além da razão. Que envolvem, por assim dizer, o corpo todo.

Como poderia ser diferente? Na história do desenvolvimento de cada um de nós, o aprendizado da linguagem coincidiu de forma perfeita com o aprendizado de simplesmente… ser.

O “inconsciente culturalmente articulado” da linguagem é um campo de estudos que mal começa a ser explorado, como aponta o linguista americano Daniel Everett em seu livro “Dark Matter of the Mind”. Acredito que a aura dos vocábulos seja parte desse mundo.

 

O que nos diz nossa intuição sobre a palavra “pulcritude”, por exemplo? Boa coisa não é. Além de pernóstica, de sentido inacessível aos mortais comuns sem a ajuda de um bom dicionário, a palavra exala um futum —vamos ser francos— entre o poeirento e o azedo.

No entanto, a feiosa pulcritude, com seu bafo rançoso e sua verruga do tamanho de uma jabuticaba no nariz, quer dizer nada menos que beleza, formosura. Pode? No mundo das palavras, pode.

Quem, sem informação prévia, adivinharia no funâmbulo o equilibrista da corda bamba? “Fumante sonâmbulo”, sentido fantasioso sugerido por minha filha quando lhe mostrei a palavra, soa claramente superior.

Sim, está certo que a recessão, com seu ar (falso) de aumentativo, parece perfeita para um tombaço de 9,7% do PIB. Mas confiar na constância dessa harmonia de forma e conteúdo seria como acreditar no palavrório de Paulo Guedes.

O potencial literário da aura das palavras é óbvio: em grande parte, escrever é tirar proveito desses ecos e fantasmas, sem esquecer, claro, os sentidos literais. O valor humorístico não fica atrás.

Eis um bom motivo, entre tantos, para ler “Luis Fernando Verissimo Antológico: Meio século de crônicas, ou coisa parecida” (Objetiva), desde já um dos lançamentos do ano. Trata-se de três centenas de crônicas, algumas inéditas em livro, de um dos nossos maiores escritores vivos.

Exibindo um domínio raro da língua e uma capacidade de comunicação mais rara ainda, é espantoso que Verissimo possa ser tratado por parte da crítica como menos do que isso. Ter multidões de leitores e cultivar o senso de humor são qualidades que algumas pessoas jamais perdoarão.

“Palavreado” e “Mais palavreado”, crônicas dos anos 1980 feitas de sentidos errados e ouvido perfeito, são mergulhos profundos de Verissimo na aura das palavras —sem deixar de ser obras-primas da comédia.

Quando Lipídio se vê “num longo conluio que leva a uma prótese entreaberta” e, entrando por ela, dá com Lascívia “sentada num trunfo, em frente ao seu pinochet, penteando-se”, o leitor fica linguística e literariamente mais sábio no mesmo instante. No entanto, ocupado em rir, nem se dá conta disso.

Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “O Drible” e “Viva a Língua Brasileira”.

Artigo publicado originalmente em

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