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O ressentimento ocidental. Por José Sócrates

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Jose-Socrates

Artigo publicado originalmente no ICL Notícias

Este é um tempo em que a direita alemã acha que o melhor caminho para ganhar votos é imitar o chauvinismo da extrema direita

Quando a Europa vivia uma época de bom gosto, George Moustaki cantava o Brasil num belo verso – “é ali que a Africa vive ainda hoje o seu exilio”. Foi assim, de longe, que comecei a amar este País, nascido da escravidão que ensombra a história europeia. Leio hoje na folha de São Paulo (ainda vale a pena ler os jornais) que mais de um milhão de escravizados levados para o Brasil foram comprados no porto de Luanda. A economia do triângulo continental: navio que partia de Lisboa, carregava escravos em Luanda, descarregava-os nos “engenhos” da Baía e trazia de volta o açúcar para vender na Europa. Foi assim durante séculos.

Há dias, Angola comemorou os cinquenta anos da sua independência. O presidente angolano referiu a opressão e a escravização do colonialismo português e manifestou, uma vez mais, a sua satisfação pelas excelentes relações políticas entre os dois povos e os dois países. Em Portugal, o líder da extrema direita acusou o presidente português, que assistiu à cerimónia, de traição à pátria – oprimir e escravizar são insultos inadmissíveis ao povo português e à sua história e o presidente português, em nome da honra portuguesa, deveria ter abandonado imediatamente a cerimónia. É assim que estamos e foi a isto que chegámos.

Os brasileiros sabem do que estou a falar. Parece que o chanceler alemão esteve no Brasil para participar na COP 30, a cúpula climática da ONU. No regresso à Alemanha disse que estava feliz por voltar a casa e, com a graça e subtileza que todo o mundo reconhece aos alemães, perguntou aos jornalistas se teriam gosto em ficar ali (em Belém do Pará). Ninguém manifestou essa vontade: “todos ficaram contentes por termos retornado à Alemanha (…)especialmente daquele lugar onde estávamos”. A fineza de espírito é filha do tempo – não, isto nunca seria dito noutro tempo. Este é um tempo em que a direita alemã acha que o melhor caminho para ganhar votos é imitar o chauvinismo da extrema direita.  E, por favor, senhor chanceler, poupe-nos aos esforços do sonso que pretende esconder a lamentável criancice– o senhor não quis elogiar a beleza do seu país: o senhor não resistiu à brejeirice de apoucar um pais e um povo que o acolheu e que era seu anfitrião. O episódio é tão repulsivo que não tem remédio – a não ser um honesto pedido de desculpas, que o senhor não tem grandeza para fazer.

Esta são duas pequenas histórias europeias. Duas pequenas histórias desta semana que ilustram a súbita mudança de cultura política europeia e a influência assustadora da extrema-direita. Alguém disse que a Europa é um continente de dupla face – capaz do melhor (a declaração universal dos direitos do homem) e do pior (o terror nazi). Mas talvez a melhor explicação para este momento seja a mais simples: o populismo europeu é filho do ressentimento – o ocidente já não manda no mundo como antes.

José Sócrates é ex primeiro ministro de Portugal

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