O selinho de Emerson Sheik
Este caso do selinho de Emerson Sheik só reforça a minha convicção de que é mais fácil a homofobia terminar entre os crentes ultraconservadores de Silas Malafaia-Júlio Severo-Marco Feliciano do que nas arquibancadas do futebol e nas suas extensões nas rodinhas e redes sociais.
Aliás, faço logo uma distinção: não importa “o caso do selinho de Sheik”; o que é interessante é o “o caso da escandalização por causa do selinho de Sheik”. Tenho cá comigo uma regra de antropologia social de que não abro mão: pode-se conhecer, e muito, uma dada cultura pela lista dos fatos com que ela fica escandalizada.
A nossa cultura é bem curiosa. A escravidão não pode ter escandalizado quase ninguém, haja vista o quando durou entre nós. O racismo que a acompanhou, tampouco, tanto assim que continuou firme e forte mesmo quando a escravidão foi abolida. Sobre a inferiorização das mulheres em geral, nem é preciso falar. Ainda hoje o regime de desprezo social pelas empregas domésticas, para onde convergem misoginia, racismo e preconceito de classe, é largamente compartilhado socialmente. Divago. Voltemos ao futebol.
Nos tornamos muito sensíveis ao racismo. Crescentemente. Isso é bom. Quando as torcidas italianas jogam bananas para Balotelli (ou tantos outros) nos escandalizamos. Mas não vi muitos sequer constrangidos na Fonte Nova quando a torcida disparava um “Balotelli, viaaaaado!” (eu estava lá). Vi o mesmo com Diego Forlán. O importante é que não somos racistas, não é mesmo?
Duvido mesmo que alguém ali achasse que “o pegador” Balotelli fosse viado, acho que o despeito foi uma grande motivação, nos dois casos, mas a ideia era dizer alguma coisa que os diminuíssem. O que requer grande consenso social naquele coletivo sobre o fato de que ser viado diminui o sujeito como ser humano e que, portanto, a atestação coletiva da sua homossexualidade é uma forma de rebaixá-lo e reduzi-lo ao ridículo. Não haveria consenso ali sobre o fato de que nordestinos são inferiores ou negros são inferiores, por isso ninguém ousaria puxar um grito nessa orientação. Mas esses consensos sustentam o escândalo com o selinho de Sheik, que nunca foi modelo de bom comportamento, mas que só escandalizou quando postou um selinho. Esses consensos é que garantem a graça (tem graça?) de se chamar a torcida do São Paulo de Bambi, a do Cruzeiro de Marias…
Não sou contra a troça, a piada, a galhofa (eu só pareço legal). Mas pensem comigo: vocês acham que alguém ainda ousaria gritar na Fonte Nova o clássico “Balotelli, preto filho da puta?” e sair tranquilo de lá? Não, né? Mas a homofobia ainda está tranquilamente autorizada no futebol. Por que será?