Aldeia Nagô
Facebook Facebook Instagram WhatsApp

O tal povo brasileiro. Por Marlon Marcos

4 - 5 minutos de leituraModo Leitura
Marlon-Marcos

Deveria existir a brasilidade popular nascida no Brasil a partir da mestiçagem assim como quis Darcy Ribeiro: só que não. Nunca houve possibilidade de que a coexistência entre isso a que chamamos de

brasileiros fosse harmoniosa e equânime de verdade. Desde antes de sermos um Estado nacional e depois disso: vivenciamos um contínuo ” apartheid” alimentado pela ganância das nossas elites criadoras deste projeto colonial de branquitude que funciona a mergulhar tudo que não for ” branco” nas águas da servidão e ignorância.

Tantos tentaram falar e outros falaram de nós como Unidade. Os pensadores e as pensadoras sociais do Brasil tiveram (e têm) a árdua tarefa de nos compreender como nação e para além da nação, como identidade coletiva que fizesse (e faça) jus a nossa condição de União imperial e à frente, republicana.

Como pensar em unidade em um país continental como o nosso tão estanque e hierarquizado em suas diferenças regionais? O que pensam o Sul e o Sudeste do Norte e Nordeste, já daria para tratarmos esta questão com profundidade e tristeza. Mas, o assunto é mais grave e a realidade ainda mais dura.

A nobreza de intelectuais, ainda que brancas e eurocentradas, como Manuela Carneiro da Cunha, nos dá a dimensão da situação de exclusão e exploração vivenciadas por civilizadores do Brasil, os indígenas e os negros, que só são tratados como mão de obra servil e objetos mercadológicos na engrenagem colonial portuguesa. Antônio Sérgio Guimarães escreve sobre racismo e o preconceito social e tenta fazer um debate teórico com o múltiplo Abdias do Nascimento, o qual muitos insistem em qualificar tão somente como ativista, nos levando à importante ideia de que a categoria raça entre nós, não é só uma categoria política e sim, uma categoria analítica que nos faz compreender como o racismo se tornou o nosso maior entrave e faz parte das estruturas mais significativas das relações sociais entre o tal povo brasileiro.

Seria um luxo epifânico e socioexistencial nos tornarmos o “mulato inzoneiro”. Há a boa vontade analítica de intelectuais de ouro nossos e nossas como Mario de Andrade, Darcy Ribeiro, Maria Bethânia, numa tentativa de expressar nossas riquezas da cultura popular e, assim, erguer um país ” celeiro do mundo”, como teorizou o melhor produto brizolista surgido neste país. Contudo, a economia e a violência social matam e apartam nossos indígenas e nossos negros, quando eles, em quantidade e qualidade, sustentam criativamente esta ideia de unidade poética vista nas obras de Andrade, Ribeiro e Bethânia.

O trabalho de audiovisual Brasileirinho (2003/2004) da cantora e intelectual Maria Bethânia, perfila o esforço de uma pensadora chamando nossa atenção para o interior do Brasil: lá, negros, indígenas, mestiços, gente do povo, transbordam cultura e inventam a nação que gostaríamos de viver com justiça social e sem os arranques assassinos promovidos pela necropolítica (Mbembe) deste empreendimento desumano que o é racismo gerado e mantido pela branquitude.

Seguindo o rastro das intelectuais artistas, ao pensar o ” povo brasileiro”, recaio na traduzibilidade do pensamento de Clarice Lispector ao narrar sobre si, sobre sua condição de brasileira nascida na Ucrânia, chegada aqui com poucos meses de idade, filha de pais russos, e sempre tratada como estrangeira. Seria Lispector uma tradução do ” não lugar” ou da inadequação de um corpo alijado de sua realidade social por conta da sua trajetória histórica? Clarice Lispector foi uma mulher branca que se tornou culta, classe média e famosa, nunca sofreu do racismo praticado no Brasil, mas, existencialmente, sempre se viu empurrada e obrigada a se pensar como estrangeira numa terra que ela queria que fosse (e era) sua.

À luz da teoria do pertencer em Clarice Lispector, eu evoco o sentimento de grandes intelectuais negros e negras que não se enxergam sob a ordem da Bandeira Nacional do Brasil, pois esta ordem nunca garantiu um exercício pleno de cidadania, nem de pertencimento. Abdias do Nascimento, Hamilton Borges, Lande Onawale, Virgínia Bicudo, Sueli Carneiro, Mãe Beata de Iemanjá, Renato Noguera, Jurema Werneck, Neusa Santos de Souza, Lélia Gonzalez, Vilma Reis, entre outros e outras, sempre souberam do seu lugar de brasileiro, mas sem pertencer de fato a este lugar por conta do racismo. O povo negro vive o Brasil que se desenha na branquitude de lugares como o Leblon, Higienópolis, Corredor da Vitória? Como defender uma noção de nação e unidade em um país que mata um grupo humano como se estivéssemos em uma guerra civil?

O projeto dessas elites hediondas é exterminar de vez os índios e submeter os negros o quanto possível pela demanda do trabalho servil e ir branqueando mentes e corpos como determina esse sistema universalizante.

Em todos os sentidos, como avisa o pensador e xamã Davi Copenawa: o céu vai cair. E cai para exterminar não tão somente negros e indígenas, mas toda essa abstração que o Ocidente trata como humanidade. Melhor do que estar a gritar a pseudo unidade brasileira e formular a ideia de um povo que nunca existiu, é atentar para Ailton Krenak, Nego Bispo, Maria Bethânia e Pai Carlinhos de Oxum e, assim, nos reinventarmos todos e todas como antirracistas e anticapitalistas para adiarmos o fim do mundo.

Marlon Marcos é poeta, antropólogo, jornalista e historiador. Professor da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afrobrasileira – Unilab. E-mail: ogunte21@gmail.com

Compartilhar:

Mais lidas

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *