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O triunfo de Lula, além das urnas. Por Pablo Gentili

7 - 9 minutos de leituraModo Leitura
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Embora as pesquisas eleitorais mostrem uma grande vantagem para Lula sobre Bolsonaro na eleição de 2 de outubro, especula-se que o que beneficiará o candidato de esquerda a vencer no primeiro turno será o percentual de pessoas que votarão em branco ou cancelarão seus votos.

Se a tendência das eleições presidenciais anteriores se repetir, com 48% da preferência eleitoral, Lula poderá ultrapassar 50% dos votos válidos, tornando-se presidente do Brasil pela terceira vez. Argumenta-se ainda que, às vésperas de uma eleição que agudiza sua polarização dia após dia, a preferência pelo “voto útil”, especialmente na base eleitoral de Ciro Gomes, pode permitir que ele alcance o percentual que ainda precisaria para ganhar imediatamente.

Ambos os argumentos são consistentes e explicam, em parte, o que parece ser o triunfo inexorável do Partido dos Trabalhadores neste domingo. No entanto, há razões para supor que Bolsonaro será derrotado por uma margem de votos ainda maior que as pesquisas não conseguiram medir com precisão.

O processo ignominioso que primeiro permitiu o golpe contra Dilma Rousseff e depois a prisão de Lula por 580 dias produziu uma mudança estrutural na sociedade brasileira. Entre 2016 e 2018, consolidou-se a mais brutal e plena hegemonia de uma direita radical, autoritária, corrupta e violenta, que, herdeira da ditadura militar, havia persistido e sobrevivido quase sempre à margem do sistema político.

A própria candidatura de Bolsonaro, na eleição presidencial anterior, levou alguns a supor que esse caráter marginal beneficiaria uma esquerda que havia demonstrado sua moderação discursiva e uma capacidade de gestão avassaladora durante os 14 anos de governos petistas. O ódio, o racismo, a xenofobia, o machismo e os delírios discursivos de um ex-capitão que havia deixado o Exército prematuramente não exatamente por ser o mais esperto da tropa, pareciam funcionar muito mais como barreira de contenção do que como ameaça eleitoral à esquerda. É possível retomar o poder diante da fragmentação de um direito histórico decadente protegido, como sempre, pelo poder econômico e midiático.

Mas o cálculo falhou.

Bolsonaro devastou as forças tradicionais da direita brasileira e conquistou apoio popular inesperado. O que se seguiu está à vista: a destruição acelerada das instituições democráticas; o saque e a privatização de bens públicos; a corrupção e o enriquecimento de seus dirigentes, em primeiro lugar, da própria família do presidente; a exacerbação da violência política, do racismo e da violência sexista; a impunidade e a colonização total do aparelho estatal por milhares de funcionários públicos pertencentes às forças armadas e às igrejas evangélicas. (Hoje, estima-se que o governo Bolsonaro tenha mais de 6.500 militares em cargos de chefia, gestão ou assessoria. O número de evangélicos, embora mais impreciso, é de vários milhares de oficiais. As Forças Armadas e as igrejas neopentecostais controlam grande parte do ministérios e grandes empresas estatais).

Embora a lição já tenha sido aprendida, vale reiterar: as pessoas e organizações progressistas devem aprender que quanto pior, pior; e que a engenharia eleitoral baseada na especulação de que monstros marginais e violentos, sem outro programa senão a propagação do ódio e do medo, nunca chegarão ao poder, costuma ser o prelúdio de um abismo autoritário que mergulha a democracia nas mais profundas e temíveis trevas.

Em termos eleitorais, esse processo doloroso e sangrento expõe duas evidências, uma negativa e outra talvez positiva, na perspectiva da atual disputa presidencial.

Em 2018, Jair Bolsonaro obteve 55% dos votos, ou seja, o apoio de quase 58 milhões de pessoas. Boa parte desses eleitores foi se consolidando como uma base eleitoral sólida que, sob o lema de que o ex-capitão “é um mito”, está convencido de que o autoritarismo e a violência são o melhor antídoto para que a política deixe de ser dominada pela esquerda ou pela direita elites de ala militar que governam o país desde o fim da ditadura militar, há quase 40 anos. Bolsonaro é visto, assim, como a única garantia de retorno a um passado glorioso, que permitirá defender o Brasil do comunismo e do antipatriotismo indolente das potências econômicas e midiáticas tradicionais. Não deixa de produzir horror que, após quatro anos de desastre e desprezo pela vida humana, após uma pandemia que deixou mais de 600.000 mortos que o governo nada fez para evitar, após uma economia devastada e um processo de aprofundamento da fome, pobreza extrema, desigualdade e o desamparo das classes populares, mais de 35 milhões de brasileiros continuam achando que Bolsonaro não é apenas o melhor, mas a única opção que ilumina seu horizonte de felicidade coletiva.

Enquanto isso, mais de 20 milhões de pessoas, que talvez desprezem qualquer opção política de esquerda, muitas delas fartas da própria política, votaram em Bolsonaro há quatro anos como punição ao PT, considerando que nenhuma outra opção eleitoral poderia dar a seus líderes o espancamento que mereciam diante da enxurrada de denúncias de corrupção que os envolvem. Bolsonaro ganhou graças a uma votação radical de direita que tendeu a se consolidar e a um apoio popular muito significativo que se refugiou na cobertura imaculada da Operação Lava Jato e no destaque que o juiz Moro e a equipe de promotores conquistaram, que, em suas condição de salvadores da pátria, tiraram o Brasil das trevas.

É impossível saber hoje quantas dessas pessoas se desiludiram com as provas de manipulação, prevaricação e corrupção de uma quadrilha de juízes e promotores desonestos que usaram a justiça como mecanismo de enriquecimento pessoal e para chegar ao poder desrespeitando o regime democrático da lei. De qualquer forma, vamos descobrir no domingo.

O chamado “voto vergonhoso”, cuja presença já foi avisada por vários analistas, é a expressão fenomenal de um grupo certamente imenso de pessoas que nunca estarão dispostas a admitir que Lula será agora seu candidato pela primeira vez, depois de tendo defendido por mais de 20 anos, era a própria expressão do diabo. Não querendo beber pela segunda vez o veneno do ódio, embora não por isso bebendo do amor eleitoral ao líder do PT, milhões de votos “envergonhados” vão beneficiar Lula nesta eleição.

Por outro lado, uma das transformações mais dramáticas da sociedade brasileira atual é que o bolsonarismo se consolidou como uma força política com grande apoio popular e presença pública enérgica.

A rua, que no passado pertencia à esquerda, que era ocupada por suas lutas e mobilizações de massa, hoje foi colonizada pela direita radical, o que a torna o palco expressivo e performativo de seus protestos e de sua fúria coletiva.

Outra lição que o progressismo jamais pode esquecer: na política não há espaços vazios, e quando as forças democráticas saem dos territórios, são colonizadas por um direito que inteligentemente busca seus melhores porta-vozes nos mercadores de fé, nas organizações políticas criminosas. forças de choque e em milícias que prometem segurança e contenção, nos meios de comunicação que se beneficiam do desamparo, medo e insegurança das pessoas. Quando os movimentos populares são esvaziados de lideranças, quando os partidos de esquerda se desvanecem em uma burocracia inepta sem militância nem liderança, quando a necessidade de governar para o povo faz com que os funcionários não tenham tempo ou vontade de estar perto do povo, a direita se apodera a oportunidade e destrói, em muito pouco tempo, uma capilaridade organizacional, reconhecimento e solidariedade que levou décadas e muitas vidas para construir.

Assim, a direita radical, com seus discursos de ódio e violência, ocupou a rua e a fez sua, ameaçando e colocando em risco a vida de quem ousasse questionar sua propriedade sobre ela.

Não é fácil ser um democrata, um progressista ou uma pessoa de esquerda hoje no Brasil. E não porque Bolsonaro não tenha dado motivos para fortalecer as convicções democráticas de nenhum cidadão, mas porque quem o expressa publicamente pode ser humilhado, chutado ou brutalmente assassinado no bar da esquina de sua casa. A direita não ocupa a rua para transformá-la em um cenário propício à divulgação de suas ideias ou propostas políticas. Ele a ocupa para exercer a pedagogia do medo, para segregar, silenciar e aniquilar quem pensa diferente. Ele a ocupa para fazer do discurso de ódio a gasolina que queima seu modelo de sociedade, seu horizonte de futuro.

Não sabemos quantas pessoas, muitas das quais votaram em líderes como Lula ou Dilma no passado, hoje têm medo de dizer que o farão novamente. No entanto, não há dúvida de que, dado o risco de exposição, o “voto do silêncio” (não apenas o da “vergonha”) será muito expressivo nesta eleição. Descobriremos no domingo.

Neste domingo, 2 de outubro, dia em que Lula será novamente presidente do Brasil, iniciando um processo que será questionado por enormes desafios democráticos. Desafios que o novo governo do PT, como fez no passado, transformará em imensas conquistas que mostrarão mais uma vez que o único sentido da política democrática deve ser sempre o de melhorar a vida das pessoas.

Pablo Gentili

Professor da UERJ e coordenador geral da Escola de Estudos Latino-Americanos e Globais, ELAG. Ex-secretário executivo do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais e diretor da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais. Ex-chefe de gabinete de Pablo Iglesias e ex-secretário de estado do governo Alberto Fernández. Autor e organizador de mais de 20 livros

Artigo publicado originalmente em O triunfo de Lula, além das urnas – Pablo Gentili – Brasil 247

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