Os Machos Lacrimosos por Mia Couto
Eles se encontravam por causa de alegrias. No bar de
Matakuane, os homens anedotavam, fabricando risadas. Um único móbil: festejavam
a vida.
As suas esposas não suportavam aquele disparatar. Afinal, elas, as mulheres,
não precisam de ritual para festejar a vida. Elas são a festa da vida. Ou a
vida em festa? Para elas, aquela cumplicidade masculina era coisa de tribo.
Reminiscência atávica.
Mas os homens não se importavam. Fosse atávico e tribal, eles
mantinham o cerimonial. Cada um que chegava ao bar disparava, logo à entrada:
– Sabem a última?
E assim se produziam eles, se consumiam elas. Até que sucedeu
a noite em que
Luizinho Kapa-Kapa, o grande animador dos encontros, trouxe a
notícia tristonha. Estava-se em lua muito minguante e ali, na esplanada, pela
primeira vez, os copos ficaram cheios toda a noite. É que Luizinho foi
desenrolando a história com voz acabrunhada. Antes de chegar ao busílis do
relato, quem sabe um irreversível falecimento, Kapa-Kapa cascateou-se em pranto. E os amigos,
copo suspenso, em redor da mesa:
– Então, Kapa-Kapa, como é que é?
Até o musculoso e calado estivador Silvestre Estalone ajudava
a animar o lamentoso:
– Verticaliza, homem, verticaliza.
Mas o choroso todaviou-se. E foi crescendo de choraminguado
para carpideiro. Entre soluços, soltava os fios da fúnebre narrativa. Já nem se
percebia palavra, tal maneira as falas vinham envoltas em babas. Na sala surgiu um
lenço e rodou de mão em mão, coletando excessos. Tarde de mais: as chamas da
tristeza já haviam devorado o coração de Kapa-Kapa.
Desistiram de o consolar. Amolecidos, os amigos foram-se
rendendo a um descaimento no peito, o singelo peso da lama na alma. Fosse isso
a tristeza. E chegou mesmo a escorrer, dissimulata, uma lágrima no rosto
barbudo do dono do estabelecimento.
No dia seguinte, quando se sentaram no bar, ainda foi
disparado um gracejo: Sabem a última? Mas o homem logo se arrependeu: o que ele
estava a dar era um ar de sua desgraça. A melancolia se instalara como toalha
sobre a mesa. Silvestre Estalone ainda insistiu com nova graça. Mas ninguém
riu. Estava-se mais interessado em escutar os novos capítulos da tristeza.
E pediram a Luizinho Kapa-Kapa: ele que divulgasse mais
detalhes, rasgando véus, desocultando destinos. E o Luizinho desfez-se na
vontade: o drama se desfolhou, ante o olhar lacrimoso dos presentes. Não tardou
que todos chorassem babas e rebanhos.
E foi sucedendo uma e outra noite. Uma e outra rodada de
tristeza. Os baristas de Matakuane foram deixando a piada e o riso. E passaram
a partilhar lamentos, soluços e lágrimas. E até Silvestre Estalone, o mais
macho e sorumbático da tribo, acabou confessando:
– Nunca eu pude imaginar, malta. Mas como é bom chorar!
Chorar, mas chorar junto, acrescentaram os outros. E até um
se lembrou de propor uma associação de choradores. Pudessem mesmo substituir as
profissionais carpideiras dos velórios. Mas os restantes se opuseram, firmes.
Afinal, ainda restava neles o fundo preconceito macho de que lágrima pública é
coisa para o mulherido.
E foi sucedendo tão devagar que nem parecia acontecer.
Ocorria, porém, que os antigos anedoteiros passaram a mudar de trato com o
mundo. Aos primeiros sinais do anoitecer lá um declarava ter que regressar a
casa.
– Para ajudar a minha gente – confessava, meio envergonhado.
E um outro declinava a insistência de mais uma bebida.
– Não quero que a minha patroa se zangue – justificava.
– Quem quer bebida, pede medida – proverbiavam todos.
E mesmo o Silvestre, que era quem sempre fechava o bar, apelava
para que olhassem o relógio. Voltassem todos aos seus lares, convidava o
ex-boémio.
– Sim, vamos para nossas casas. Mas não sem derramarmos mais
uma lágrima.
– Sim, sai uma para o caminho.
E lá vinha mais história de puxar lustro à tristeza. Que chorar
era coisa de maricas, isso já nenhum se lembrava. Nos arredores do bar, a noite
se adoçava, escutando-se o suave soluçar da rapaziada.
As mulheres até recearam ao ver tanta mudança: seus homens,
inexplicavelmente, se revelavam mais delicados e atenciosos. E palavras,
flores, carinhos: tudo isso elas passaram a receber. Mordedura de mosca,
repentina mudança de idade? E acertaram nem sequer perguntar. Aquilo era tão
bom, tão inverossímil, que o melhor era deixar dormir a poeira.
Hoje quem passa pelo bar de Matakuane pode certificar: chorar
é um abrir do peito. O pranto é o consumar de duas viagens: da lágrima para a
luz e do homem para uma maior humanidade. Afinal, a pessoa não vem à luz logo
em pranto? O choro não é a nossa primeira voz?
E é o que, por outras palavras, sentencia Kapa-Kapa: a
solução do mundo é termos mais do nosso ser. E a lágrima nos lembra: nós, mais
que tudo, não somos água?
In: Mia Couto
(2004). O fio das missangas: contos.
São Paulo: Companhia das Letras, 2009