Aldeia Nagô
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Para o soldado israelense que assassinou Aysenur Ezgi Eygi. Por Chris Hedges

7 - 10 minutos de leituraModo Leitura
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Israel administra uma galeria de tiro a céu aberto em Gaza e na Cisjordânia. Impunidade total. Assassinato como esporte

Originalmente publicado no Substack do autor em 17 de setembro de 2024

Eu conheço você. Encontrei você nas densas copas das árvores durante a guerra em El Salvador. Foi lá que ouvi pela primeira vez o estalo agudo e único da bala de um atirador de elite. Distinto. Ominoso. Um som que espalha terror. As unidades do exército com as quais viajei, enfurecidas pela precisão letal dos atiradores rebeldes, montaram metralhadoras .50 e pulverizaram a folhagem acima até que um corpo, uma massa sanguinolenta e mutilada, cair ao chão.

Eu vi você trabalhando em Basra, no Iraque, e claro, em Gaza, onde numa tarde de outono, no Entroncamento Netzarim, você matou um jovem a poucos metros de mim. Levamos seu corpo inerte pela estrada.

Eu vivi com você em Sarajevo durante a guerra. Você estava apenas a algumas centenas de metros de distância, empoleirado em prédios altos que olhavam para a cidade. Testemunhei a sua carnificina diária. Ao anoitecer, vi você disparar um tiro na penumbra contra um velho e sua esposa, que estavam curvados sobre seu pequeno canteiro de vegetais. Você errou. Ela correu, hesitante, para se esconder. Ele não correu. Você disparou novamente. Admito que a luz estava diminuindo. Era difícil ver. Então, na terceira vez, você o matou. Esta é uma daquelas memórias de guerra que vejo na minha cabeça repetidamente e nunca falo sobre. Eu a assisti do fundo do Holiday Inn, mas já a vi, ou as suas sombras, centenas de vezes.

Você também me visou. Você derrubou colegas e amigos. Eu estava na sua mira viajando do norte da Albânia para o Kosovo com 600 combatentes do Exército de Libertação do Kosovo, cada insurgente carregando um AK-47 extra para passar a um camarada. Três tiros. Aquele estalido nítido, tão familiar. Você deve ter estado longe. Ou talvez você fosse um atirador ruim, embora tenha chegado perto. Eu procurei abrigo atrás de uma pedra. Meus dois guarda-costas se curvaram sobre mim, ofegantes, as bolsas verdes presas aos seus peitos, cheias de granadas.

Eu sei como você fala. O humor negro. “Terroristas de tamanho reduzido”, você diz sobre as crianças que mata. Você se orgulha de suas habilidades. Isso lhe dá prestígio. Você embala a sua arma como se fosse uma extensão de seu corpo. Você admira a sua beleza desprezível. É quem você é. Um assassino.

Em sua sociedade de assassinos, você é respeitado, recompensado, promovido. Você está insensível ao sofrimento que inflige. Talvez você goste disso. Talvez você pense que está se protegendo, sua identidade, seus camaradas, sua nação. Talvez você acredite que o assassinato é um mal necessário, uma forma de garantir que os palestinos morram antes que possam atacar. Talvez você tenha entregado a sua moralidade à obediência cega do militar, submerso na maquinaria industrial da morte. Talvez você tenha medo de morrer. Talvez você queira provar a si mesmo e aos outros que é durão, que pode matar. Talvez a sua mente esteja tão deformada que você acredita que matar é justo.

Você está intoxicado pelo poder divino de revogar a carta de outra pessoa para viver nesta terra. Você se deleita na intimidade disso. Você vê em detalhes finos através da mira telescópica, o nariz e a boca de sua vítima. O triângulo da morte. Você prende a respiração. Você puxa lentamente, gentilmente o gatilho. E então o estalo rosa. Medula espinhal cortada. Morte. Acabou.

Você foi a última pessoa a ver Aysenur viva. Você foi a primeira pessoa a vê-la morta.

Este é você agora. E agora ninguém pode alcançá-lo. Você é o anjo da morte. Você está insensível e frio. Mas, eu suspeito, isso não vai durar. Eu cobri guerras por muito tempo. Eu sei qual é, mesmo que você não saiba, o próximo capítulo de sua vida. Eu sei o que acontece quando você deixa a proteção do exército, quando você não é mais uma engrenagem nessas fábricas de morte. Eu conheço o inferno no qual você está prestes a entrar.

Começa assim. Todas as habilidades que você adquiriu como assassino lá fora são inúteis. Talvez você volte. Talvez você se torne um mercenário. Mas isso apenas adiará o inevitável. Você pode fugir, por um tempo, mas não pode fugir para sempre. Haverá um acerto de contas. E é o acerto de contas que eu vou lhe contar.

Você enfrentará uma escolha. Viver o resto de sua vida estagnado, entorpecido, afastado de si mesmo, afastado daqueles ao seu redor. Mergulhado em uma névoa psicopática, aprisionado nas mentiras absurdas e interdependentes que justificam o assassinato em massa. Existem assassinos, anos depois, que dizem se orgulhar do que fizeram, que não sentem um momento de arrependimento. Mas eu não estive dentro dos pesadelos deles. Se isso for você, então você nunca mais viverá verdadeiramente.

Claro, você não fala sobre o que fez com aqueles ao seu redor, certamente não com a sua família. Eles pensam que você é uma boa pessoa. Você sabe que isso é uma mentira. Geralmente, o entorpecimento passa. Você se olha no espelho e, se ainda tiver um resquício de consciência, seu reflexo o perturba. Mas você reprime o amargor. Você escapa pelo buraco do coelho dos opioides e do álcool. Seus relacionamentos íntimos se desintegram – porque você não consegue sentir, porque você enterra o seu auto-ódio. Essa fuga funciona. Por um tempo. Mas então você entra em uma escuridão tão profunda que os estimulantes que você usa para amortecer sua dor começam a destruí-lo. E talvez seja assim que você morra. Eu conheci muitos que morreram assim. E conheci aqueles que acabaram com tudo rapidamente. Uma arma na cabeça.

Entre 1973 e 2024, 1.227 soldados israelenses cometeram suicídio de acordo com estatísticas oficiais, mas o número real é considerado muito maior. Nos EUA, uma média de 16 veteranos comete suicídio todos os dias.

Eu tenho trauma de guerra. Mas o pior trauma eu não tenho. O pior trauma de guerra não é o que você viu. Não é o que você experimentou. O pior trauma é o que você fez. Eles têm nomes para isso. Lesão moral. Estresse Traumático Induzido pelo Perpetrador. Mas isso parece morno diante das brasas quentes e ardentes de raiva, dos terrores noturnos, do desespero. Aqueles ao seu redor sabem que algo está terrivelmente, terrivelmente errado. Eles temem a sua escuridão. Mas você não os deixa entrar no seu labirinto de dor.

E então, um dia, você busca o amor. O amor é o oposto da guerra. A guerra é sobre sujeira. É pornografia. É sobre transformar outros seres humanos em objetos, talvez objetos sexuais, mas eu também quero dizer isso literalmente, pois a guerra transforma pessoas em cadáveres. Cadáveres são o produto final da guerra, o que sai da sua linha de montagem. Então, você desejará o amor, mas o anjo da morte fez um pacto faustiano. É isso. É o inferno de não conseguir amar. Você carregará essa morte dentro de você pelo resto da sua vida. Ela corrói a sua alma. Sim. Temos almas. Você vendeu a sua. E o custo é muito, muito alto. Significa que o que você deseja, o que você mais desesperadamente precisa na vida, você não pode alcançar.

Então, um dia, talvez você seja pai ou mãe ou tio ou tia, e uma jovem mulher que você ama, ou quer amar como uma filha, entra na sua vida. Você vê nela, virá como um relâmpago, o rosto de Aysenur. A jovem mulher que você assassinou. Voltando à vida. Israelense agora. Falando hebraico. Inocente. Boa. Cheia de esperança. A força total do que você fez, quem você era, quem você é, te atingirá como uma avalanche.

Você passará dias querendo chorar e não saberá por quê. Você será consumido pela culpa. Você acreditará que, por causa do que fez, a vida dessa outra jovem mulher está em perigo. Retribuição divina. Você dirá a si mesmo que isso é absurdo, mas acreditará mesmo assim. Sua vida começará a incluir pequenas ofertas de bondade aos outros, como se essas ofertas apaziguassem um deus vingativo, como se essas ofertas salvassem a jovem de danos, da morte. Mas nada pode apagar a mancha do assassinato.

Sim. Você matou Aysenur. Você matou outros. Palestinos que você desumanizou e ensinou a odiar. Animais humanos. Terroristas. Bárbaros. Mas é mais difícil desumanizá-la. Você sabe, você a viu através do seu telescópio, ela não era uma ameaça. Ela não jogou pedras, a justificativa insignificante que o exército israelense usa para disparar balas reais em palestinos, incluindo crianças.

Você será dominado pela tristeza. Arrependimento. Vergonha. Luto. Desespero. Alienação. Você terá uma crise existencial. Você saberá que todos os valores que lhe ensinaram a honrar na escola, no culto, em casa, não são os valores que você sustentou. Você se odiará. Você não dirá isso em voz alta. Você pode, de uma forma ou de outra, extinguir-se.

Há uma parte de mim que diz que você merece esse tormento. Há uma parte de mim que quer que você sofra pela perda que causou à família e aos amigos de Aysenur, para pagar pelo ato de tirar a vida dessa mulher corajosa e talentosa.

Atirar em pessoas desarmadas não é bravura. Não é coragem. Não é nem mesmo guerra. É um crime. É assassinato. Você é um assassino. Tenho certeza de que você não recebeu ordens para matar Aysenur. Você atirou na cabeça de Aysenur porque podia, porque queria. Israel administra uma galeria de tiro a céu aberto em Gaza e na Cisjordânia. Impunidade total. Assassinato como esporte.

Um dia, você não será o assassino que é agora. Você se esgotará tentando afastar demônios. Você desejará desesperadamente ser humano. Você desejará amar e ser amado. Talvez você consiga. Ser humano novamente. Mas isso significará uma vida de contrição. Significará tornar público o seu crime. Significará implorar, de joelhos, por perdão. Significará perdoar a si mesmo. Isso é muito difícil. Significará orientar todos os aspectos de sua vida para nutrir a vida em vez de extingui-la. Esta será sua única esperança de salvação. Se você não a aceitar, você está condenado.

Chris Hedges

Jornalista vencedor do Pulitzer Prize (maior prêmio do jornalismo nos EUA), foi correspondente estrangeiro do New York Times, trabalhou para o The Dallas Morning News, The Christian Science Monitor e NPR.

Artigo publicado no Brasil 247

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