Aldeia Nagô
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“Caros generais, almirantes e brigadeiros” – Por Marcelo Rubens Paiva

4 - 6 minutos de leituraModo Leitura

Precisa
dizer mais alguma coisa? Tenhamos coragem de mostrar quem são e de punir os torturadores!

!!





Caros
generais, almirantes e brigadeiros!

Eu ia dizer "caros milicos". Não sei se é um termo ofensivo.
Estigmatizado é. Preciso enumerar as razões?

Parte da sociedade civil quer rever a Lei da Anistia. Sugeriram a Comissão da
Verdade, no desastroso Programa Nacional de Direitos Humanos, que Lula assinou
sem ler. Vocês ameaçaram abandonar o governo, caso fosse aprovado.

Na Argentina, Espanha, Portugal, Chile, a anistia a militares envolvidos em
crimes contra a humanidade foi revista. Há interesse para uma democracia em
purificar o passado.

Aqui, teimam em não abrir mão do perdão. E têm aliados fortes, como o
presidente do Supremo, Gilmar Mendes, e o ministro da Defesa, Nelson Jobim, que
apesar de civil apareceu num patético uniforme de combate na volta do Haiti.
Parecia um clown.

Vocês pertencem a uma nova geração de generais, almirantes,
tenentes-brigadeiro
s. Eram jovens durante a ditadura. Devem ter navegado
na contracultura, dançado Raul Seixas, tropicalistas. Usaram cabelos compridos,
jeans desbotados? Namoraram ouvindo bossa nova? Assistiram aos filmes do Cinema
Novo?

Sabemos que quem mais sofreu repressão depois do Golpe de 64 foram justamente
os militares. Muitos foram presos e cassados. Havia até uma organização
guerrilheira, a VPR, composta só por militares contra o regime.

Por que abrigar torturadores? Por que não colocá-los num banco de réus, um
Tribunal de Nuremberg? Por que não limpar a fama da corporação?

Não se comparem a eles. Não devem nada a eles, que sujaram o nome das Forças
Armadas. Vocês devem seguir uma tradição que nos honra, garantiu a República, o
fim da ditadura de Getúlio, depois de combater os nazistas, e que hoje lidera a
campanha no Haiti.

Sei que nossa relação, que começou quando eu tinha 5 anos, foi contaminada por
abusos e absurdos. Culpa da polarização ideológica da época.

Seus antecessores cassaram o meu pai, deputado federal de 34 anos, no Golpe de
64, logo no primeiro Ato Institucional. Pois ele era relator de uma CPI que
investigava o dinheiro da CIA para a preparação do golpe, interrogou militares,
mostrou cheques depositados em contas para financiar a campanha anticomunista.
Sabiam que meu pai nem era comunista?

Ele tentou fugir de Brasília, quando cercaram a cidade. Entrou num
teco-teco, decolou, mas ameaçaram derrubar o avião. Ele pousou, saltou do avião
ainda em movimento e correu pelo cerrado, sob balas.

Pulou o muro da embaixada da Iugoslávia e lá ficou, meses, até receber o
salvo-conduto e se exilar. Passei meu aniversário de 5 anos nessa embaixada.
Festão. Achávamos que a ditadura não ia durar. Que ironia…

Da Europa, meu pai enviou uma emocionante carta aos filhos, explicando o que
tinha acontecido. Chamava alguns de vocês de "gorilas". Ri muito
quando a recebi.

Ainda era 1964, a família imaginava que fosse preciso partir para o exílio e se
juntar na França, quando ele entrou clandestinamente no Brasil.

Num voo para o Uruguai, que fazia escala no Rio, pediu para comprar cigarros e
cruzou portas, até cair na rua, pegar um táxi e aparecer de surpresa em casa.
Naquela época, o controle de passageiros era amador.

Mas veio a luta armada, os primeiros sequestros, e atuavam justamente os filhos
dos amigos e seus eleitores – ele foi eleito deputado em 1962 pelos estudantes.

A barra pesou com o AI-5, a repressão caiu matando, e muitos vinham pedir
abrigo, grana para fugir. Ele conhecia rotas de fuga. Tinha um aviãozinho.
Fernando Gasparian, o melhor amigo dele, sabia que ambos estavam sendo seguidos
e fugiu para a Inglaterra. Alertou o meu pai, que continuou no País.

Em 20 de janeiro de 1971, feriado, deu praia. Alguns de vocês invadiram a nossa
casa de manhã, apontaram metralhadoras. Depois, se acalmaram. Ficamos com eles
24 horas. Até jogamos baralho. Não pareciam assustadores. Não tive medo. Eram
tensos, mas brasileiros normais.

Levaram o meu pai, minha mãe e minha irmã Eliana, de 14 anos. Ele foi torturado
e morto na dependência de vocês. A minha mãe ficou presa por 13 dias, e minha
irmã, um dia.

Sumiram com o corpo dele, inventaram uma farsa (a de que ele tinha fugido) e
não se falou mais no assunto.

Quando, aos 17 anos, fui me alistar na sede do 2º Exército, vivi a
humilhação de todos os moleques: nos obrigaram a ficar nus e a correr pelo
campo. Era inverno.

Na ficha, eu deveria preencher se o pai era vivo ou morto. Na época, varão de
família era dispensado. Não havia espaço para "desaparecido"
.
Deixei em branco.

Levei uma dura do oficial. Não resisti: "Vocês devem saber melhor do que
eu se está vivo." Silêncio na sala. Foram consultar um superior. Voltaram
sem graça, carimbaram a minha ficha, "dispensado"
, e saí de lá
com a alma lavada.

Então, só em 1996, depois de um decreto-lei do Fernando Henrique, amigo de
pôquer do meu pai, o Governo Brasileiro assumiu a responsabilidade sobre os
desaparecidos e nos entregou um atestado de óbito.

Até hoje não sabemos o que aconteceu, onde o enterraram e por quê? Meu pai era
contra a luta armada. Sabemos que antes de começarem a sessão de tortura, o
brigadeiro Burnier lhe disse: "Enfim, deputadozinho, vamos tirar nossas
diferenças."

Isso tudo já faz quase 40 anos. A Lei da Anistia, aprovada ainda durante a
ditadura, com um Congresso engessado pelo Pacote de Abril, senadores biônicos,
não eleitos pelo povo, garante o perdão aos colegas de vocês que participaram
da tortura.

Qual o sentido de ter torturadores entre seus pares? Livrem-se deles. Coragem.

*Publicado em "O Estado de S.Paulo" de 30 de janeiro de 2010.

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