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Réplica: Escudo da imprensa permite a Moro contar história da Lava Jato como quer. Por Marcelo Semer

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Marcelo-Semer

Artigo-entrevista de colunista da Folha mostra que não faltarão ao ex-juiz espaços generosos na mídia.

Em resposta a artigo da colunista da Folha Catarina Rochamonte, que entrevistou Sergio Moro por ocasião do lançamento do livro “Contra o Sistema da Corrupção”, autor sustenta que ex-juiz frustra sua promessa de honestidade ao não esclarecer teor das conversas mantidas com Deltan Dallagnol e afirma que a imprensa, convidada VIP da Lava Jato, deve percorrer história da operação se afastando da narrativa orquestrada por Moro.

“Todo mundo tem direito à sua opinião, mas é preciso olhar os fatos.” O ex-juiz Sergio Moro acaba de lançar um livro para, em suas palavras, “contar o que aconteceu”. A depender do que se viu desde que retornou ao Brasil para iniciar sua primeira aventura eleitoral, espaços generosos e pouco críticos na mídia não lhe faltarão —como, aliás, nunca lhe faltaram.

Como um teaser do que estaremos submetidos a partir de agora, esta Folha publicou, na última terça-feira (30), um misto de artigo-entrevista e resenha laudatória, no qual a colunista Catarina Rochamonte apresenta o livro do ex-juiz aos leitores envolto em um continente de orgulho e devoção.

No título do artigo, em tom de defesa antecipada, já se frustra de cara a promessa de sinceridade de Moro: “Nunca estimulei culto à personalidade”.

Deixou parte desse trabalho para a cônjuge, é verdade, que multiplicava seguidores com sua página no Facebook, “Eu Moro com ele” —plataforma de que o ex-juiz se valia para agradecer manifestantes contra Dilma que o emulavam nas ruas, como aqueles do dia 13 de março de 2016.

Na avenida Paulista, uma emocionada multidão chegou a fazer coro para cantar “como é grande o meu amor por você” em sua homenagem, enquanto alguns ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) eram ridicularizados em pixulecos ou hostilizados por ofensas.
Mas era “contra a corrupção”, então o jogo para a plateia estava justificado, e até comparar o juiz com um enxadrista que projetava estratégias contra o vilão não parecia assim tão imoral.

Se estivesse disposto de fato a contar o que aconteceu, Moro poderia ter esclarecido de vez as conversas secretas mantidas com Deltan Dallagnol, que vieram a ser expostas pela Vaza Jato —no lugar de sua postura dúbia com as revelações, em que, de um lado, negava o conteúdo delas de forma genérica, sem apresentar uma única imprecisão concreta, e de outro, defendia, contraditoriamente, os supostos diálogos como normais e rotineiros.
Nada normal, nem rotineiro.

Durante anos, cabe lembrar, Moro, enquanto juiz, sugeriu ao autor das ações que cabia a ele julgar:
1) o timing para realizar operações policiais; 2) a dimensão da acusação que seria a ele proposta (quem devia ser acusado e quem não se devia melindrar); 3) as testemunhas para serem apresentadas pelo procurador; 4) dicas de performance para a atuação em audiência; 5) a conveniência e oportunidade para decretações de sigilo; 6) a urgência e o conteúdo das manifestações a serem apresentadas (a ele mesmo) pela acusação; 7) as estratégias para disputar com a defesa o protagonismo das narrativas na mídia.

Eram conversas sobre assuntos públicos, com interesses públicos em jogo e que tiveram consequências nos julgamentos. Jamais poderiam ter sido mantidas à distância das defesas e do conhecimento do público, como uma espécie de “processo caixa dois”.
Moro nunca escondeu que se espelhara na Operação Mãos Limpas, que, nos anos 1990, levara o sistema partidário italiano ao colapso. A operação contra a corrupção acabou resultando na eleição de um aventureiro antissistema, o empresário Silvio Berlusconi, ao final, envolvido em outros tantos escândalos.

Em artigo escrito em 2004, Moro se referia à operação como “uma das mais exitosas cruzadas judiciárias contra a corrupção política e administrativa” e atribuía o sucesso das Mãos Limpas às prisões provisórias, que vitaminavam delações, e ao vazamento na mídia que, estimulava empresários e políticos em cascata. A deslegitimação da classe política não foi um efeito colateral indesejável; segundo ele, foi essencial para o sucesso da operação.

Talvez Moro tenha visto nos juízes italianos um exemplo de conduta a seguir. Se assim foi, se perdeu na tradução, porque, apesar de membros da carreira ampliada da magistratura, esses juízes representavam o papel que aqui é desempenhado pelo Ministério Público.

O erro pode ter sido consciente, o que justificaria sua ânsia de atuar em tantas frentes. No fim das contas, Moro colheu a derrota que plantou: a contaminação do processo por interesse do juiz de ser também a parte acusadora.

Em processos de grande relevância ou projeção, atingindo a celebridades ou políticos, é inescapável a repercussão na mídia e, por intermédio dela, a criação de uma opinião pública sobre os fatos. Vimos isso no mensalão, pautado em grande medida pela pressão da imprensa. A Lava Jato, no entanto, alcançou outro patamar.

A imprensa não entrou forçando a porta, foi uma convidada VIP. A construção da narrativa da acusação dependeu dos vazamentos seletivos meticulosamente endereçados. Não era descuido, mas método.

Quando confrontado com o primeiro revés —a concessão de habeas corpus pelo ministro do STF Teori Zavascki a alguns réus—, Moro recorreu à imprensa para indicar que a acusação podia envolver até mesmo o tráfico internacional de drogas.

As delações despontavam diariamente nos telejornais, e as conduções coercitivas eram acompanhadas desde cedo pela TV. Criou-se um clima de luta do bem contra o mal, mediado pela ideia de que os fins justificam quaisquer meios.

Dallagnol não estava, assim, de todo errado quando advertiu seus colegas para os riscos do processo: “Só há chance de nulidade se perdermos a opinião pública. Se perdermos essa, perdemos o caso”. Para vários procuradores, a opinião pública começou a ser perdida quando Moro se seduziu com o convite para ser ministro.

“Ele parecia um jovem universitário recebendo um diploma”, resumiu Bolsonaro ao confirmá-lo na pasta da Justiça. Picado pela vaidade, Moro abriu o flanco que ajudaria a desmoronar a credibilidade midiática da operação, seu principal pilar.

Era estranho que o juiz fosse se juntar ao candidato vencedor das eleições, porque, afinal de contas, com suas decisões, Moro havia contribuído de forma decisiva para o impeachment de Dilma Rousseff com a divulgação indevida de uma conversa gravada com Lula e ainda fora o principal responsável pela prisão do candidato mais bem-colocado nas pesquisas.

Como arremate, tornou pública a delação de Antonio Palocci a menos de uma semana da eleição, constrangendo até os representantes da acusação, que perceberam induzimento a voto na medida. Com o relato do processo paralelo, que corria no Telegram, as dúvidas sobre a parcialidade foram espancadas.

Antes mesmo de tomar posse como ministro, Moro respondia aos jornais que Bolsonaro já explicara suficientemente o que era preciso sobre o imbróglio de Fabrício Queiroz com as rachadinhas. Como ministro, atiçou a Polícia Federal contra críticos, iniciando a prática de intimidação pela Lei de Segurança Nacional, que se popularizaria com seu sucessor André Mendonça. Requisitou ainda a instauração de inquérito contra o porteiro do condomínio Vivendas da Barra, testemunha do caso Marielle Franco, em clara defesa dos interesses do presidente.

Mas só importou a Moro —e por tabela a —Rochamonte destacar, em seu desabafo pré-eleitoral, a fritura pública a que teria sido submetido por Bolsonaro, na vã esperança de que a última impressão é a que fique. Não coube lembrar que quando o escândalo da Vaza Jato veio a público, foi justamente o presidente que o levou a tiracolo ao estádio Mané Garrincha, em Brasília, onde assistiriam, desajeitadamente uniformizados, a um jogo do Flamengo.

Bolsonaro não vetou, como Moro sugerira, o juiz das garantias, inserido no pacote por amplo acordo no Congresso. Escreveu certo por linhas tortas. Tampouco colocou a força de sua bancada para impedir o retorno do Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) à estrutura do Ministério da Economia —onde, aliás, o órgão sempre esteve localizado, com ótimo desempenho. Foi cauteloso.

Moro tratava o Coaf como uma joia da coroa de seu superministério e escolheu para dirigi-lo o delegado que, conforme revelações publicadas pelo site The Intercept, atendia informalmente, ou seja, sem requisição formal, aos pedidos dos procuradores da Lava Jato quando ainda atuava no setor de inteligência da Receita Federal.

Desconheço as ideias de Moro para a política ou suas propostas para administração —tampouco seria um interlocutor idôneo para avaliá-las. Porém, o legado deixado para a magistratura e para o sistema penal apenas me permitem respirar aliviado pelo fato de que o sonho de Moro de chegar ao STF tenha se tornado, a esta altura, inexequível.

Prisão preventiva para delação, conduções coercitivas e uma casuística guinada do STF à compreensão pré-constitucional da presunção de inocência. O vale-tudo da Lava Jato deixou marcas ainda difíceis de apagar, sobretudo a perniciosa ideia de buscar o apoio popular para empoderar a decisão do juiz.

Como ministro da Justiça, Moro foi negacionista do grande encarceramento —chegou a comparar nossa taxa de aprisionamento com a de Mônaco, como se fossem grandezas compatíveis; pretendeu alojar presos em contêineres quando veio a pandemia e propôs um pacote criminal fortemente encarcerador, anunciando que não representaria criação de despesas.

Além de um legado de dor e sofrimento para a população preta e pobre do país, sempre sobrerrepresentada nos cárceres, ativou uma bomba-relógio para os orçamentos estaduais, responsáveis pela maioria dos gastos penitenciários.

A cereja do bolo (ou da bala) foi a enfática defesa da ampliação do excludente de ilicitude em relação aos homicídios praticados por agentes de segurança. O que poderia ser mais simbólico do que iniciar o pacote anticrime com uma norma que amplia a isenção de pena a homicidas? Só a justificativa, na qual situa sem reservas quem seriam seus alvos:

“O agente policial está permanentemente sob risco, inclusive porque, não raramente, atua em comunidades sem urbanização, com vias estreitas e residências contíguas. É comum, também, que não tenha possibilidade de distinguir pessoas de bem dos meliantes. Por tais motivos, é preciso dar-lhe proteção legal”.

Rochamonte elogia Moro por “percorrer corajosamente o campo minado da batalha” ao produzir sua narrativa. Esperemos que a imprensa também o percorra, mas para contar a história como aconteceu.

Marcelo Semer Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo e ex-presidente da Associação Juízes para a Democracia. Autor, entre outros livros, de “Os Paradoxos da Justiça: Judiciário e Política no Brasil”

 

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