Aldeia Nagô
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Rindo dos outros

12 - 16 minutos de leituraModo Leitura

Pedro Arantes é um cineasta de 28 anos, que estudou audiovisual na ECA e hoje é sócio de uma pequena produtora de cinema de São Paulo.

Já fez alguns curta-metragens, como A Guerra de Arturo, ganhador de prêmios no Festival Internacional de Curtas de São Paulo, no Amazonas Filmes Festival e o Festival de Cinema Ibero Americano de Huelva, na Espanha. Para a TV, Pedro Arantes dirigiu séries de humor como a Vida de Estagiário, para a TV Brasil, e Olivias na TV, para o Multishow. 

Ele também é o diretor de O Riso dos Outros, documentário de uma hora de duração. O filme já atingiu mais de 170 mil visualizações no YouTube, com mais de mil comentários, diversas repostagens, resenhas e críticas em blogs e afins. Com entrevistas e depoimentos, O Riso dos Outros, expõe uma ferida contemporânea: o humor que, por trás de um discurso que se apresenta como libertário e inconformista, limita-se a reproduzir  um ponto de vista conservador e reacionário, escondendo-se por trás da fachada do “politicamente incorreto” para humilhar mulheres, homossexuais e pessoas pobres. Entrevistei Pedro Arantes para o blogue.

Assisti ao Riso dos Outros.  Gosto do filme e acho que deve ser visto por toda pessoa interessada em debater a cultura contemporânea. Ele ajuda a entender porque certas piadas são uma decepção política e têm cada vez menos graça. O depoimento de Pedro Arantes:

Por que você resolveu fazer um filme sobre este humor que pretende ser politicamente incorreto?

Porque o humor é um assunto bem importante para mim e para várias pessoas com as quais eu trabalho e convivo. Eu já vinha discutindo com amigos essas questões dos limites, do que é ou não ético, do tipo de piada que queremos fazer e que queremos evitar. E também já vinha pesquisando essa questão da construção do discurso humorístico, do que é ou não engraçado, do que rimos ou deixamos de rir. E achei que a discussão que se fazia sobre os limites do humor, muito calcada nas controvérsias dos humoristas politicamente incorretos, não se aprofundava suficientemente no assunto. Então parti dessas controvérsias, que estão quentes e levantam a bola, para realizar o filme. Claro que durante o processo de pesquisa e gravações eu fui entendendo uma série de coisas e enriquecendo minha compreensão sobre o assunto.

Outro ponto particularmente interessante do politicamente incorreto é que ele se coloca como apolítico, com o discurso de que as piadas são “apenas uma piada”, embora o próprio termo “politicamente incorreto” demarque uma posição política clara: ser contra o politicamente correto. Nesse sentido o politicamente incorreto quer ser transgressor e libertário, e eu achava importante discutir em que termos essa suposta transgressão se realiza.

Num momento do filme, para debater a origem desse tipo de humor, um dos entrevistados faz a pergunta clássica: o que vem primeiro, o ovo ou a galinha? Na sua opinião, o que vem primeiro: o humorista mal educado ou o público deformado?

O público. Claro que esse é um processo que se auto alimenta, mas o que respalda a existencia do humorista é o público. Não haveria o humorista, ou pelo menos ele não teria a menor relevância, se não houvesse gente disposta a rir do que ele diz. Na verdade, nesse tipo de humor que tem muito pouco de transgressor, o humorista é quase um reprodutor, numa chave cômica, dos lugares comuns que já estão na cabeça do público. 

 Por outro lado, o público nunca seria público se o humorista não subisse no palco e contasse as piadas. E talvez o público nunca percebesse que acha graça daquelas afirmações mal educadas se o humorista não as fizesse. Então o público e o humorista estão compartilhando um mesmo subtexto humorístico que a relação entre os dois constrói e reitera. Nesse sentido, pouco importa quem veio antes: o humorista tão é responsável por reforçar esse tipo de humor ao fazer piadas quanto o público ao rir delas.
Só que o humorista é o artista da relação. Cabe a ele portanto o papel de surpreender, de propor ao público novas piadas, de jogar com os preconceitos da platéia de modo a tirar o riso de outros lugares, provavelmente menos confortáveis mas certamente mais interessantes. Talvez ao fazer isso ele perca parte do público, ou ganhe novos públicos, ou ainda consiga transformar parte do público que o acompanha.

Estamos falando de um humor ligado ao preconceito de classe, de gênero, de cor e etc. Você acha que estes humoristas fazem sucesso de verdade? Não lembro de ninguém repetindo as piadas dessa turma em conversa de bar, não vejo quem tenha lançado um bordão que passou a ser repetido pelo cidadão comum — como acontecia com humoristas de antigamente, de Chico Anysio a Jô Soares, e mesmo algumas fases do Casseta & Planeta. Por quê? Será que eles conseguem chegar ao povão?

Sim, eles fazem sucesso. Basta ver o tamanho dos eventos que promovem, muitas vezes para mais de 2.000 pessoas. Basta ver sua enorme repercussão na internet; youtube e redes sociais. Basta ver o número de pessoas que compareceu a Praça da Sé na Virada Cultural para prestigiar o palco de stand-up.

Se você nunca ouviu pessoas no bar reproduzindo esses humoristas da maneira clássica, através de chistes ou bordões, é justamente porque o stand-up apresenta essa novidade formal de um texto que tenta ser mais naturalista, despojando-se desses recursos. Por outro lado eu já ouvi conversas inteiras em mesas de bar, em meio a muitas risadas, que eram idênticas à rotina de vários comediantes. Na verdade elas são tão parecidas que podemos nos perguntar se algumas rotinas não seriam emulações de conversas de boteco. Então, como eu disse anteriormente, é uma relação entre humorista e público que constroe e reforça um imaginário humorístico calcado muitas vezes nesses preconceitos que você aponta.

Pelo que eu pude observar, sem nenhum embasamento estatístico, o público desses humoristas é majoritariamente jovem e de classe média. Acho que esse humor não chegou no “povão”, que não pode pagar espetáculos de R$ 50, em parte porque não está em grandes canais de TV, notadamente Globo, Record ou SBT. E não está lá porque não é um humor para toda família. É um humor agressivo, que por isso tem nos jovens seu principal público.

Agora, lidar com preconceitos de classe, cor, gênero, como você coloca, não é exclusividade desses humoristas. O Casseta e Planeta, por exemplo, assenta muitas piadas em uma visão de mundo machista. Sem falar no Zorra Total. Mesmo Costinha, que tinha seu brilhantismo, era extremamente homofóbico, com a clássica “piada da bichinha”. O problema dessa nova geração de humoristas é quando ela se coloca como uma grande novidade, ou ainda como libertária e transgressora, e o que faz é repetir, de maneira agressiva, as mesmas piadas que o Costinha já fazia com mais graça e leveza. 

 Conheço professores de filosofia que dizem que a cultura “politicamente correta” é uma forma de repressão, que limita a liberdade de expressão. Muita gente diz que o humorismo está numa fase ruim porque sofre de uma patrulha de movimentos sociais, sejam feministas, organizações que combatem o racismo e assim por diante. Como você vê isso?   

Embora tenha surgido em textos da New Left americana nos anos 70, a expressão “politicamente correto” toma o sentido atual quando é apropriada de maneira pejorativa pela direita americana nos anos 90. A partir daí o termo é popularizado como forma de desautorizar e ridicularizar uma prática adotada por parte da esquerda de referir-se a determinados grupos historicamente discriminados com termos que não carreguem em si o peso da discriminação.

Ao fazer essa apropriação, os intelectuais conservadores americanos usaram de um expediente já consagrado pela direita mundo afora, que é fazer-se de vítima enquanto atacam seus adversários. Mais ou menos o que vemos acontecer, por exemplo, quando intelectuais de direita fazem no Brasil referência ao chamado “controle social da mídia”.

A verdade é que nunca houve de fato nenhuma pressão por parte dos movimento sociais para que o conjunto da sociedade adotasse outros termos e nomenclaturas. Nunca existiu de fato a “ditadura do politicamente correto”. O que houve foi a percepção de que a língua não é neutra. Quer dizer, não apenas as pessoas que emitem os discursos não são neutras como as próprias palavras carregam em si valores historicamente construídos. Assim sendo, nada mais justo que os grupos historicamente oprimidos, ao tomarem consciência desse fato, passassem a usar outros vocábulos para referir-se a si e aos demais.

Essa prática não pode ser classificada sob nenhum aspecto como uma limitação da liberdade de expressão. Porque ninguém foi ou é proibido de usar nenhum termo para referir-se a quem quer que seja. As velhas palavras continuam aí, só que agora convivendo e disputando espaço com novos termos. Nesse sentido, o uso das expressões chamadas “politicamente corretas” é a colocação do contraditório por parte dos grupos historicamente oprimidos. Ora, se é a colocação de um novo ponto de vista, contrário ao ponto de vista dominante, como podemos falar em limitação da liberdade de expressão? Deveríamos antes falar em aumento da liberdade, pela inclusão da expressão de grupos que antes não se expressavam.

Acho que dizer que o “humorismo passa por uma fase ruim” é uma afirmação muito vaga e sem embasamento. Onde o humorismo passa por uma fase ruim, no Brasil? Aqui as maiores bilheterias do cinema são filmes de comédia, espetáculos humorísticos lotam por finais de semana seguidos, e novos humoristas não param de aparecer. Basta ver o fenômeno recente na internet chamado Porta dos Fundos, que é muito legal, diga-se de passagem.

E ainda que se argumentasse que a tal fase ruim não de público mas de qualidade, como justificar que essa fase seja resultado de uma suposta patrulha? Nos Estados Unidos, o país onde o policamente correto esteve mais de moda, por assim dizer, o humor atinge níveis de originalidade e excelência cada vez mais impressionantes, inclusive com muitos humoristas polêmicos, porém não “politicamente incorretos”, como Louis C.K. por exemplo.

Existe um debate sobre o racismo na obra de Monteiro Lobato. Em várias passagens de seus livros é possível encontrar trechos que leitores negros consideram ofensivos. Como se deve lidar com isso, em sua opinião? 

É preciso entender o contexto em que as obras de Monteiro Lobato foram escritas além da própria biografia do autor. Muitos autores consagrados podem ser considerados racistas sob alguma perspectiva. Gregório de Matos, por exemplo, tem alguns versos claramente racistas. Ora, no Brasil do século XVII era muito improvável, quase impossível que um branco na posição de Gregório não fosse racista. Sendo assim, é lógico que sua obra estará impregnada de uma visão de mundo racista. Isso diminuí a qualidade literária de seus poemas? A princípio não, já que faz parte da própria contingência do autor, a qual ele não poderia contornar.

Monteiro Lobato escreveu suas principais obras nos anos 1930, um período no qual já não existiam escravos no Brasil, mas ainda muito longe da criminalização do racismo de 1985. Ou seja, num Brasil extremamente racista. Mais do que racista, Monteiro Lobato era eugenista, como está comprovado em várias de suas correspondências. Embora não reste dúvida quanto a esse ponto, questionar como o racismo de Monteiro Lobato afeta a qualidade de sua literatura me parece uma discussão bizantina. O cinema de Griffith é menos importante para a criação da narrativa clássica porque ele era um entusiasta da Ku Klux Klan? Não. Os filmes de Leni Riefenstahl são menos impressionantes esteticamente por serem obras de propaganda nazista? Não. Nesse sentido, Monteiro Lobato deve ser censurado? A princípio não.

Só que no caso de Monteiro Lobato existe um problema: seus livros são infantis. Eles são lidos por crianças incapazes de entender essa questão do contexto histórico. Crianças que podem achar normal e até engraçado chamar a Tia Nastácia de “preta fedida” por exemplo. Nesse caso, cabe no mínimo uma regulamentação de classificação indicativa. Mais ainda, cabem notas explicativas do editor fazendo considerações acerca do autor e dos termos por ele utilizados. Cabe ainda uma recomendação de órgãos competentes sobre a maneira pela qual professores devem trabalhar o livro em sala de aula, e a partir de que idade. Nada disso é absurdo. Absurdo é tomar Monteiro Lobato, ou qualquer outro artista, como um totem que não pode ser desmistificado. Como um canône sobre o qual não cabem críticas e revisões. A sociedade está em constante transformação e isso é positivo. Ficar preso a ícones do passado como se eles fosse intocáveis é uma atitude reacionária que não tem razão de ser. Desmistificar Monteiro Lobato, sem diminuir o que ele possa ter de positivo, é necessário sobretudo se pretendemos expor crianças a um autor que acreditava na superioridade da raça branca.

Edward Said, um dos grandes pensadores da cultura contemporânea, diz que o preconceito é uma construção cultural. Ele afirma que  a chamada cultura ocidental foi uma forma do Ocidente explicar e justificar sua dominação sobre outros povos, que recebem um tratamento inferiorizado, colonizado. Você acredita que nós  vivemos um processo semelhante no Brasil atual, onde os tipos populares são retratados de forma ignorante e brutalizada?

Acho que podemos dizer isso sim. E acho que isso não é exatamente uma novidade. As classes dominantes brasileiras sempre precisaram se diferenciar do povo, e o preconceito é uma forma de fazer essa diferenciação e afirmar uma suposta superioridade. Existe um lugar no imaginário brasileiro onde o povo é pobre, feio, preto, desdentado, mal-cheiroso, ladrão em potencial, cachaceiro e corintiano. E esse imaginário não é exclusivo à elite ou à classe média, embora a segunda tenha a necessidade mais agressiva de fazer essas diferenciação pela proximidade que se encontra do povo e o medo de decair à ralé.
Esse imaginário muitas vezes é compartilhado por populares que reproduzem essa visão sobre seus congêneres, numa demonstração exemplar da noção marxista de ideologia. E acho que fazer piadas reafirmando esse tipo de preconceito serve justamente para sedimentar essa ideologia, rindo da inferioridade do outro – que graças a Deus não sou eu.

Você lembra de alguma piada boa que tenha ouvido recentemente?  

Não. Mas faz tempo que não escuto piada no formato clássico de piada: setup e punch. Acabo assistindo mais séries e filmes de comédia. Nesse sentido, tenho gostado bastante do Porta dos Fundos e de uma série americana que nem é tão nova, chamada Community. Em stand-up, acho o Louis C.K. insuperável.  É difícil contar uma piada dele porque muito da graça vem do jeito que ele conta a piada. Não é exatamente o estilo “contador de piada” do Ary Toledo, por exemplo, no qual a piada pode ser contada por qualquer um.

Pelo que entendi, em sua opinião a única  novidade dos politicamente incorretos não se encontra na escola de humor que eles seguem — já vinha do Costinha, digamos assim — mas em sua ideologia. Embora conservadores e preconceituosos, eles se apresentam como libertários e transgressores. É isso?

Acho que seria mais o contrário. Eles seguem outra escola de humor em relação ao formato, que é a escola do stand up comedy. Não fazem aquele tipo de humor mais tradicional que conhecemos no Brasil (imitação, caracterização, personagem, contar uma piada). O stand up tem essa coisa mais despojada, do humorista subir no palco sem estar encarnando nenhum personagem. E também do texto dele ser uma coisa mais natural e fluída, como uma conversa, e não aquela coisa do contador de piada: “ah, e tem aquela do português: estavam três portugueses…”. Porém muitas das piadas que fazem são releituras, segundo essa nova estética, de piadas batidas.

Embora possam mudar situações e personagens, são piadas que operam segundo a mesma lógica humorística e que se encontram num mesmo campo ideologicamente conservador. Então seria uma nova roupagem para velhas piadas: muda a forma (e portanto a escola humorística) mas permanece o conteúdo (a “escola” ideológica).  A questão é que os caras muitas vezes se colocam como transgressores, por falar o que pensam e fazer piada de tudo. Por exemplo, eles usam muito palavrão, o que até pouco tempo atrás não era tão comum no humor brasileiro. Só que embora de fato façam piada com tudo, eles raramente estão transgredido algo, porque transgredir é sair do lugar comum, é contrapor-se ao que está estabelecido, e não reafirmar os velhos preconceitos com novas palavras.

Então eu acredito que o politicamente incorreto é uma reação conservadora. São pessoas que querem continuar fazendo algumas velhas piadas e colocam-se como vitimas de uma suposta opressão do politicamente correto, que na verdade nunca existiu. 

 Sempre penso que o  humor tem a ver com nossa capacidade de observação crítica da realidade. Você acha que estamos perdendo isso?

Não. Acho que sempre houve dois tipos de humor, um que ri para criticar e outro que ri para reafirmar, de maneira cordial, violências e desigualdades. E acho que o segundo tipo sempre foi extremamente popular, muito mais que o primeiro. A novidade é existir um debate sobre esse tema, que obriga humoristas a rever seus conceitos e repensar suas piadas. Só a existência e repercussão desse debate já demonstra nossa capacidade de crítica. Acho, pelo contrário, que têm surgido humoristas que cada vez mais conseguem fazer bom humor com observações críticas da realidade, e espero que esse fenômeno seja crescente.

Artigo de: Paulo Moreira Leite

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