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Se jantares de Gilmar e Temer são oficiais, deveriam estar na agenda, se são pessoais, geram suspeição. Por Cássio Casagrande

6 - 8 minutos de leituraModo Leitura
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Uma das primeiras coisas que aprendi quando comecei a advogar é que nem tudo que é necessário à profissão está nos Códigos. Tanto o velho CPC (art. 405, § 30., III), como o novo (art. 447, § 3º., I) estabelecem que a testemunha será considerada suspeita se tiver com a parte “amizade íntima”. 

Diante de uma eventual contradita (alegação de suspeição da testemunha pela parte contrária), o juiz deve rapidamente desvendar se a testemunha de fato é amiga íntima da parte que solicitou o seu testemunho. Mas como os juízes fazem para descobrir a alegada intimidade? Isso não está no código e ninguém me ensinou na faculdade.

Mas logo percebi na prática da advocacia que algumas técnicas recorrentes eram utilizadas. O juiz indaga: “o senhor é amigo da parte?”. A testemunha responde: “não, fomos apenas colegas de trabalho”. O magistrado continua: “o senhor frequenta a casa do autor da ação?”. Segue a resposta: “sim, todo sábado”. “E para que?”, questiona o juiz. “Para comer um churrasco, que ele sabe preparar muito bem”. Isto aconteceu comigo em uma das minhas primeiras audiências e então aprendi que deveria selecionar melhor as testemunhas indicadas pelos meus clientes.

Só convidamos para frequentar e comer na nossa casa pessoas com as quais temos um grau mínimo de proximidade e afetividade; e se estes comensais são visitas habituais, o grau dessa intimidade tenderá a ser maior. Eu imagino que esse mesmo critério seja válido para verificar a eventual amizade íntima entre um magistrado e a parte, fato que caracterizaria sua suspeição (CPC, art. 145, inc. I). Então, parecem-me perfeitamente razoáveis os inúmeros questionamentos que a comunidade jurídica e os meios de comunicação têm feito ao jantar que o Ministro Gilmar Mendes ofereceu ao Presidente Michel Temer, e que talvez tenha sido uma retribuição às inúmeras visitas documentadas na imprensa que o Ministro do STF fez ao Palácio do Jaburu.

É evidente que não podemos comparar pura e simplesmente o exemplo utilizado anteriormente com a situação de Michel Temer e Gilmar Mendes. Mas também não podemos descartá-lo de todo. O exemplo que dei acima envolve cidadãos na sua esfera exclusivamente privada.  De forma diferente, Temer e Gilmar ocupam altíssimos cargos da República, do executivo e do judiciário, e é natural que em decorrência das relações institucionais entre os poderes, haja contato pessoal eventual entre os ocupantes destes cargos. Mas também, diferentemente do caso dos nossos churrasqueiros lá de cima, Temer e Gilmar, exatamente por serem autoridades de ramos distintos do governo, têm a disciplinar-lhes as relações – inclusive pessoais – o princípio constitucional da separação dos poderes.

A questão das relações e contatos entre os ocupantes dos poderes sempre foi importante na nossa tradição constitucional liberal-democrática.  Basta lembrar que durante os trabalhos da Assembleia Constituinte que se seguiu à Revolução Francesa, os seus membros debateram acaloradamente e durante intermináveis sessões se os ministros do rei poderiam sequer pisar na sede do parlamento, tamanha era a preocupação em manter estritos os limites entre os representantes dos três poderes (o fato está registrado no célebre livro do constitucionalista francês Léon Duguit, Assemblée Constituante de 1791).

Então, se é inevitável que as altas autoridades do executivo, legislativo e judiciário tenham contatos institucionais e até mesmo sociais, é preciso que fique muito claro quando este relacionamento está no âmbito público dos encontros oficiais e cerimoniais entre titulares dos poderes e quando está no âmbito privado da mera amizade (especialmente porque estamos em uma … República).  Afinal, Temer e Gilmar também são “colegas de trabalho” em algum sentido, inclusive suas repartições estão situadas numa mesma praça de Brasília. Por isso, é preciso saber se estão jantando em uma “reunião da firma” ou em uma data especial da família.

A coisa se complica ainda mais porque o palácio do Jaburu, como qualquer palácio presidencial – e isto é uma das reminiscências da monarquia nos sistemas republicanos presidencialistas – mistura as duas funções: privada (é lá que o presidente dorme, toma banho e joga baralho) e pública (pois afinal é um prédio público custeado pelo povo, onde o presidente também pode trabalhar, inclusive recebendo cerimonialmente o presidente do STF ou do TSE).  Então, parece razoável exigir-se que a presidência da República (sob qualquer presidente) esclareça sempre previamente a que título o presidente está recebendo um conviva no palácio.

Sendo também o seu lar, o presidente tem todo o direito de receber os amigos para um churrasco e uma partida de truco regada a garrafas de cerveja (as churrascadas com piscina do presidente Lula eram famosas). E, aliás, se o fizer, ninguém tem nada com o que se discute no evento, pois estamos na dimensão privada da presidência.  Todavia, se alguém está sendo recebido nesta condição, pressupõe-se que a visita é “de amigo”, de alguém que priva da intimidade do presidente. E aí, parece-me evidente que se aplicam todos os dispositivos legais relativos à suspeição, seja para afastar um magistrado ou uma testemunha.   Mas se a visita não for para um churrasco e uma partida de truco – já que o palácio também é lugar de trabalho -, o presidente tem que observar o mesmo padrão estabelecido para o Palácio do Planalto, isto é, o registro público de sua agenda. Ao que se sabe, simplesmente não existe hoje esta transparência, para se determinar se o presidente está recebendo visitas institucionais ou privadas.

E, no caso do Ministro Gilmar – como ele não vive em palácio qualquer – parece claro que os convidados que recebe para jantar em sua casa (fora do horário de expediente), dificilmente poderiam ser classificados como “visitas de trabalho”, até porque neste caso uma agenda pública teria que ser divulgada, e não creio que o apartamento do Ministro tenha uma agenda pública de visitações.

Há ainda, acredito, outra anomalia. Vamos supor que a visita do Presidente Temer ao Ministro Gilmar, apesar do horário e local atípicos, tenha sido institucional, para tratar de assuntos da República. Mas o anfitrião estava ali em que condição?  De presidente do TSE ou como membro do STF? Se foi como presidente do TSE, qual foi a pauta?  Ele informou aos pares do tribunal sobre a reunião e seus desdobramentos? Houve registro oficial?  Se foi como Ministro do STF, ele representava a instituição? (ao que me consta, esta função hoje é ocupada pela Ministra Cármem Lúcia). Se o chefe do executivo quer tratar de assuntos da República com o judiciário, ou ele recebe a presidente da Suprema Corte, ou então reúne-se com todos os seus ministros.

Este debate não é nada trivial, pois, é claro, há outro agravante.  O presidente foi réu no TSE recentemente e poderá sê-lo novamente em breve no STF.  Ou seja, é muito pertinente saber se o encontro do presidente com um ministro do STF no Jaburú ou na casa de um deles é institucional ou privado, pois é exatamente a partir desta resposta que se pode determinar a ocorrência ou não de suspeição de um dos juízes que o julgaram ou que poderão julgá-lo.

Além do mais, sendo o Ministro Gilmar um dos maiores juristas do país, não é impertinente questionar-se o tipo de conversa que eles estão mantendo. Não parece razoável acreditar que estas altas autoridades da República estejam se reunindo para discutir os incríveis erros de arbitragens do brasileirão. O presidente Temer está enrolado em vários processos, de alta complexidade. Como grande jurista que é, seria lícito imaginar que Gilmar talvez lhe possa dar bons conselhos jurídicos. Neste caso, são conselhos “de amigo” ou “de ministro do STF”?

O Ministro Gilmar já alegou que estaria conversando com autoridades de outros poderes sobre “reforma política”, tema que estaria relacionado ao seu cargo de presidente do TSE.  Eu diria que este é um assunto a ser debatido e resolvido por aqueles que foram eleitos para esta finalidade, isto é, os integrantes dos poderes legislativo e executivo. Os juízes são designados para interpretar e aplicar a lei. Só isso. Os magistrados que também exercem atividade acadêmica, como o Ministro Gilmar, podem ainda, perfeitamente, contribuir para o debate escrevendo e palestrando sobre o assunto. Mas se desejarem partir para a ação política, emprestando sua inteligência e vasta cultura aos políticos eleitos pelo voto popular, devem passar antes no departamento de pessoal do tribunal para protocolar o seu pedido de exoneração.

(…)

+ Cassio Casagrande é doutor em Ciência Política e Professor de Teoria da Constituição e Direito Constitucional Comparado (Brasil-EUA).

Artigo publicado originalmente no Jota

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