Somos uma espécie pré-histórica perdida nas redes sociais e nos shoppings. Por Luiz Felipe Pondé
As crianças deveriam estudar a pré-história para conhecerem melhor a nossa ancestralidade. O livro lançado nos Estados Unidos “A Hunter-Gatherer’s Guide to the 21st Century: Evolution and the
Challenges of Modern Life”, do casal de biólogos evolucionistas Heather Heying e Bret Weinstein, é um belo exemplo da nossa ancestralidade renegada pela experiência contemporânea.
O livro, pensado como um guia do caçador-coletor que ainda habita em nós, os modernos do século 21 —essa é uma síntese do título em inglês—, é muito rico em detalhes sobre o mal que as “hipernovidades”, usando o termo dos autores, têm causado para uma espécie como a nossa, que data do paleolítico superior.
Ou seja, somos uma espécie pré-histórica perdida nas redes sociais e nos shoppings. Nosso organismo é o mesmo há pelo menos 200 mil anos. O habitat ao qual estamos adaptados é aquele em que viviam os caçadores-coletores. Mal começamos a ser agricultores massivamente, e a Revolução Industrial capitalista atropelou esse lento processo de mudança para nos lançar em um furacão de transformação do habitat e dos modos de vida.
Nossa cultura e hábitos se transformam mais rápido do que os nossos genes, que são os mesmos há centenas de milênios e estão ancorados num tempo ancestral genético estranho ao mundo moderno. Nossa (epi)genética, ou seja, a base de como agimos, é pré-histórica, importando muito pouco o que pensamos sobre a tal da construção social.
Esses modos de vida englobam hábitos religiosos, mobilidade, alimentação, afetos, organização da violência —também conhecida por aí como política—, sexualidade, tecnologias, conhecimentos e autoconhecimentos diversos.
A intenção dos autores é, numa linguagem casual e sem afetações técnicas, alertar para essa enorme ignorância quanto à nossa real ancestralidade e ir além do tão em voga fetiche das identidades. Nossa característica mais profunda e permanente é a do caçador-coletor tentando se achar num mundo que não é mais o seu. E essa identidade não é somente cultural, mas também biológica e psicológica.
Olhemos para um exemplo de hipernovidade relacionada à questão da reprodução e dos afetos, tema central no sucesso evolucionário.
Nossa psicologia ancestral é marcada pelos enormes cuidados com a cria por causa do nosso nascimento prematuro num ambiente hostil, o que gera a necessidade de alto investimento parental.
Homens e mulheres geravam filhos com idades que hoje entendemos como 14 anos, mais ou menos. As mulheres ficavam grávidas o tempo todo e muitas vezes morriam junto com a cria. Já as mulheres na menopausa, ou seja, fora do mercado reprodutivo, ajudavam na lida com a grande quantidade de crianças, já que as jovens engravidavam constantemente e trabalhavam na subsistência junto aos homens.
Hoje as mães estão mais velhas, já sem saúde para a cria, com famílias atomizadas e ninguém para colaborar com os recém-nascidos. Solidão da criança, solidão da mãe. As mulheres na menopausa têm carreiras profissionais e não estão a fim de cuidar dos netos. Logo, zero crias. E muito ônus.
E os homens com isso?
Um enorme esforço moral da espécie —ser moral foi um ganho adaptativo— foi feito para os homens investirem na prole. A ideia de que “pai é quem cria” é uma verdade pela metade e revela uma ignorância comum sobre a psicologia masculina.
Uma coisa é um homem aceitar um filho que vem junto com a mulher que ele ama. Outra coisa bem diferente é descobrir que aquela criança não é sua, embora ele pensasse que fosse. Neste caso, fere-se uma expectativa ancestral: o homem investe na cria somente quando confia que a mulher é fiel a ele.
As mudanças nesse território ocorrem, mas a custos altos para todos no campo dos afetos adaptados. Pouco importa o que as psicólogas feministas dizem. A confiança masculina é tênue quando o assunto é a paternidade. Isso é uma espécie de inconsciente evolucionário ancestral.
O sexo é barato para os homens. Quanto mais a mulher é fácil, mais barata ela se torna. Com isso, menos o homem investirá na prole, já que a possibilidade de criar um filho de outra pessoa se torna maior.
É a quebra da confiança na mulher que rompe o investimento paterno.
Luiz Felipe Pondé
Escritor e ensaísta, autor de “Notas sobre a Esperança e o Desespero” e “Política no Cotidiano”. É doutor em filosofia pela USP.
Artigo publicado originalmenete em https://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/2021/12/somos-uma-especie-pre-historica-perdida-nas-redes-sociais-e-nos-shoppings.shtml