Tapauá é mesmo mais embaixo por José R. Bessa Freire
Dona Lourdes Normando dava aula particular em sua casa, no Beco da
Indústria, bairro de Aparecida, Manaus. Às sextas-feiras, dia de
sabatina, ela sapecava bolos de palmatória em quem errava a tabuada.
Um dia, em 1955, na prova oral de geografia, perguntou: – "Seu
Bessa-Freire, qual o rio que banha a cidade de Tapauá?". Era a
primeira vez que eu ouvia falar em Tapauá nos meus sete anos de
vida. Arrisquei: – "Rio Juruá". Rimava. Mas não era a solução. Ela,
então, me fez copiar duzentas vezes a frase: "Tapuá fica no rio
Purus". Fiquei com calos no dedo, mas nunca mais esqueci.
Lembrei do método de ensino da dona Lourdes nessa semana, quando
li as declarações a O Globo do Comandante Militar da Amazônia,
General Augusto Heleno. Ele aloprou. Criticou duramente o Governo,
dizendo que a terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima,
demarcada por FHC em 1998 e homologada por Lula em 2005, constitui
uma ameaça à soberania nacional, que "dar terras" aos índios em
faixa de fronteira é uma ameaça à integridade nacional e blá-blá-blá.
Foi apoiado pelo coronel Jarbas Passarinho, ex-ministro da
Educação da ditadura militar, que na época, defendeu os acordos
MEC/USAID, favoráveis à intervenção norte-americana na universidade
brasileira. Mas agora, quando se trata de terra indígena,
Passarinho vira ‘nacionalista’, fica macho pacas, e diz que Raposa
Serra do Sol é uma "fronteira viva", ocupada por fazendas
produtivas, que sua demarcação ameaça a integridade nacional e blá-blá-blá.
O chefe do Estado Maior do Leste, general Mário Madureira, vê o
risco de os índios solicitarem a separação dessas terras do Brasil,
como em Kosovo, e blo-blo-bló. O Clube da Aeronáutica publicou
comunicado, subversivo e insolente, intitulado "Não recue, general
Heleno", onde lhe manifestou seu apoio "até às últimas
conseqüências" e mandou recado a Lula: "Não se atreva, presidente, a
tentar negar o sagrado dever de defender a soberania e a
integridade do Estado brasileiro". E blá-blá-blá.
No plano político, a oposição aproveitou. O presidente nacional do
DEM (vixe, vixe!), deputado Rodrigo Maia, o ‘porquinho’, divulgou
nota. Nela diz que seu partido, órfão da ditadura militar, é contra
a demarcação e blá-blá-blá, ble-blé-blé, bli-bli-bli. O líder do
PSDB, Arthur Neto, mais discreto, discordou que um militar da ativa
fizesse pronunciamento de caráter político, o que é um gesto de
insubordinação, mas concordou com o conteúdo do discurso.
Até o deputado Aldo Rebelo (PC do B) cometeu um artigo, no qual
escreve que "a demarcação contínua da reserva Raposa Serra do Sol
foi um erro geopolítico do Estado brasileiro". Jura que "chegamos ao
paroxismo de tuxauas barrarem a circulação de generais do Exército
em faixa de fronteira". Termina, elogiando os bandeirantes, o
esquadrão da morte anti-indígena e bló-bló-bló, blu-blu-blu. Os
mortos da guerrilha do Araguaia tremeram em seus túmulos: "Foi para
isso que morremos?".
O próprio Supremo Tribunal Federal (STF), em decisão inusitada,
suspendeu a operação de retirada dos grileiros, ocupantes ilegais
das terras indígenas, que resistem, armados, a uma ordem judicial. A
partir daí, O Globo lançou campanha histérica de desinformação,
berrando em manchetes que os índios querem decepar o Brasil. O
editorial "Sandice Indígena" pontificou que "dar aos índios aquelas
extensões de terras" é injustificável, porque significa a
"desestabilização da agricultura local".
Todos esses "defensores da Pátria" falam em "dar terras", mas
ninguém "deu terras" aos índios. A Constituição apenas reconheceu o
direito de os índios usufruírem os territórios que ocupam
milenarmente e que são propriedade da União. Eu disse: DA UNIÃO. Os
índios não podem vender as terras, nem podem dá-las como garantia
para uma transação comercial, porque elas não lhes pertencem, são
propriedades da União, quer dizer, de todos nós. Um fazendeiro, sim,
pode vender suas terras a estrangeiros e impedir a entrada do
exército, porque afinal a propriedade privada é sua. Os índios não.
Acontece que as oligarquias, aves de rapina, acham que o que é
público lhes pertence, interpretam que podem se apropriar dos
espaços públicos.
Em entrevista à Rádio Bandeirantes, desmenti Aldo Rebelo. Nenhum
general – imagina! – pode ser impedido de exercer suas funções
constitucionais em terras indígenas, porque elas pertencem ao
Brasil. Falei que já existem bases militares dentro de todas as
terras indígenas de faixa de fronteira, que muitos índios servem o
Exército como soldados, que apesar dos jarbas e dos passarinhos, os
índios se sentem também brasileiros. Contei que assisti jogo da
Copa do Mundo numa maloca indígena, em tv alimentada por bateria
de carro, e que os índios vibravam com os gols da nossa seleção.
– Como é que algumas centenas de índios, que amam o Brasil,
armados de arco e flecha, podem ameaçar a soberania nacional? –
perguntei ao radialista. Ele retrucou que alguns militares achavam
que potências estrangeiras podiam manipular os índios (os
fazendeiros não). Ponderei que, nesse caso, – hipotético – os
militares deviam concentrar seu fogo contra essas potências –
hipotéticas – e não contra índios indefesos, de carne e osso, e que,
para isso, eu confiava nas Forças Armadas, que nos deu Rondon,
corajoso, sensível e inteligente, defensor dos índios. Não existe
nenhum argumento consistente que justifique expulsar os índios de
suas terras. Por isso, o blá-blá-blá não se sustenta.
Por trás dessa orquestração, o que existe mesmo é a defesa de
interesses particulares e não nacionais. Estão tentando confundir a
opinião pública para justificar a usurpação de terras. Exigir que
terras indígenas sejam – aí sim – "dadas" a fazendeiros significa
privatizá-las, ou seja, entregar a alguns indivíduos as terras que
nos pertencem. Guardiões das terras da União, os índios constituem
uma garantia da soberania nacional, da biodiversidade e da
sociodiversidade. Por que o usufruto pelos índios de terras que
ocupam milenarmente ameaçariam a soberania nacional, e não assim a
propriedade privada de fazendeiros, que inclusive possuem armas e
poder de fogo?
Não foi FHC nem Lula que "deram" terras aos índios. Foi a
Constituição de 1988 que reconheceu os direitos indígenas sobre as
terras da União. Não é uma política de governo, é uma política de
Estado. Rebelar-se contra isso é afrontar a lei maior do país. A lei
existe para ser respeitada por todos, do contrário, vira
bang-bang, faroeste, como aliás já está acontecendo em Roraima.
Quatro arrozeiros se armam e desobedecem uma decisão que cumpriu
todos os requisitos legais, num ato jurídico perfeito. O STF, ao
recuar, estimula os grupos que reagem com violência contra a lei,
quando ela fere seus interesses. Quem gritar mais alto, leva?
O ministro da Defesa, Nelson Jobim, que chamou o general Heleno na
catraca, declarou: "a questão está superada". Superada é uma ova!
Precisamos berrar a plenos pulmões que o que estão dizendo não é
verdade: Tapauá não fica no Juruá. Não se pode desinformar,
impunemente, as pessoas.
Proponho aplicar, sem a palmatória, o método da dona Lourdes
obrigando todos aqueles que confundem a opinião pública a escrever
mil vezes a frase: "as terras indígenas pertencem à União e não
ferem a soberania nacional, as terras indígenas pertencem à União e
não ferem a soberania nacional". Criarão calos nos dedos, mas
ficarão convencidos, se agem de boa-fé, daquilo que nós já sabemos:
que Tapuá é mais embaixo.
Publicado originalmente no Taquiprati – Diário
do Amazonas.