Aldeia Nagô
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Um verão quente, um futuro turvo: a amarga vitória do terror. Por Leonardo Padura

3 - 4 minutos de leituraModo Leitura
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Quando você ler estas palavras, outros fatos terríveis talvez já tenham acontecido e certas situações dolorosas tenham se precipitado em um ou vários lugares do mundo.

É que entramos em um tempo de voragens que só pode levar ao caos, ao medo, ao ódio e ao terror. A algo semelhante a um Apocalipse. Ou a uma época que pode ser muito parecida à de tantos processos com os quais uma retrospectiva da história nos nutre e horroriza, desde as invasões bárbaras da antiguidade até o fascismo do século 20, passando pelas guerras “santas”, quer sejam chamadas cruzadas, pogroms ou jihad.

O mais terrível dos dias que vivemos hoje, neste exato momento, é que o simples fato de existir está se convertendo em uma roleta-russa.

No último 14 de junho, enquanto eu voava de Madri a Astúrias para assistir a um festival literário, um terrorista investia contra uma multidão na cidade de Nice e provocava cerca de cem mortes. Mas o alvo poderia muito bem ter sido meu avião. (Paradoxo: o festival ao qual assisti, na cidade espanhola de Gijón, era dedicado à defesa dos refugiados e à sensibilização do mundo para a situação deles).

Renata Borges/Editoria de Arte/Folhapress
Ilustração Leonardo Padura de 13.ago.2016

Alguns dias apenas mais tarde, enquanto eu me afastava de trem da cidade alemã de Munique para fazer uma leitura pública de minhas obras, outro terrorista disparava contra um grupo de pessoas presentes num café do local.

Eu poderia ter sido um dos atropelados em Nice ou dos massacrados em Munique? Ou, por acaso, alguns dias mais tarde, poderia ter estado saciando minha curiosidade estética no interior da igreja normanda onde outros terroristas surgiram e degolaram o sacerdote de 84 anos? Claro que eu poderia ter estado ali. Uma das vítimas poderia ter sido eu. Ou você que me lê agora. E até outro de meus colegas escritores de meio mundo que em Gijón nos pronunciamos em favor de um tratamento melhor aos refugiados do norte da África expulsos de suas terras também pelo terror.

Desde que a atual “temporada” desta nova guerra santa começou de maneira espetacular e irreversível com os atentados de 11 de setembro em Nova York, dezenas de milhares de pessoas (sou cauteloso no cálculo) já morreram em ataques terroristas ou nas respostas militares que eles suscitaram.

Mas desde então a espiral continuou a ascender e, em seu movimento, foi criando a crise que está impulsionando a marcha do que existe de pior na sociedade e na condição humana: os extremismos políticos, religiosos, raciais, geográficos, existentes de um lado e de outro. Ou seja, o objetivo maior foi alcançado e os fundamentalistas de sempre estão em festa, e por isso veremos mais atentados, mais batalhas de guerras santas, mais pogroms ou como se queira chamá-los hoje, mais cruzadas e, na Europa, talvez também na América, uma lamentável recuperação de uma ultradireita que, sem se dar o nome de fascista, retomará esse ideário negro e, ainda pior, alguns de seus métodos.

Estamos assistindo à vitória do terror e do ódio. E, como sempre, seremos aqueles que não praticamos nem acreditamos no terrorismo nem nos totalitarismos, os que não somos xenófobos nem extremistas, que talvez paguemos essas explosões de violência com nossas vidas –como em Nice, como em Munique– e também os que, com toda certeza, veremos alterado o destino de nossa vida em sociedades cada vez mais tensas e cheias de ódio, de controle e repressão.

Quem pode deter essa marcha em direção ao horror e como isso pode ser feito? É possível contrabalançar no presente os desmandos do passado e pactuar, conversar, negociar, ceder? Quem se sentaria à mesa para dialogar? E mais: é possível perdoar?

Lamento dizer a você, que agora me lê, que não vejo no horizonte próximo saídas dignas da encruzilhada à qual chegamos. As setas que indicam os caminhos possíveis estão marcadas “guerra”, “vingança”, “castigo”, “exclusão”…

Porque quando o que se busca é justamente fomentar o ódio, e para pô-lo em prática nada importa (nem sequer a própria vida ou o que diga ou deixe de dizer um livro), não há espaço para que algum caminho revela um sinal pequeno, mas alentador, que nos indique a direção da compreensão e, quem sabe, da conciliação. Ou, como escreveu Dante depois da passagem pelo inferno: o caminho para que possamos voltar a ver as estrelas.

Artigo publicado originalmente na Folha de São Paulo

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