Aldeia Nagô
Facebook Facebook Instagram WhatsApp

Uma África brasileira. Por José Eduardo Agualusa

3 minutos de leituraModo Leitura
Jose_Eduardo_Agualusa

Não posso deixar de pensar nos brasileiros, brancos, negros e indígenas, que chegaram a Angola e cujos descendentes se encontram entre as pessoas com quem cruzo

Escrevo esta coluna a partir de uma pequena cidade angolana, Moçâmedes, fundada por pernambucanos, fugidos à Revolução Praieira, em meados do século XIX.

Nos navios vindos de Pernambuco chegaram portugueses, brasileiros de origem portuguesa, e um número indeterminado de pessoas escravizadas, de ascendência africana. 
Estes brasileiros negros acabaram dando origem, no extremo sul de Angola, entre o mar e o deserto, a uma nova etnia, os quimbares, também chamados mbalis ou ovimbaris, que em quase tudo se distinguiam das populações locais.

A arte tumular mbali, embora muito degradada, continua a testemunhar a vitalidade dos quimbares, cuja cultura misturava alegremente elementos africanos, europeus e brasileiros. 
Nos cemitérios quimbares remanescentes, os visitantes ainda hoje se surpreendem ao encontrarem esculturas, em pedra-ferro, representando os interesses ou ofícios dos defuntos: leões, para os caçadores; cachimbos para os fumadores; uma bota, para um sapateiro, e por aí afora.

Existem, noutros portos africanos, em particular no Benim, no Togo e na Nigéria, famílias que se orgulham da sua ascendência brasileira — são descendentes de antigos escravos que retornaram ao continente, ou de comerciantes baianos que ali se estabeleceram.

A escritora anglo-nigeriana Bernardine Evaristo — que em 2019 ganhou o Booker Prize com o seu romance “Garota, mulher, outras” — descende de brasileiros.

O caso dos quimbares, contudo, é diferente, pois descendem de brasileiros negros chegados a Angola ainda na condição de escravos.

Conheço, em Luanda, famílias que afirmam descender dos soldados negros de Henrique Dias, que desembarcaram em Angola em 1648, na armada de Salvador Correia de Sá e Benevides (nascido na Espanha, mas filho e neto de cariocas), para combater os holandeses e seus aliados. Existem até famílias angolanas que se orgulham de possuir guerreiros potiguares na sua árvore genealógica. Estes guerreiros teriam chegado à África austral juntamente com os soldados de Henrique Dias, tendo combatido, com as respectivas armas tradicionais, quer contra os holandeses, quer contra as tropas da famosa Rainha N’Zinga M’Bandi, que se aliara aos primeiros.

Enquanto passeio pelas ruas ensolaradas de Moçâmedes — algumas das quais principiam junto ao brilho do mar, para se perderem, uns tantos metros acima, nas areias douradas do mais antigo deserto do mundo —, não posso deixar de pensar naqueles brasileiros, brancos, negros e indígenas, que aqui chegaram, fugindo às convulsões da História, e cujos descendentes talvez se encontrem agora entre as pessoas com as quais cruzo.

A matriz africana do Brasil é bem conhecida e inquestionável. São menos, contudo, aqueles que têm consciência plena do quanto Angola e o Brasil estão unidos por laços de sangue e de memórias. Não me parece possível compreender o Brasil sem conhecer bem Angola; mas também acho impossível compreender como Angola se formou e se consolidou, ignorando a contribuição brasileira em todo esse demorado, difícil, cruel e maravilhoso processo.

As crianças deveriam ser encorajadas nas escolas a olhar para a História, não como mais uma disciplina, a preto e branco, e pronta a servir, sobre o passado alheio, mas como um contraditório roteiro de prodígios, que explica o presente de cada um de nós, e nos ajuda a prever o futuro. Nem haveria melhor vacina contra o populismo, e outros males deste nosso tempo tão confuso. #

Publicado em O Globo 

Compartilhar:

Mais lidas