Uma história épica: Irmãs negras por Leonardo Boff
A Casa Grande e a Senzala não foram apenas construções sociais e físicas,
dividindo por um lado os brancos, donos do poder e por outro, os negros, feitos
escravos. Com a abolição da escravatura exteriormente desapareceram. Mas
continuam presentes na mentalidade dos brancos e das elites brasileiras. As
hierarquizações, as desigualdades sociais e os preconceitos têm nesta estrutura
dualista sua origem e permanente realimentação.
A vida religiosa que se
insere neste caldo cultural reproduziu em suas relações internas o mesmo
dualismo e as mesmas discriminações. Durante todo o tempo da Colônia os que
possuíam "sangue sujo", quer dizer, os que eram negros, indígenas ou mestiços,
não podiam ser padres nem religiosos. Além de puro racismo, típico da época,
argumentava-se que eles jamais conseguiriam viver a castidade. Esta
discriminação foi internalizada nestas populações desumanizadas a ponto de
sequer pensarem em ser padres, religiosos ou religiosas.
As
consequências perduram até os dias de hoje: a crônica falta de clero autóctone
no Brasil. Pelo número de católicos, deveríamos ter pelo menos cem mil padres.
Possuímos apenas 17 mil e muitos são ainda são estrangeiros.
Mesmo com
a revitalização da Igreja brasileira através do processo de romanização
inaugurada no final do século XIX com a vinda de congregações religiosas
européias, as pessoas negras ou mestiças continuaram sistematicamente excluidas.
Mas houve uma ruptura inauguradora. Em 1928 a Congregação das Missionárias de
Jesus Crucificado, fundação genuinamente brasileira, de uma leiga piedosa Maria
Villac, apoiada pelo bispo Dom Campos Barreto de Campinas, foi a primeira a
abrir a porta de seus conventos a mulheres negras.
Mesmo assim, não
escapou da influência da Casa Grande e da Senzala mental: houve a divisão clara
entre as oblatas, irmãs negras ou de pouca instrução e as coristas, brancas e
com instrução. Até o hábito era diferente, azul e branco para as coristas e
preto para a oblatas. A missão destas que constituíam quase a metade da
Congregação, era de servir às coristas, acompanhar seus trabalhos e assumir
todas as tarefas domésticas de um convento, desde cozinhar, lavar a roupa até
manter a horta e cuidar da criação de animais.
Por quarenta anos foi
assim, até que se abriu a janela do aggiornamento do Concílio Vaticano II
(1962-1965). Aboliram-se as divisões de tarefas, umas nos trabalhos manuais e
outras na vida apostólica. Como comentou Dom Odilon, bispo de Santos:"acabou-se
a escravidão na Congregação".
Esta história foi recentemente pesquisada e
escrita pelas próprias religiosas negras sob a orientação segura do historiador
Pe. José Oscar Beozzo com o título:"Tecendo memorias, gestando o futuro:
história das Irmãs Negras e Indígenas das Missionárias de Jesus
Crucificado"(Paulinas 2009).
Qual é a originalidade deste livro? É
mostrar o lento despertar da consciência das irmãs negras, de sua identidade
étnica, de seus valores específicos e de sua espiritualidade singular, feito de
histórias de vida narradas por irmãs negras, histórias de chorar, tal o nivel de
discriminação e de humilhação.
Mas o que transparece não é amargura ou
espírito de revanche. Ao contrário, é o de resgate da memória de tudo o que se
aprendeu nessa penosa caminhada e do lançamento das bases para um futuro mais
igualitário e respeitador das diferenças. Elas mostram que a identidade negra
não precisa ser trágica, mas foi e pode ser épica: feita de uma sábia
resistência e de um desabrochar lento mas seguro de seu próprio caminho de
libertação. As religiosas negras emergem como verdadeiras heroinas e muitas
delas com sinais inequívocos de santidade. Assim se supera uma visão
miserabilista dos negros e negras e se realça sua inventividade, sua capacidade
de ter alegria interior que se revela no riso e na festa, na música e na dança.
Esse livro vem preencher uma lacuna na historiografia negra na ótica da
vida religiosa. Ele suscita admiração mais que compaixão, vontade de conquista
mais do que resignação. Sua leitura nos edifica e nos faz humanamente mais
solidários.
Leonardo Boff é autor de Depois de 500 anos: que Brasil
queremos. Vozes 2000.