Eu gostaria de distinguir dois momentos ao falar sobre o os intelectuais. Primeiro: a decisão de que o PT fosse um partido de quadros, e não um partido de vanguarda nem um partido de massa, foi tomada graças à atuação do principal intelectual do partido, o Weffort. Eu participei de vários cursos de formação de quadros que ele organizou no início dos anos 1980. E o CEDEC (criado pelo Weffort para se contrapor ao economicismo do CEBRAP, ao qual ele também pertencia junto com FHC e Chico de Oliveira) foi um espaço decisivo para essa formação. Essa decisão foi muito importante porque integrou os intelectuais à tarefa partidária, deu-lhes um lugar no interior do PT, uma fisionomia que eles não têm em outros partidos. De minha parte, costumo dizer que, na verdade, foram os sindicalistas e os movimentos populares que fizeram a minha formação política e não o contrário. Depois, com as mudanças que as direções impuseram, aconteceu o que aconteceu com todos os militantes de base, que é o fato de que você discute, faz reuniões, propõe análises, traz reflexões, e isso não passa. Então chega um instante em que você diz: “Bom, a gente somos inúteis”.
José Arbex Jr. – Juro que estou tentando me convencer do que está falando, que é possível reconstruir o PT, retomar o discurso interno, que seja combativo etc. A pergunta é: até que ponto a reconstrução é compatível com a defesa de um governo que é uma sucessão de tragédias? Vamos imaginar que existe uma retomada da base petista, ela está discutindo a exigência da mudança da política econômica, e o governo Lula permaneça insensível a isso. O PT vai para a oposição?
Não tem dúvida. Se ele ficar insensível, vai.
Marina Amaral – Bom, vamos ao tema mídia?
Eu fiquei muito impressionada com dois textos que li nos últimos quinze dias. Um deles é do número especial da Caros Amigos“Como Nascem as Notícias”. Fiquei apavorada, porque eu tinha uma visão crítica clássica sobre os problemas dos meios de comunicação em geral como empresas privadas se definem por seus interesses de mercado e esses problemas no Brasil. Mas preciso explicar melhor porque fiquei tão apavorada com a matéria da Caros Amigos. Durante a atual crise, quem acompanha o noticiário todos os dias, e toda semana, talvez não se dê conta – eu só pude me dar conta, porque como expliquei antes, fui tomar contato com a situação em final de junho, começo de julho. Meu marido tinha guardado para mim as revistas, os jornais, e eu passei dois ou três dias só lendo sobre essa situação. Fiquei abobada não só, como expliquei, porque cada informação era desmentida na informação seguinte, ou porque o preconceito de classe era uma coisa que tinha aparecido a toda, ou o discurso do tudo igual… não era só isso. Algumas das publicações me deixaram assustada pelo grau da violência. Eu disse, é violento demais! Uma coisa insana, uma fúria que não dá para a gente entender. E por que era E por que era incompreensível para mim? Porque eu dispunha como elemento de análise só da compreensão ampla e mais abstrata dos meios de comunicação no capitalismo. Bom, aí, quando li essa matéria – que eu vou fazer o que o Adauto Novaes está fazendo, ele xerocou e panfleta no Rio de Janeiro -, você não avalia. É uma verdadeira revolução dos meios de comunicação brasileiros. Foi possível compreender com maior clareza onde está a violência e onde verdadeiramente está a corrupção. Porque o fato de que alguém possa se apossar de dossiês, dispor deles e vendê-los segundo a oferta e a procura e os interesses da hora, e com isso destruir instituições, destruir governos, destruir pessoas, é mais do que a gente pode efetivamente tolerar. Porque uma coisa é você dizer: "No capitalismo tudo é mercadoria, portanto os meios de comunicação são a mercadoria e a notícia é mercadoria, o jornalista é mercadoria". Outra coisa é você ter uma estrutura de tipo orwelliana em que você produz o fato. E produz o fato não porque tenha minimamente um compromisso social, um compromisso político que diz para você: “Eu preciso fazer isso”. Não: você produz o fato, porque você vende o fato. Então me dei conta, lendo essa reportagem, não daquilo que a gente já sabia, que é o poderio das empresas de comunicação, mas é o quanto a sociedade brasileira está desprotegida diante disso. Porque ela é levada a interpretações, a tomadas de posição, a práticas a partir de decisão inteiramente cínica e violenta de alguns a respeito de qual é a informação que vai ser dada, quando, de que modo, e com que fim. Então, o grau da manipulação ultrapassa tudo o que eu tinha pensado a respeito da publicidade, do marketing. É a realização efetiva, na minha opinião, de uma atividade fascista. O resto é brincadeira de criança. Então, ver essa operação como uma coisa mundana, lucrativa, corriqueira, uma trabalho como qualquer outro é muito apavorante. E que essa prática fascista venha por intermédio dos veículos de comunicação! Fiquei realmente apavorada. E foi isso, aliás, que me fez recuar com relação à idéia de que havia realmente uma crise. O tempo todo queria entender qual era a crise, qual a causa, como ela funcionava, e corno resolvê-la. E a leitura dessa reportagem é que me fez perceber que não existe crise. Existem problemas graves, todos esses que discutimos aqui. Não se trata de recusar nenhum deles, mas a crise, sobretudo como ela é apresentada, não existe! Ela foi criada num momento que alguns julgaram interessante inventá-la (como eu disse no começo da entrevista). Um produto midiático que avassalou a sociedade brasileira. Que pôs em risco instituições. Que pôs em risco pessoas. A sociedade brasileira precisa discutir isso aqui, precisar ler, eu também vou planfetar isso, porque é decisivo! E outra coisa que também me impressionou demais é um artigo do Caio Túlio Costa que ele vai publicar na revista da USP, e que é a mudança sofrida pelos meios de comunicação sob a globalização e os efeitos da tecnologia digital. No caso da globalização, ele se baseia em levantamentos que foram feitos do processo de oligopolização. Os dados são muito impressionantes, em escala mundial os meios de comunicação estão reduzidos e caminharão nessa direção, e os que ainda não foram vão nessa direção, e estarão reduzidos à posse de seis conglomerados. Isso é um elemento que eu acho importante, é interessante porque não é muito o que ocupa o próprio Caio Túlio, mas a mim isso interessa porque a ideologia neoliberal da globalização é sempre ligada à comemoração da dispersão, da fragmentação. O que ela chama de flexível, flexibilização, acumulação flexível de capital é a fragmentação e a dispersão. Que atinge diretamente a classe trabalhadora. Porque no plano do capital o que você tem é a concentração jamais vista! Só que não pensei que a oligopolização tivesse atingido os meios de comunicação. Ainda achei que havia enclaves nacionais, por exemplo. Só que, quando junta a oligopolização e o que na sua reportagem você diz, Marina, não estamos mais diante de uma questão econômico-financeira, e nem mesmo no nível da manipulação.
José Arbex Jr. – É outra coisa.
É. Então é o pânico. E olha que sou marxista pra valer, que aposta na força das contradições sociais, políticas, elas demoram para fazer o trabalho delas. E até completarem o trabalho delas você faz um estrago… às vezes coisas irremediáveis. Então, a concentração da informação ligada ao modus operandi fascista dela é muito assustador. Esse é o primeiro aspecto que eu queria mencionar. Acho que no nosso caso o que se comprova é a construção do objeto “crise”, como se constrói o objeto Iraque, ou o objeto Islã, vai construindo os objetos. Bom, o segundo aspecto, e aí também vai nos dizer respeito, mas também tem um alcance maior, é a descrição que o Caio Túlio faz dos efeitos da tecnologia digital, dos multimídias, enfim, da globalização, da sociedade em rede. Porque ele analisa os efeitos disso sobre a comunicação. E, dos efeitos que ele aponta, três me deixaram muito impressionada. O primeiro diz o seguinte: como a quantidade de informação que passa a circular é excessiva, e nenhum comunicador, nenhum jornalista pode dominar essa quantidade de informação, o que ele precisa para aceitar uma informação e publicá-la? Precisa fazer a triagem e tem que recorrer a uma fonte. Uma. questão de meio ambiente, ele vai lá para o ecologista, ou seja, recorrer aos especialistas do ramo. Isso significa que vai havendo uma perda informativa a cada passo no senguinte sentido: o especialista tem uma informação mais ampla e mais acurada que o jornalista. O repórter tem uma informação mais ampla e mais acurada do que o editor. O editor tem uma informação mais ampla e mais acurada do que o diretor. O diretor tem uma informação mais ampla e mais acurada do que o proprietário, que tem uma informação mais ampla e mais acurada do que o leitor. Então, nessa cadeia das falas autorizadas, vai havendo uma perda sucessiva da quantidade e da qualidade da informação, de tal modo que, quando chega ao leitor, ela é muito pequena. A segunda, que é próxima dessa, é que não só a quantidade da informação é muito grande, mas a velocidade dela. Então, o jornalista não tem como se manter enquanto jornalista se não acompanhar essa velocidade. E ele passa a trabalhar num ritmo veloz, fugaz, efêmero, e para fazer isso, como não dá tempo de conferir os dados de que dispõe, o que ele faz? Começa a falar muito pouco sobre o mundo e a emitir as suas próprias opiniões. Porque, se ele tiver que voltar atrás, é fácil, ele vai dizer “eu errei, eu me enganei, eu me equivoquei” ou “eu mudei de opinião”. Enquanto que, se o noticiado mesmo não for aquilo, ele cometeu uma falha enorme. Então, esse segundo caso complementa o primeiro, que é a diminuição outra vez na informação. Um processo efetivo de diminuição da informação sob a aparência de um aumento dela. E o terceiro aspecto – -ele aponta uns dez, mas os que me interessaram foram esses – é que a qualidade das fontes e a qualidade das informações e o que circula na rede não são homogêneos. Então, você tem informações verdadeiras e confiáveis, informações mais ou menos, informações pouco confiáveis, e informações falsas. E você não tem elementos para discernir. E combina um pouco de cada. E destrói outra vez a informação. Então, isso foi uma coisa também que me abalou porque, de alguma maneira, eu poderia analisar o que a mídia brasileira tem feito usando um desses dois parâmetros. Com um eu diria que há uma decisão, como a fonte conta na reportagem da Caros Amigos, de produzir uma crise. E com o outro eu posso dizer, bom, mesmo que tenha havido essa decisão, o que é enviado à população como substância da crise pode ser muitas vezes esse conjunto de informação de baixo teor, de informação contraditória e de informação falsa que o próprio meio fornece ao jornalista. Então me perguntei como é que vamos lidar com isso – e agora não estou pensando nessa nossa “crise” aqui nesse momento, estou pensando é o seguinte: o que se diz é que nós vivemos na sociedade em rede, que portanto o capital efetivo dessa sociedade é a informação. E ela é a sociedade do conhecimento porque o saber como informação é o principal capital ativo das empresas, e ele é a força produtiva principal. Ora, isso pressupõe uma certa concepção da informação que, vamos dizer, opera no nível econômico, no nível social, no nível político, no nível cultural, sem que você tenha a menor possibilidade de ter o controle dela. E, portanto, você pode estar operando num universo totalmente fictício e imaginário. E aí o controle é total. É interessante, porque em geral as pessoas dizem: “Vai haver uma democratização da informação. A rede democratiza a informação”. A impressão que eu tenho lendo esses trabalhos todos, sobretudo levando em conta que a rede não é propriedade coletiva, social, é propriedade privada sob a forma dos oligopólios, é, vamos dizer, a dimensão totalitária do processo no seu todo. De um lado, acho que se realiza aquilo que o Marx disse – vamos em um processo em que haverá só o fetiche, não vai sobrar realidade nenhuma. Tudo é fetiche e tudo é mediano pelo fetiche, acho que chegamos lá. E, por outro 1ado, estamos despreparados para enfrentar isso. Estou muito apreensiva, porque uma coisa é constatar, outra coisa é ver no interior dessa constatação quais são os elementos contraditórios que permitem que você atue sobre isso. E não estou vendo, por enquanto, não estou vendo.