Zé Celso: “votarei em Dilma; PSDB e Serra são antipopulares” por Bob Fernandes por Bob Fernandes
O diretor e ator José Celso Martinez Corrêa, fundador do
Teatro Oficina, defendeu um plebiscito popular para decidir sobre o terceiro
mandato de Lula. Após o presidente rejeitar a permanência no poder, Zé Celso
analisou as novas nuvens e, da mesma forma que Chico Buarque, decidiu votar na
ex-ministra da Casa Civil Dilma Rousseff (PT). Quer a continuidade da onda Lula.
O guru da Tropicália faz duas restrições a Dilma: ela não tem
"uma perspectiva muito clara" da cultura e se posiciona contra a
descriminalização das drogas. Pretende conversar com a petista.
– Acho que Dilma poderia ir muito mais longe. Ela era do PDT,
tem essa origem trabalhista, precisa resgatar esse lado. E eu adorava o
Brizola!… Gostaria de ter esse encontro. Eu poderia contribuir pra uma
dimensão maior, porque sou ator e diretor. Até o Hitler se consultava
com
atores.
Para o diretor, que volta a encenar "Bacantes" no Oficina, o
pré-candidato José Serra (PSDB) tem uma "mentalidade antipopular" e
governa com
um grupo fechado.
– O governo Lula tem as portas abertas para os movimentos
sociais. Tenho a impressão de que o Serra não. O pessoal do PSDB tem uma
mentalidade antipopular, da tecnocracia – critica.
No sentido inverso de Caetano Veloso, outro tropicalista, Zé
Celso não se empolga com a candidatura de Marina Silva, do Partido
Verde. Há uma
razão pagã.
– Acho isso estranho: uma pessoa que vem da Amazônia, no
momento em que se tem escolas públicas com línguas locais, ter um
pensamento
evangélico, que é um pensamento cristão muito reduzido?
Apesar do entusiasmo com Lula, ele não aprova a política
externa brasileira em relação à ditadura cubana de Raúl e Fidel Castro. O
presidente comparou os presos políticos de Cuba a bandidos encarcerados
no
Brasil.
– Lula foi muito infeliz. Lula poderia exercer esse papel que
quer ter no Irã: "Fidel, vamos fazer um socialismo democrático"… Se eu
fosse
amigo de Fidel, eu diria: "Abre essa porra!".
Confira o papo.
Terra Magazine – Tem acompanhado a sucessão de Lula, essa
fase inicial das campanhas? O que você está pensando dos candidatos pós-Lula?
Zé Celso Martinez – Quero dizer que gosto muito do governo Lula,
com todas as suas contradições. Ele é uma espécie de presidente antropófago, sem
ideologias. Come tudo, como um antropófago, assim como eram os índios que
comeram o bispo Sardinha. Segundo Oswald de Andrade, esse é o começo da história
do Brasil: o navio naufragou e ele foi comido pelos caetés. Para minha geração,
isso foi uma evolução. Porque o padre Anchieta era o que tinha criado o teatro
brasileiro. E minha geração foi buscar as influências indígenas. Uma virada de
ponta à cabeça, esse retorno à antropofagia em 1966, 1967. Oswald nos provou a
todos: Glauber, Caetano, Gil, Oiticica… Inverteu a história do Brasil,
incorporando a cultura do índio, o que foi fundamental para o movimento
Tropicália, considerado um dos movimentos culturais mais importantes do mundo no
século passado. É uma revolução que levou Lula ao poder, porque os estados eram
limitados às oligarquias. Lula está requebrando. Gostaria que continuasse na
mesma linha, que ele desse uma chave de cadeira em Serra.
Por que não Serra?
O PSDB é um partido que foi
interessante no tempo de Mário Covas, Franco Montoro. Com Fernando Henrique eles
mudaram muito. Veio aquela tecnocracia, eles se fecham num grupo e respondem por
tudo. Em oito anos de governo Fernando Henrique, não pisei nenhuma vez no
Ministério da Cultura. No governo Lula, tivemos um ministério com Gil, com Juca
Ferreira. É a política que revoluciona, acaba com a política de revanche. É a
política da solidariedade, relacionada a presidentes
indo-latino-africano-brasileiros… Bolívia… Não fomos guiados somente por
interesses materiais. Tenho muita admiração pela política externa de Celso
Amorim. O País tem muita coisa boa, ao lado de outras coisas que eu não gosto,
como Gilmar Mendes, que eu acho abominável. Claro, tem dificuldades. Obama, nos
Estados Unidos, precisou sacrificar o aborto pra passar a reforma da saúde. É
todo um jogo muito difícil, mas ele (Lula) conseguiu alargar muito. Gostaria que
essa onda continuasse no Brasil. No tempo do governo de São Paulo, Serra pôs
João Sayad como secretário de Cultura. Só fez grandes obras, museus.. Ele não
tem uma ligação com a cultura popular, com a Tropicália.
E Dilma tem isso? O que você acha dela?
Tenho
sentido muito falta dela na área de cultura. Publiquei um texto, em resposta a
Caetano (Veloso) e sobre Lula, e eles (da assessoria de Dilma) até me ligaram.
Nem ela, nem Caetano sacaram essa política cultural. Há coisas que não
aconteciam. Estamos viajando o Brasil todo com quatro peças, no mínimo duas mil
pessoas de graça em Brasília, pagando com alimentos não-perecíveis. E vamos a
Recife, Salvador, Manaus… Vamos correr o Brasil todo. Esse governo teve
abertura pra isso, fez emergir a experiência do Teatro Oficina. Sem modéstia
nenhuma, em 51 anos conseguimos transformar. A burguesia tem medo, mas a
população toda tem vontade de se incorporar. A infraestrutura da vida é a vida.
Essa revolução veio do desbunde, da revolução feminina, gay, ecológica, dos
índios, uma mudança total dessa mentidade. A cultura passou a dar muito valor à
experiência vital de todos os povos, à cultura carnavalesca, orgiástica,
não-ideológica. Eu gostaria muito que a Dilma se abrisse. Ela não tem uma
perspectiva muito clara, mesmo assim eu vou votar nela.
E Marina? A candidatura dela é uma boa?
A Marina,
eu acho muito interessante, uma pessoa legal, mas o fato de ela ser contra as
pesquisas com células-tronco, ser criacionista… Acho isso estranho: uma pessoa
que vem da Amazônia, no momento em que se tem escolas públicas com línguas
locais, ter um pensamento evangélico, que é um pensamento cristão muito
reduzido? A ideologia, o que tá segurando o capitalismo, é o pensamento
evangélico, essa visão monoteísta. Tenho horror a monoteísmo. São maometanos.
Prefiro votar na Dilma, apesar de ela ser contra a descriminalização das drogas.
O bom é que ela tem a linha americana de o usuário ser tratado com carinho e o
traficante com punição.
Os três candidatos são contrários à descriminalização das
drogas…
Isso de punir tem que mudar. Sou a favor da total proibição do
crack, mas a cocaína e a maconha devem ser tratados pelos ministérios da Saúde e
da Cultura. A maconha é um santo remédio. Eu tô fumando um baseado agora, porque
sou cardíaco e a maconha dilata minhas artérias e melhora a respiração. Tenho
uma produtividade muito grande com ela. Cocaína não posso cheirar, tenho
problemas cardíacos. Freud usava cocaína para escrever. Há casos graves, eu sei,
mas o crack que é o problema. Discordo da ideia de punição. Acho que Dilma
poderia ir muito mais longe. Ela era do PDT, tem essa origem trabalhista,
precisa resgatar esse lado. E eu adorava o Brizola!
Um político bem teatral.
Era teatral, mas também um
homem perspicaz. O programa dele era o de Darcy Ribeiro, um homem
extraordinário. E também o de Getúlio. Eu existo graças ao suicídio do Getúlio.
Se não fosse o sucídio do Getúlio, não teria Bossa Nova, golpe militar,
tropicalismo, contracultura, Teatro Oficina… Brizola tinha coisas do
trabalhismo do Getúlio, que são mais libertárias, porque incorporaram a cultura
indígena, liberaram o candomblé, oficializaram o carnaval, Capanema e Drummond
no Ministério da Educação. Falta essa dimensão a Dilma.
O grupo dela te ligou, mas vocês ainda não se
encontraram?
Eles me ligaram, depois do artigo. Ficamos de nos encontrar.
Gostaria de ter esse encontro. Eu poderia contribuir pra uma dimensão maior,
porque sou ator e diretor. Até o Hitler se consultava com atores. O ator tem uma
percepção que não é a do marketing. Não dá pra inventar uma nova pessoa de um
dia pro outro. Você sabe da vida: é um lado crítico, sonhador. A educação sem
cultura não vale nada.
Como você analisa a personalidade de Serra?
Ele é
competente, fez uma série de coisas, mas em relação ao Oficina e ao Bexiga
(na briga com o grupo do empresário Sílvio Santos), ele lavou as mãos,
disse que não ia se meter nisso. E querem construir três torres com 700
apartamentos. O teatro está sendo preparado pra ser tombado. Vamos fazer uma
universidade antropófaga, revitalizar o bairro, não vamos deixar essas três
torres serem construídas. O tombamento do teatro vai ser discutido no
Iphan.
O que você pensa do programa Bolsa Família, que sofre
críticas por ter um lado assistencialista, de dependência?
Tem um lado
que é insuficiente, mas trouxe uma ascensão social relativa. Associado à
educação, pode ir muito mais longe. O governo Lula tem as portas abertas para os
movimentos sociais. Tenho a impressão de que o Serra não. O pessoal do PSDB tem
uma mentalidade antipopular, da tecnocracia. Me lembro que puseram uma múmia, um
presidente da Sibéria, um cara frio no ministério da Cultura. Dedicamos a
estreia de uma peça a Serra. Poderia fazer do Bexiga um bairro cosmopolita, mas
ele não apareceu, não foi à peça. São desligados. Dou muita importância à
contracultura. Não pode ser só essa cultura de fazer grandes museus, grandes
obras… Na Itália, Berlusconi investe em orquestra sinfônica, mas não dá um
tostão pro teatro. O teatro italiano morreu! Ele tem medo da arte
viva.
Dilma deu uma entrevista, no site pessoal, sobre o setor
cultural. Ela se compromeu com os pontos de cultura, em manter os programas do
governo Lula.
Não vi a entrevista. Vou votar nela, acho que tá mais
próxima. Ela tem cinco pontos no governo, igual ao Fernando Henrique. Cultura,
educação e meio ambiente são uma coisa só. Se não forem tratados como uma coisa
só, é um erro. O meio ambiente é uma prioridade no mundo todo. Ela excita criar
soluções novas, um salto econômico, no sentido de um país mundial. O Lula tem
cultura bem popularona.
Onde ele erra?
Só não gostei da postura com Fidel
Castro, com os presos políticos. Não gostei. Se eu fosse amigo de Fidel, que foi
tão importante na Revolução Cubana, pra minha geração, eu diria: "Porra, Fidel!
Não vá morrer como (Fulgêncio) Batista, viva como Gorbachev". Tenho a impressão
de que, por um gesto de Cuba, Obama abriria. Se cair o bloqueio, o regime cairia
por si. E poderiam continuar dentro do socialismo. E tem isso de escritores como
Gabriel García Marquez apoiarem, escreverem em defesa… A liberdade é a coisa
mais importante que existe na vida, é a condição da coletividade, da orgia.
Dentro do teatro, você precisa ser um indivíduo forte – e isso vem da
liberdade.
Você esteve recentemente em Cuba?
Estive. Fui ao
Tropicana (cabaré em Havana), porque eu adoro aquilo. Tem vários palcos. De
repente, um copo de rum na mesa, um charuto, uma coca-cola! O Cuba Libre foi uma
das bebidas da minha geração. Na hora, eu tive um insight e comecei a gritar:
"Cuba libre! Cuba libre!". Agora, pus em "Bacantes" um ator parecido com Fidel,
que faz uma referência à Revolução Cubana. Tem uma cena de "Bacantes", Deus
ex machina, em que Dionísio aparece e restabelece a paz no mundo, acabam as
guerras. Quem ganha o Oscar é o Fidel. É ambíguo, gosto muito. Os amigos de
Fidel, como Frei Betto, poderiam aconselhar…
Já esteve com Fidel alguma vez?
Nunca estive com
ele. Eu fui a Cuba. Marcelo Drummond e eu, naquela rota de Miami pra Cuba. Me
botaram nesse primeiro voo, liberado por Obama, e foi maravilhoso. Eu levei
"Bacantes", fomos à Casa de las Américas, mas… À noite, era tudo supercareta,
aqueles cartazes… Tem que abrir. O cubano de Miami não tem mais os velhos
ressentimentos. Os velhos podem ter, mas os novos têm outra cabeça. Jamais o
imperialismo vai conseguir derrubar Cuba, porque é uma cultura muito forte, a
dança, a santería, a música… Tudo isso é um banho nos Estados Unidos. O
problema é que Fidel tem formação jesuítica.
Aquele negócio de céu e inferno…
Ele é uma pessoa
inteligentérrima, poderia fazer uma Perestroika (reconstrução). Não se pode
ficar nessas crises excessivas. Para mim, a revolução não veio com os que
pegaram em armas, mas com os que tomaram drogas, ácidos, tiveram contatos com os
povos indígenas…
Lula é fruto disso também?
Mais que isso. Lula tem
uma cultura pragmática, não positivista. É mais que o Lula. O Lula foi posto por
esse desejo de mudança da humanidade. Bush conseguiu reunir todo o mundo contra
a ideologia do Partido Republicano. Vivemos uma mudança de era. Cuba segurar
aquilo não tá com nada. Lula foi muito infeliz. Lula poderia exercer esse papel
que quer ter no Irã: "Fidel, vamos fazer um socialismo democrático".
A esquerda brasileira não tem uma visão estática de Fidel,
anacrônica?
Virou um mito. Tem que quebrar esse tabu, passou muito
tempo. A Revolução Cubana de 1959 foi muito boa, deu seus frutos, somou-se à
revolução cultural de 1968, que no Brasil começou em 1967, com o "Rei da Vela" e
"Terra em transe"… E o "Roda Viva", que trouxe de volta o coro grego. Voltou o
paganismo. O paganismo é mundial, ninguém é dono da verdade, não tem essa coisa
de eu tenho um Deus e ele é a verdade. Então, se fosse amigo de Fidel, eu diria:
"Abre essa porra!". Ele vai acabar morrendo ditador. Eu diria: "Abre que vai
ficar uma maravilha!" Não vai ter nada
Entrevista
publicada originalmente no www.terramagazine.com.br