23 anos do Projeto de Pesquisa Xangô e Themis. Por Sergio São Bernardo
Em 2001, comecei a Assessoria de Relações Raciais na Liderança do PT no Congresso Nacional, que inspirou a criação do Núcleo dos Parlamentares Negros – NUPAN, do qual fui secretário, sob a coordenação do Deputado Luís Alberto (in memoriam) Ali, ao mesmo tempo, comecei elaborar o projeto de pesquisa Xangô e Themis que, com a aprovação no Mestrado da UNB em 2003, culminou na defesa da dissertação “Identidade Racial e direito à diferença: Xangô e Thémis” em 2006 e a criação do projeto Justiça Comunitária Pedra de Raio, em 2008 e que levou à publicação do livro Xangô e Thémis: estudos sobre filosofia, direito e racismo, em 2016, com o Prefácio e Apresentação dos Professores Miroslav Milovic e o griot Jaime Sodré (in memoriam) e a explêndida ilustração de Raimundo Bida. Agora em fase de revisão e ampliação!
Meu orientador foi Miroslav Milovic, um filósofo Iugoslavo, sérvio e brasileiro, morto de Covid durante a pandemia no Brasil, que participara da guerra civil iugoslava. Ele tinha sido aluno de Appel na Alemanha, estudado na França, Grécia e ensinado na Turquia, Japão, entre outros lugares. Com Miroslav, percebi a riqueza de conhecimento que a filosofia pode nos fornecer para compreender o mundo político e jurídico. Na minha banca estavam: o reputado Ministro negro, Reis de Paula, que, posteriormente, foi presidente do TST, que conheci através do grande amigo Mário Nelson, e o saudoso Ubiratan Castro, historiador, bacharel em direito, doutor pela Paris-IV, intelectual de escol, profundo conhecedor da experiência africana no Brasil e que, com suas generosas e pertinentes observações, enriqueceu o trabalho para uma dimensão acadêmica de louvor. Contudo, como de costume, como filho de Xangô e Ogan de Oya, a réplica foi inevitável.
O tema do livro é bastante sucinto: como a engenharia do pensamento ocidental produziu uma narrativa em que o suposto outro e a suposta diferença ontológica, na verdade, nunca foram abordados ou sequer considerados pela velha/nova filosofia europeia. O outro eurocêntrico era um narcísico, um espelho de si mesmo. Um “mundo da vida” foi projetado negativamente e, consequentemente, criminalizado, a despeito dos processos de aculturamentos, absorções e ressignificações.
O reconhecimento da criminalização do Mundo da Vida é um fundamento relevante para pensar a desigualdade no Brasil. Heidegger já afirmava que a essência da presença está na sua existência e essa presencialidade nos leva ao debate da alteridade, uma vez que é na co-presença que nos constituimos. Nós somos o terceiro excluído. Dussel nos convida, de uma forma diferente, a explorar os conceitos de interpelação e exterioridade. Habermas abre o debate sobre a moralização da política, afirmando que a norma é fundamentada nos princípios de justiça/jusnaturalismo, validade/juspositivismo, efetividade/realismo, e interpretação para o pós-positivismo. Mas as leis morais produzem o direito, como pensava Kant, mas ficam no limite do sujeito que fala e não dialoga.
Na sociedade de comunicação ideal, todos os indivíduos devem concordar com todos os argumentos decisivos – este é o procedimentalismo de Habermas que não alcança a totalidade dos membros de uma comunidade. Isso só é possível se considerarmos a reivindicação e o reconhecimento das identidades em questão, o pertencimento civilizado, aliado às condições sócio-raciais e econômicas, para garantir a realização de uma justiça material e equitativa para todos. Levinas irá nos questionar: quem são os outros? Assim, Levinas aborda o terceiro excluído. Será que uma filosofia amefricana, genuinamente inspirada em Lélia Gonzalez, ainda está por vir?
O ecletismo jurídico e a formação do estado brasileiro são analisados para explicar a ausência de autenticidade e a presença ainda marcante de conteúdos autoritários e propositores de identidades essencializadoras. No entanto, a saída para uma ontologia que antecede a metafísica de Lévinas em prol do outro é muito parecida com a construção imanentista e sensitiva desenvolvida pela cosmoconcepção afro-brasileira. Os escritos de Gisleine Aparecida dos Santos, Duda Oliveira, Fábio Leite, Neuza Santos, Adelino Brandão, Juana Elbein dos santos, entre outras e outros, tiveram uma grande influência sobre a tese da dissertação.
A história do pensamento brasileiro se mistura à história do direito no Brasil. O contexto fenomenológico e a herança iluminista nos levaram a uma realidade extremamente racionalista e excessivamente codificada, mesclada com os culturalismos, historicismos e neologismos românticos e sensualistas típicos da cultura brasileira. Registramos que uma corrente da filosofia da linguagem, o positivismo jurídico do início do século XX e o fracasso da Europa teológica nos levaram a uma leitura solipsista e matematizante do direito. Os alicerces da moralidade política brasileira vinculados ao patrimonialismo, familismo, patriarcado, homofobia e racismo ficaram no egoísmo metafísico e ontológico, levando-nos ao monólogo subjetivista da modernidade.
Não devemos deixar de lado a influente, mas insuficiente filosofia estruturalista e pós-estruturalista em confronto com as correntes filosóficas-jurídicas “brasileiras” para identificar o que chamamos de racismo ontológico e racismo de Estado e propor uma filosofia jurídica de base africana. Enfim, sugiro uma inspiração no multiculturalismo e pluralismo jurídico como uma possibilidade política e hermenêutica para o direito, com fortes críticas ao racismo institucional como uma negação da cultura brasileira e, consequentemente, das culturas, da civilização e da filosofia africana. No campo do direito, percebo que novas teorias e novas técnicas de resolução de conflitos confrontam o direito para uma perspectiva multicultural, intercultural e interseccional. Isso foi, de certa forma, o que Xangô e Thémis quis sinalizar.
A tematização de gênero aparece ali já desconstruindo os aspectos marcadores da justiça entre homem e mulher. Em Cuba, Xangô é representada por uma mulher e, aqui mesmo, Xangô veste-se de mulher, como se essa divisão fosse apenas uma alegoria ocidentalizada entre nós. O direito brasileiro poderia optar pela releitura histórica do Brasil, utilizando o repertório dos provérbios, das mediações de conflitos, da cultura e da arte afro-brasileira como fontes valiosas para se pensar na possibilidade de uma justiça política em nosso país. É relevante salientar que, ao longo de mais de 20 anos, surgiram tardiamente no Brasil as teorias decoloniais, teoria da raça e interseccionalidade, dentre outras. Guerreiro Ramos e Manuel Quirino identificaram esse tipo de fenômeno com outro nome nos anos de 2O e 40. Por isso, localizo a obra Xangô e Themis como uma proto-decolonialidade jurídica, assim como outras obras seminais, para os dias atuais.
Muito bacana ter estudado ao lado de professores geniais como Rita Seggato, Wlamireh Chacon, Jose Geraldo Souza Júnior, Luís Alberto Warat, Alejandra Pascual, e dos disruptivos discentes: João Jorge, Ana Flauzina, Mauricio Azevedo, Clovis Oliveira, Pensilvânia Neves, Luciana Kaiganng, Wanderson Flor*, Eneida Marques, Pedro Diamantino, Mariana Veras, entre outras e outros brilhantes colegas da UNB. Todo nosso esforço era e ainda é a busca da identidade e consciência racial como instrumento emancipatório.
Salvador, novembro de 2024
Sérgio São Bernardo