Aldeia Nagô
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A crise da “sociedade de mercado” por Amílcar Salas Oroño (*)

6 - 8 minutos de leituraModo Leitura

A ficção da “sociedade de mercado” autorregulada que desmorona agora na Grécia, na Espanha e em outros países europeus, é resultado de um processo que vem de vários anos. Talvez suas primeiras manifestações tenham surgido nas periferias do sistema capitalista.


Neste sentido, o ciclo de protestos sociais
latino-americanos que deu lugar a um conjunto de governos progressistas
já indicava esse desmoronamento. Não é causalidade, então, que seja no
Chile – na contramão destes governos e dos processos que os forjaram –
onde também se repete o descontentamento que se vê na Europa, a partir
de um rígido esquema universitário exclusivamente orientado à figura de
um consumidor privilegiado

I

A particularidade da “sociedade de mercado” que se difundiu com extrema rapidez
do século XIX em diante, dos centros às periferias, recebe um novo embate,
variado, inconcluso, popular, desde regiões muito distintas. Há algo da
“promessa” do ideário liberal que, como ocorreu na Segunda Guerra Mundial,
parece estar desvanecendo-se no ar: suas instituições fundamentais atravessam
uma fase de muito desprestígio, o que antecipa um próximo período de rearranjos
organizacionais, culturais e ideológicos de diversas magnitudes, sem que possa
especular-se ainda sobre seus tempos de desenvolvimento nem sobre suas
direções. Mas pela cadeia de respostas e “indignações” que se manifestam
diariamente neste novo ciclo de crise capitalista pode afirmar-se, retomando K.
Polanyi, que uma (nova) Grande Transformação está ocorrendo de maneira
cada vez mais explícita: a pretensão da autorregulação pressuposta em uma
“sociedade de mercado” perdeu novamente sua força retórica moralizante e
estruturadora dos comportamentos. O que está se reclamando de diferentes formas
é, no fundo, que a sociedade não fique como refém exclusivo do mercado, ou
seja, que exista alguma forma de “intervenção social” sobre o mesmo, de
regulação, com a variedade de opções e contradições que supõe um pedido desta
natureza; em resumo, a sociedade antes que o mercado, e não o contrário.

II

O fim da primeira versão do padrão ouro internacional constituiu um momento
chave na história do capitalismo, distinguindo duas épocas: representou um
freio ao liberalismo (econômico) como modelo civilizatório, com sua variada
edificação conceitual de ideologias conexas e instituições, dando lugar a uma
transformação radical nas ideias sobre os destinos coletivos, inclusive
deixando espaço de atuação para aquelas opções que terminaram por constituir um
dos capítulos mais dolorosos da história do homem em sociedade.

No entanto, por processos históricos superpostos e derivados daquelas mudanças,
após as modificações nos padrões de transação monetária dos anos 70 e a
internacionalização das forças produtivas, acoplados à gravitação crescente dos
circuitos de valorização financeira, um (novo) liberalismo conseguiu se
reposicionar como modelo de sociedade, em paralelo com a hegemonia
estadunidense. Agora, esse mesmo (neo)liberalismo que foi se desenvolvendo
desde então como discurso e prática econômica se desenhou ideologicamente sobre
uma similar pretensão de “sociedade de mercado” autorregulada, com o acréscimo
de que, pelas complexidades das circunstâncias, essa mesma pretensão devia ser
equalizada por meio de alguns organismos supranacionais chave – FMI, Banco
Mundial, Banco Central Europeu, entre outros – que dariam curso e projeção ao
próprio “equilíbrio natural”.

Como aquele, agora é este neoliberalismo que está sob suspeita, sobretudo a
partir da crise do capital financeiro (2008) que colocou a maioria dos países
centrais diante da impossibilidade de, por um lado, reestabelecer uma dinâmica
de acumulação que reverta a situação de default generalizado e, por outro
controlar as derivas da própria especulação financeira que, longe de ter se
moderado, espalha-se para múltiplos segmentos – como as commodities
alimentares, questão que pode tornar o panorama global ainda menos auspicioso.

III

O que hoje se ativa em distintas partes do mundo é, como nos anos 30 do século
XX, uma crítica profunda ao liberalismo, agora neoliberalismo. Evidentemente
não se expressa de uma forma orgânica nem homogênea, o que debilita em certa
medida a ressonância de questionamentos comuns feitos em diferentes tempos,
espaços e idiomas. Mas no centro das críticas populares, massivas,
desordenadas, estão quase os mesmos elementos de antanho, com suas novas
roupagens: em grandes traços e segundo as idiossincrasias de cada território,
os protestos se dirigem contra as limitações das fórmulas representativas do
Estado – ao fim das contas, a garantia de que as engrenagens sociais mantenham
os privilégios – e as incapacidades derivadas para exercer a administração, e
também contra a vacuidade na qual caiu a ficção liberal do consumo e do
progresso individual, que espatifou contra a materialidade das realidades.

Uma crise econômica e substantivamente ideológica, de sentido, que não anula o
sistema de um instante para outro, muito pelo contrário, mas que afeta a legitimidade
e a autoridade de suas instituições no médio e longo prazo, questão não menor
no que diz respeito à reprodução de uma determinada ordem social. Se agora,
esta ficção da “sociedade de mercado” autorregulada se fratura na Grécia e na
Espanha, esse movimento é resultado de um processo que vem de vários anos e de
outros países. Talvez suas primeiras manifestações tenham surgido nas
periferias; neste sentido, o ciclo de protestos sociais latino-americanos que
deu lugar a certos governos progressistas deve somar-se a essa lista. Não é
causalidade, então, que seja no Chile – na contramão destes governos e dos
processos que os forjaram – onde também se replica o atual descontentamento, a
partir de um rígido esquema universitário exclusivamente orientado à figura de
um consumidor privilegiado.

IV

Como socialização política, o liberalismo/neoliberalismo volta a colapsar; como
modelo organizador da sociedade volta a evidenciar sua incapacidade de modo
contundente. Nisso consiste, a atual crise do capitalismo: a sucessão de
“indignados” não faz mais do que exibir o fracasso de sua proposta
civilizatória, a inconsistência de seus princípios, a contradição de suas
instituições. A pretensão autorregulatória neoliberal se desmancha dia após
dia, do mesmo modo que suas “promessas”. Resulta fundamental que as demandas de
intervenção e regulação desta crise não se resolvam autoritariamente como no
século passado, uma tendência latente se se leva em conta os triunfos das
direitas políticas em boa parte dos países europeus.

Neste sentido, certas medidas políticas definidas por alguns governos
latino-americanos parecem estar à altura das circunstâncias, o que é inclusive,
admitido por acadêmicos estadunidenses e europeus. Não é pouco, levando em
conta o tradicional lugar que foi outorgado à região.

(*) Professor do Instituto de Estudos da América Latina e Caribe, da
Universidade de Buenos Aires.

Tradução: Katarina Peixoto

Artigo publicado originalmente em http://www.cartamaior.com.br


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