Estar só e ser só por Franklin Leopoldo e Silva
transpõem as distâncias entre mentes e corações, e as solidões se
fundem em solidariedade
afetivos teriam sido cortados em todos os âmbitos, desde o social até o
amoroso, passando pelo familiar. Nesse caso dizemos que a pessoa padece
de solidão, é passiva em relação ao estado de espírito que a mantém
longe dos outros. Mas há exemplos de grandes solitários que nunca
viveram sós e Baudelaire é talvez o maior deles, o solitário na
multidão, aquele que constitui sua solidão com laços familiares e
sociais. Este se faz solitário, tanto assim que não se afasta das
pessoas, pelo contrário, é antes estar entre elas que o leva a cultivar
a solidão.
É possível, portanto, não estar só e sentir-se
solitário. E podemos supor que isso acontece justamente porque não se
trata de estar só, mas de ser só. Assim podemos estar entre muitas
pessoas, entretendo muitas relações na superfície dos diversos níveis
de sociabilidade, sem superar a solidão que nos define.
Isso
acontece, por exemplo, quando nosso desejo de estar com outro é maior
do que a satisfação obtida quando estamos com quaisquer outros. Pascal,
Kierkegaard, Dostoiévski formam uma linhagem de solitários que se
ressentem da distância ou da ausência do infinitamente outro, uma
oposição entre Deus e o Homem que este não logra transpor.
Nesse
sentido, diante da impossibilidade de diálogo, já que falar com Deus
seria como lançar palavras ao silêncio, a solidão nos constitui como a
marca daquilo que nos falta para ser, isto é, para participar
efetivamente do absoluto que almejamos.
O solitário é aquele que
não pode compartilhar, mas é principalmente alguém que não tem como
dividir a si mesmo: sua liberdade e sua responsabilidade. Deve assumir
por si mesmo a tarefa de fazer algo de si – e arcar com as
conseqüências. Este poderia ser chamado o lado ético da solidão, uma
vez que nos expõe solitários diante das decisões morais, aquelas que
nos abrem os caminhos da existência.
O existencialismo insiste
muito nesse desamparo que constituiria o cerne da condição humana: como
o homem não possui uma essência que o determine a priori, é por via de
cada opção existencial, isto é, moral, que ele se fará, que buscará
construir uma identidade. Essa construção de si como tarefa moral se dá
unicamente no plano da existência, onde fomos lançados sozinhos e onde
só nos podemos valer de nós mesmos.
Assim, cada vez que tomo
uma decisão, como não o faço a partir de nada nem ninguém que me
preceda e a quem eu pudesse seguir, é na livre escolha de mim mesmo que
invento o critério, o valor e o fim de minhas ações, na mais completa
solidão, pois cada existência individual é singular e não há rotas já
traçadas que ajudassem cada um a tomar o rumo de si próprio.
Sartre,
principal representante dessa visão filosófica da subjetividade
solitária, enfatiza a responsabilidade que daí decorre. Com efeito, se
ninguém pode escolher por mim, a responsabilidade da escolha é
exclusivamente minha. Não poder compartilhar esse peso é algo que
acentua ainda mais a solidão de cada um. Pois se todo aquele que
inventa ou cria é necessariamente solitário, que dizer daquele que a
cada instante tem de exercer a sua liberdade para inventar a si mesmo?
Entretanto,
vemos que na experiência histórica, ética e política da humanidade por
vezes os indivíduos se alcançam, isto é, logram transpor a distância
entre mentes e corações, e as solidões se fundem em solidariedade –
pelo menos até que o objetivo comum seja atingido, depois do que é
freqüente a recaída numa individualidade limitada pelos interesses
particulares.
Apesar da fatalidade desse ciclo, ele nos abre uma
via: parece que as grandes perspectivas históricas – aquelas
efetivamente revolucionárias – têm o poder de aglutinar as vontades e
de unificar as intenções, ainda que por algum tempo. É assim que vemos
os homens se unirem em grandes projetos históricos, como a revoluções
modernas, por exemplo, e depois voltarem a disputar o novo poder
consolidado. Não é somente nas crises que as multidões saem às ruas e
gritam em uníssono?
Para muitos isso acontece porque, entre a
universalidade (todos os indivíduos) e a singularidade (este
indivíduo), a única relação possível é a de absoluta contradição. Se
essa visão for verdadeira, estamos irremediavelmente condenados a ter
de escolher entre o indivíduo e a coletividade, sem mediações.
Mas
se a solidão do indivíduo decorre não do egoísmo ou do atomismo
irredutíveis, mas da singularidade que o especifica sem isolá-lo, e se
a coletividade puder ser concebida não apenas como somatória, mas como
comunidade, isto é, agrupamento qualitativo de singularidades, então
talvez se possa ver na individualidade, e mesmo na solidão que a
acompanha, um modo de viver em que cada um expressaria singularmente a
comunidade.
Esse indivíduo comunitário que faz da solidão
interior o impulso maior para a experiência solidária tem sido
raramente detectado na história, embora idealizado a partir de
esperanças religiosas e políticas. Se sua possibilidade for apenas
sonho, certamente não há muito que esperar do futuro da humanidade.
Franklin
Leopoldo e Silva é professor do Departamento de Filosofia da
Universidade de São Paulo (USP) e autor de Descartes – A metafísica da
modernidade (Editora Moderna, 1994), Bergson – Intuição e discurso
filosófico (Loyola, 1994) e Ética e Literatura em Sartre (Unesp, 2004)