Aldeia Nagô
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Eu gosto do meu cabelo por Diony Maria Oliveira Soares

5 - 7 minutos de leituraModo Leitura

Cabe somente a nós mesmos, mulheres negros e homens negros,
buscarmos a fórmula adequada para a nossa própria representação.
 


Dia desses uma pequenina nota com apenas 108 palavras,
divulgada na versão digital de um veículo da grande imprensa brasileira
aparentemente com a pretensão de abordar o complexo tema "o poder do cabelo",
mereceu muitos comentários de internautas. Mulheres e homens ora posicionaram-se
a favor dos termos utilizados para a redação, ora teceram críticas por
considerá-los discriminatórios.

Ainda que isto possa soar antipático, não
vou fornecer maiores detalhes nem da nota nem dos comentários. Assumo tal
decisão por entender que, sendo um veículo de comunicação a serviço dos
afro-descendentes, convém sintonizar com a reflexão de Stuart Hall (2000) para a
relação da identidade cultural com as questões: "’quem nós podemos nos tornar’,
‘como nós temos sido representados’ e ‘como essa representação afeta a forma
como nós podemos representar a nós próprios’". Hall argumenta que a fala ocorre
sempre a partir de uma posição histórica e cultural específica, sendo
fundamental levar em conta quem fala e qual é a representação que advém desta
fala.

Ou seja, cabe somente a nós mesmos, mulheres negras e homens
negros, buscarmos a fórmula adequada para a nossa própria representação. A
grande mídia brasileira definitivamente não fará isso. Regra geral, explicita
Muniz Sodré (1999), o discurso midiático catalisa expressões políticas e
institucionais sobre as relações inter-raciais a partir de "uma tradição
intelectual elitista que, de uma maneira ou de outra, legitima a desigualdade
social pela cor da pele"; modela as atitudes discriminatórias e desempenha
"papel central tanto na produção quanto na reprodução do preconceito e do
racismo".

Pois bem, voltemos ao tema abordado pela tal notinha do tal veículo da
grande mídia. Segundo Nelma Lopes Cardoso (2007), "mais de 70% dos brasileiros
têm cabelos crespos, que vão do encaracolado ao mais crespo". Um dado bastante
significativo, uma vez que vários estudos consideram que o cabelo é um dos
pontos mais vulneráveis no corpo negro.

Tal consideração me fez lembrar
de três episódios que vivenciei tendo o meu cabelo crespo como protagonista. O
primeiro ocorreu na minha infância quando, ao chegar à escola com os cabelos
recém-alisados a frio com aquelas famigeradas pastas, fiz uma simples alusão a
tal prática e isso gerou o desconforto e a mudez das colegas. Naquela época,
idos 70 do século XX, talvez o assunto fosse tabu e não pudesse ser comentado
entre meninas.

O segundo diz respeito a minha vida profissional e
aconteceu no início dos anos 90, quando o editor-chefe de um jornal localizado
em município da Serra Gaúcha, no qual eu trabalhava como subeditora, achou que
tinha o direito de criticar o meu cabelo em plena reunião de pauta. Eu estava
chegando à redação do jornal recém-saída de um salão de beleza (corte,
hidratação e penteado). O cabeleireiro havia me incentivado a "assumir os
crespos". Incomodado, o editor me recomendou: "você deveria prender esse
cabelo".

Já o terceiro ocorreu em 2006, na casa de uma mulher negra idosa
e pobre que, quando me viu com os cabelos crespos naturais amarrados para cima
por um lenço colorido, reclamou mal-humorada: "não adianta você se arrumar, com
este cabelo sempre vai parecer uma mendiga". Nessas três ocasiões, lembro
nitidamente, eu estava me sentindo bem bonita.

Tais lembranças
incitaram-me a resgatar abordagem de Nelson Inocêncio (1999) sobre as relações
raciais e implicações estéticas, na qual este professor explicita que a palavra
estética "deriva de ‘sentir’, mais especificamente das formas de sentir", e
destaca que, no Ocidente, o dispositivo estético proporcionou uma "relação
maquiavélica entre a cultura hegemônica e culturas emergentes", tendo em vista o
componente racial.

Segundo Inocêncio, "existe no Brasil um padrão estético que nega o
perfil multirracial do país", sendo que "a divulgação desse padrão condiciona a
sociedade a pensar, a se comportar e a almejar vitórias no campo simbólico e até
material que esbarram nesse limite".

Assim, ao lembrar que historicamente
esta construção discursiva está relacionada com as ambições do processo de
colonização desencadeado pelos europeus, o professor sustenta que "o olhar
europeu em relação aos africanos e aos ameríndios não foi um olhar casual, mas
causal", o que resultou em dicotomias, nas quais "noções de bem e mal, bonito e
feio, nobre e vulgar são definidoras do status cultural".

Ou seja, a
manutenção de uma condição privilegiada de poder depende de dispositivos que
impedem (tentam impedir) aqueles que podem contestar tal privilégio de
perceberem o seu próprio potencial de contestação e, consequentemente, de poder
resistente.

A lista de dispositivos neste sentido é grande. Em relação ao
tema deste artigo, entre outras coisas, para manter a dominação "os mesmos"
precisam insistir na pregação de crendices para baixar a nossa auto-estima:
juram que somos feias (os). O jogo é assim e não há como escapar dele. Urge
aprender a jogar com maestria.

Mais uma lembrança surge à tona. Um trecho
de uma canção escrita por Cristiane Sobral para a peça teatral Uma boneca no
lixo, a cuja estréia tive a felicidade de assistir em 1998, em Brasília: "quero
viver em paz com meu cabelo / eu tenho muito zelo com meu cabelo / qual será o
preconceito / porque você quer me ver sempre do seu jeito / de entender, de
saber […] eu gosto do meu cabelo / eu gosto desse meu zelo / do zelo por
mim".

Eu também, Cristiane. Eu gosto desse zelo por mim. Eu gosto do meu
cabelo.
 
 

Dione é Jornalista,
especialista em Antropologia Social e mestra em Educação/UFPel

Referências:

BRESSER, D. O poder do cabelo. O
Estado de S. Paulo digital. Blog da revista. Seção: Beleza. (www.estadao.com.br)
18.03.2008.

CARDOSO, N. Cosmética étnica. Brasília: Ìrohìn. ano XII,
n.19, março/ 2007. p.23.

HALL, S. Quem precisa de diferença? In: SILVA,
Tomaz Tadeu da (org.). Identidade e diferença; a perspectiva dos Estudos
Culturais. Petrópolis: Vozes, 2000. p.109.

INOCÊNCIO, N. Relações raciais
e implicações estéticas. In: LIMA, Ricardo Barbosa (org.). 50 anos depois;
relações raciais e grupos socialmente segregados. Goiânia: Movimento Nacional
dos Direitos Humanos, 1999. p.21-35.

SOBRAL, C. Uma boneca no lixo. Texto
para representação teatral. original fornecido pela autora. 1998. SODRÉ, M.
Claros e escuros; Vozes,1999. p.243-244.
identidade, povo e mídia no Brasil.
Petrópolis: Vozes,1999. p.243-244.
 
Artigo publicado originalmente em
www.irohin.org.br

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