Aldeia Nagô
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Crocodilos rondam o STF por Paulo Moreira Leite

9 - 13 minutos de leituraModo Leitura
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Nossos crocodilos estão apressados. Querem manter o Supremo Tribunal Federal na linha, garantindo a preservação de um comportamento que tem sido mantido desde o início do julgamento da ação penal 470.

 

Sempre que debateu alternativas e opções possíveis do ponto de jurídico, sempre que revisitou sua história e suas convicções, o STF agiu do mesmo modo, tomando a decisão que mais prejudicava os réus e contribuía para agravar sua situação.

Hoje, os crocodilos querem garantir, em 72 horas, a rejeição dos embargos infringentes que poderiam garantir uma segunda jurisdição para um grupo de 12 condenados.
Caso essa operação venha a ocorrer, alega-se, o julgamento estará encerrado e teremos um feliz 7 de setembro. O critério é o palmômetro, como nos auditórios do Chacrinha.

Do ponto de vista jurídico, a operação felicidade implica num conjunto de manobras de última hora que fariam corar um calouro de Direito. Obriga a modificar procedimentos usuais no debate sobre os embargos declaratórios e rejeitar, sumariamente, os embargos infringentes.
Pela jurisprudência em vigor, o STF não poderia tomar nenhuma decisão final sobre os embargos declaratórios antes de 60 dias. Este tem sido o prazo para a elaboração dos acórdãos sobre estes recursos, inclusive aqueles que devem ser julgados – e rejeitados sumariamente – na tarde de hoje.

Feitos os acórdãos dos embargos, que os juízes têm o dever de elaborar, os condenados têm direito a um embargo do embargo declaratório. Pode parecer estranho mas esta tem sido a regra, até aqui. Num país que já teve ditaduras tão prolongadas, é até natural que o cidadão tenha garantias adicionais para proteger-se do Estado, vamos combinar.

O próprio Natan Donadon, aquele que esperou 13 anos até receber uma sentença de prisão, teve direito aos 60 dias. Ninguém achou, no STF, que estava muito demorado. O embargo do embargo foi examinado e rejeitado. Considerou-se que era uma simples manobra protelatória. Mas ele teve o direito de seu segundo pleito ser examinado.

Condenados em 2002, os diretores do antigo Banco Nacional, responsáveis por um golpe de 5 bilhões na praça, foram presos ontem. Onze anos depois da condenação, dezesseis depois do escândalo. Vamos ler o que diz o Consultor Jurídico: “a ordem de prisão foi dada pelo juiz Marcos André Bizzo Moliari nas mesmas ações penais nas quais já havia condenado os ex-executivos em 2002 por gestão fraudulenta, prestação de informações contábeis falsas e formação de quadrilha. De acordo com o juiz, desde que foi proferida a sentença em janeiro de 2002, a defesa dos acusados utilizou todos os meios e recursos possíveis e imagináveis sem que conseguisse desconstituir o decreto condenatório. “Percorrido todas as instâncias, a defesa já não mais dispõe de qualquer recurso jurídico regular visando a desconstituição do julgado, até mesmo o remédio heróico e onipresente do Habeas Corpus, a essas alturas não mais lhe socorre, posto que inimaginável que após esses longos anos em discussões recursais houvesse restado alguma questão de ordem pública que não tivesse sido posta e discutida”, explica o juiz. (Responsáveis por um golpe 70 vezes maior do que o desvio atribuído, erradamente, ao mensalão, os executivos do Banco Nacional foram soltos 24 horas mais tarde).

O plano, para os condenados do mensalão, consiste em mandar prender imediatamente. Só assim, alega-se, será possível garantir a alegria no 7 de setembro. (Chego a pensar: será que a turma está deprimida?) Outra novidade: normalmente, este tramite, de caráter administrativo, é cumprido pela secretaria do STF. Para apressar, os próprios ministros fariam isso. É mais uma mudança para economizar tempo.

Além de rejeitar, antes da hora, os embargos dos embargos declaratórios, seria necessário, também, rejeitar os embargos infringentes. Pede-se uma decisão rápida, mas não será simples nem isenta de explicações. O próprio Joaquim Barbosa, que hoje considera que estes embargos são ilegais, já disse o contrário, pouco tempo atrás.

Em 2007, dois irmãos recorreram ao STF contra a condenação de 14 e 17 anos pela morte de um advogado de Roraima. A corte manteve a sentença e os dois réus entraram com embargos de declaração e pedido de efeitos infringentes sobre a decisão. Ao negar o recurso Joaquim Barbosa esclareceu: “não cabem embargos infringentes no caso presente, tendo em vista que não houve divergência de quatro votos em qualquer questão decidida no acórdão embargado.”

Quando Joaquim falou em 4 votos, estava definindo embargos infringentes que podem ser pedidos pelos troféus políticos do mensalão, começando por Dirceu, Genoíno, Delúbio, por exemplo. Não serão inocentados, vamos deixar claro. Mas poderão fazer uma segunda defesa, direito que é natural em qualquer democracia moderna, em especial daqueles países que nossos crocodilos chamam de “sérios.”

Se Joaquim Barbosa não tinha nenhuma dúvida sobre o direito aos embargos infringentes, embora já estivesse no mesmo ano em que o STF recebeu a denúncia contra os réus do mensalão, outra manifestação importante é mais recente. Em agosto de 2012, quando o julgamento da ação penal 470 teve início, ministro Celso de Mello, insuspeito de qualquer simpatia pelos eventuais beneficiários, encarregou-se de sepultar todo questionamento ao direito dos réus.

Numa intervenção clara e didática, que você pode ler numa nota anterior, o decano do STF, reconhecido por Joaquim Barbosa como uma das principais referencias da Corte, destrói um a um todos os argumentos contra os embargos infringentes.

Não se pode imaginar que fosse uma colocação distorcida por mudanças em outro contexto. O decano fez este pronunciamento quando o exame estava no início. Apareceu a questão de que, num julgamento em instancia máxima, os réus não teriam o direito universal a dupla jurisdição. Celso de Mello respondeu a essa questão.

Numa intervenção de caráter até reconfortante para possíveis condenados, Celso de Mello esclareceu que isso estava fora de dúvida. Definiu os embargos infringentes como direito acima de qualquer dúvida ou embaraço, deixou claro que eles tinham a função de segunda instância – e jamais poderiam ser questionados.

Seriam abandonados, agora?

É possível, claro, até porque seria uma forma do STF afirmar uma opção que sempre seguiu neste caso — sempre tomou decisões desfavoráveis aos réus. Não estou exagerando. Logo no início do julgamento, quando estava claro para todos no STF que faltavam provas consistentes para condenar a maioria dos réus, o Supremo dispensou a exigência de ato de ofício e aceitou a teoria do domínio do fato oferecida pelo Ministério Público. Na hora de apresentar seu voto, o relator mudou a metodogia. Em vez de fazer uma acusação coerente, com princípio, meio e fim, empregou o método do fatiamento, que partilhava a denuncia em várias parcelas, confundindo o trabalho do ministro revisor e inutilizando os principais argumentos da defesa, que haviam sido elaborados para responder ao que seria um voto organizado de forma convencional.

Outro exemplo. Provas existentes, em documentos oficiais, contestam que houve desvio de dinheiro público, base para condenações por corrupção, peculato, formação de quadrilha. Mas o STF preferiu dar ouvidos a uma testemunha que conhece fatos de ouvir dizer, jamais participou de qualquer decisão e ainda por cima recebeu somas indevidas em sua conta bancária. Também se apoiou em impressões com base do “não é plausível”, ou “não é crível.” Ignorou laudos da Polícia Federal que indicavam que os célebres empréstimos do Banco Rural para o PT, uma das bases da denúncia, eram verdadeiros – não simples embuste, como diz o Ministério Público. Também deixou de examinar inquéritos paralelos, que poderiam ser de grande utilidade para determinados réus, como Henrique Pizzolato, provar sua inocência,

As penas imensas, que chegaram a 40 anos, superior a adolescente paulista que matou o pai e a mãe a pauladas e depois foi mergulhar numa piscina de motel, foram definidas num debate onde a vontade de obter altas condenações sequer foi disfarçada, apelando-se até para um recurso artificial. Depois que se votou pela inocência ou culpabilidade de cada acusado, ministros que haviam votado pela inocência dos réus condenados foram impedidos de participar do debate sobre a dosimetria. Evitou-se assim que sua visão sobre a culpa de cada acusado, tão legítima como a dos demais, pudesse pesar sobre o destino de cada um. Evitou-se, na verdade, que o STF produzisse sentenças temperadas, de acordo com uma visão de seu conjunto de juízes – e não apenas da parcela favorável as condenações.

O Supremo é supremo e pode alterar regras, convicções, jurisprudências. Pode negar aos réus do mensalão o que ofereceu ao PSDB-MG, o desmembramento.

O próprio Celso de Mello pode mudar de ideia e desdizer o que disse. Em 2012, quando o STF discutiu quem teria a palavra final sobre perda de mandatos, Celso de Mello decidiu a votação porque voltou atrás em relação a um voto de 1995, quando afirmou, com toda veemência, que a Constituição vedava a interferência de qualquer outro poder nesta matéria.

Mas o caso dos embargos infringentes é dramático e decisivo. Representa a única chance de que pelo menos os condenados com um mínimo de 4 votos dissidentes — a sorte dos demais será resolvida sem essa oportunidade, o que é de se pensar também –tenham direito a um novo exame de suas culpas. Não é muito tempo nem pouco tempo. É apenas mínimamente justo.

Profissionais da crítica permanente daquilo que chamam de “populismo” – crítica muito comum na boca de quem não tem voto, vamos combinar — pregam a punição imediata em nome de um 7 de setembro feliz.

É um show conhecido. No 7 de setembro, sob o regime militar, havia jornais que enfrentavam os rigores da censura. E havia aqueles que, para bajular o regime, publicavam bandeiras do Brasil na primeira página. Não por acaso, alguns representantes dessa turma favorável a ditadura, após uma chuva de esterco, informaram, 49 anos depois, que estavam arrependidos de ter apoiado o golpe.

No fundo, os crocodilos querem enredar o STF numa armadilha. Querem juízes preocupados com seus índices de popularidade e sua audiência, ocupados em medir prós e contras nas redes sociais. Quem sabe venham a ser candidatos, como Aécio Neves quer fazer com Joaquim para afastá-lo de uma competição na raia presidencial. Como Marina Silva quer fazer com Ayres Brito.

Mas querem, especialmente, juízes enfraquecidos.

Não vamos nos iludir. Os crocodilos exageram os poderes da toga para inocular sua impotência.

Revogaram seletivamente a mais avançada doutrina que o Judiciário brasileiro conseguiu construir em sua história, o garantismo, o respeito pelos direitos individuais, agora substituído pela judicialização, pelo espetáculo de um STF que esbarra com outros poderes, inclusive o voto popular, para assumir funções para as quais não foi eleito.

Estamos desde o início com a faca no pescoço dos ministros – ainda que nem todos tenham disposição para enxergá-la.

A alegria sonhada pelos crocodilos é macabra e seu horizonte é o fascismo, que é a violência manipulada para atingir o Direito, às costas da soberania popular.

Querem um Supremo diminuído, temeroso e devoto.

Os alvos dos crocodilos são seletivos e saíram do governo Lula. Com todas as nuances e adaptações, são sucessores políticos daqueles que foram derrubados pelos tanques em 64. Os banqueiros do Nacional não preocupam. Muito menos os tucanos do propinoduto, investigados há 15 anos e que até hoje não respondem a nada.

Mas os condenados da ação penal 470 precisam ir para a cadeia já e de qualquer jeito. Mesmo que a lei não ajude. Mesmo que as provas sejam contrariadas. Mesmo que o trabalho da Polícia Federal fique em segredo e isso contribua, perversamente, para atrapalhar os réus.

Tenho certeza absoluta de que muitos brasileiros querem a prisão dos condenados pela ação penal 470. São sinceros e estão convencidos de seus motivos. Acho que o massacre dos meios de comunicação, tendenciosos, tem muito a ver com isso.

Não custa lembrar, contudo, que o Brasil não se resume a essas pessoas. Todos os deputados indiciados na ação penal 470 e que disputaram cargos eleitos em 2010 tiveram boa votação. Em 2012 a lei ficha limpa tirou João Paulo Cunha do pleito em Osasco. Senão, teria sido eleito prefeito. Não pode concorrer e emplacou um substituto no posto. Dirceu só não foi eleito em 2010 porque perdeu os direitos políticos no Congresso.

O “povo”, “a rua”, “o monstro” compareceu em massa às urnas em 2006, 2010, 2012. Em nenhuma dessas ocasiões a ação penal 470 derrotou qualquer candidato a presidente, a governador, a prefeito. Ocorreram derrotas e vitórias espetaculares. Sei da opinião de quem vai aos protestos. Mas basta andar pela rua e perguntar a opinião da população sobre Dilma. Ou sobre Lula.

A questão é essa. Um tribunal não deve funcionar como o auditório do velho Chacrinha, na base do palmômetro.

Os crocodilos querem criar um ambiente artificial para mastigar o Supremo. Do alto de sua audiência, que enfeitiça tantas almas, reagem como aquele demônio de Vinícius de Moraes, que dizia para cativar o operário que o seguia: “Tudo isso será teu, se me adorares…”
Mas essas riquezas de que falam os crocodilos são falsas. Como não prestam seus argumentos, nem sua glória. Seu horizonte é turvo.

Os mais lúcidos, entre eles, não se atrevem a dizer aonde pretendem chegar, porque seu destino é o indizível de tão horrendo, vergonhoso, de espantar os velhos, inaceitável, para quem tem memória.

Paulo Moreira Leite
Diretor da Sucursal da ISTOÉ em Brasília, é autor de “A Outra História do Mensalão”. Foi correspondente em Paris e Washington e ocupou postos de direção na VEJA e na Época. Também escreveu “A Mulher que Era o Outro General da Casa”.

Artigo publicado originalmente em http://www.istoe.com.br/colunas-e-blogs/coluna/322653_CROCODILOS+RONDAM+O+STF+

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