Aldeia Nagô
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Cinismo, hipocrisia e muitas falácias. Por Dante Lucchesi

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Em um editorial que já se coloca como um dos momentos mais vergonhosos da história do jornalismo no Brasil, a Folha de São Paulo deu, sem meias palavras, o recado do mercado financeiro, do qual é porta-voz: tem que cortar os gastos sociais, que a desfaçatez do editorialista chama de “almoço grátis”. O governo não pode cumprir o programa pelo qual foi eleito de “colocar o pobre no orçamento e o rico no imposto”. Tem que executar o programa dos banqueiros, que não foi chancelado pelas urnas, em um golpe branco que a banca quer dar, sabotando a política econômica do ministro Haddad, com um ataque especulativo contra a moeda brasileira, que resultará no aumento da inflação e na queda de popularidade do governo Lula.
Cobrar imposto do rico é uma heresia inaceitável na sociedade mais desigual do planeta. Quem tem que pagar a conta do ajuste fiscal é quem ganha salário-mínimo, o aposentado e o idoso e o deficiente, que vivem do Benefício de Prestação Continuada. A farra das isenções fiscais tem que continuar, sobretudo a que beneficia a mídia capitalista. Os supersalários são intocáveis. A bandidagem das emendas parlamentares não são problema, são solução, pois mantêm o poder e a continuação de um congresso dominado por gângsteres a serviço do capital financeiro e do agronegócio. Taxar a distribuição de juros e dividendos, como acontece em praticamente todas as sociedades capitalistas do planeta, nem pensar.
Então, quando o editorial da Folha fala em gastança desenfreada e escancarada do governo com os programas sociais, chamados pejorativamente de “almoço grátis”, estamos diante de uma das mais abomináveis manifestações de cinismo e hipocrisia da história do jornalismo brasileiro, que se completa com o elogio à elevação estratosférica da taxa Selic pelo Banco Central bolsonarista, como forma de conter a inflação, que o próprio mercado financeiro está produzindo, com seu ataque especulativo contra a moeda brasileira, provocando uma alta artificial do dólar. Com isso, o responsável pela alta da inflação torna-se o principal beneficiado com alta dos juros. De quebra, ainda produz uma recessão, que vai minar a popularidade de um governo federal indesejado pelo “mercado”, que ganha assim em todas as pontas, como sempre. E, ao cinismo e à hipocrisia do editorial, junta-se a falácia.
Não importa que a economia brasileira tenha crescido bem acima das previsões do “mercado”, não importa que o nível de desemprego seja o mais baixo da série histórica, nem importa que a renda dos brasileiros tenha aumentado no governo Lula. Para o “mercado”, isso é ruim para a economia, é inflacionário. É preciso aumentar os juros e levar a economia à recessão, para garantir o austericídio fiscal. Como já se disse, o “mercado” quer que o governo Lula pratique um haraquiri político, sacrificando sua base social, para garantir a orgia da especulação financeira. O grande modelo do mercado atualmente é o falastrão Milei, cujo governo colocou mais da metade da população da Argentina na pobreza e um quinto na miséria, mas zerou o déficit fiscal. Para o “mercado”, essa política econômica é o grande modelo para a América Latina. Ou seja, é necessário e imprescindível que a economia entre em recessão, o desemprego aumente, os serviços públicos sejam desmontados e o povo passe fome. Caso contrário, a inflação dispara, com “seus efeitos devastadores sobre a renda, sobretudo dos mais pobres”, como disse o repugnante editorial da Folha, em um contorcionismo lógico que vai entrar para a história das teratologias intelectuais.
Para manter a hegemonia ideológica, as classes dominantes têm que apresentar seus interesses privados como sendo do interesse de toda a sociedade, “sobretudo” dos mais pobres. Porém, no estágio atual da superexploração capitalista, tal construção ideológica se encerra em um paradoxo evidente. Segundo o discurso ideológico do mercado, reproduzido e massificado pela mídia capitalista, como nesse editorial da Folha, não ter emprego e passar fome é a melhor opção para os mais pobres. É nesse momento que a hipocrisia se transforma em cinismo.
E a Folha, que já foi considerado um jornal progressista, tornou-se, em termos jornalísticos, políticos e éticos, um esgoto a céu aberto. E esse editorial vai se tornar um caso clássico para a disciplina Análise do Discurso, pela capacidade de seu autor de reunir, em um texto tão curto, tanta falácia, hipocrisia e cinismo.

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