Aldeia Nagô
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O sonho do gigante dorminhoco por Lula Affonso

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“Aconteceu também no Brasil. Sem que ninguém esperasse. Sem líderes. Sem partidos nem sindicatos em sua organização. Sem apoio da mídia.

Espontaneamente. Um grito de indignação contra o aumento do preço dos transportes que se difundiu pelas redes sociais e foi se transformando no projeto de esperança de uma vida melhor, por meio da ocupação das ruas que reuniram multidões em mais de 350 cidades”.

São palavras de quem pouco conhece o sono profundo do Gigante. Com elas, o laureado sociólogo espanhol Manuel Castells, pensador favorito das redes sociais inicia o posfácio à edição brasileira do seu livro mais recente: “Redes de indignação e esperança” (Zahar, 2013).

Nos sete capítulos desse seu trabalho recém-saído do forno, o autor atribui a imobilidade estrutural das grandes cidades brasileiras a um modelo caótico de crescimento urbano que ignora as dimensões humana e ecológica, produzido pela especulação imobiliária e corrupção; aponta privilégios à indústria do automóvel, cujas vendas o governo subsidia; e atribui aos nossos profissionais da classe política a privatização dos cargos públicos e o entendimento de que “a política é coisa de políticos e não de cidadãos”, reduzindo a nossa democracia a um mercado de votos dominado pelo dinheiro, clientelismo e manipulação midiática.

Brasília
Recife
Blumenau
São Luiz

Salvador
Rio
Castells, que foi o acadêmico mais citado do mundo na área de Comunicação no período 2000-2006 (Social Sciences Citation Index), empreende uma convincente abordagem aos movimentos de contestação eclodidos em 2011 em diversos países de quatro continentes, tendo em comum duas peculiaridades: a conexão massiva por meio das redes sociais e a ocupação de espaços públicos físicos e simbólicos.
Descrevendo os ventos primaveris que desmontaram ditaduras cruéis e anacrônicas na Tunísia, Egito e Líbia e as rebeliões espontâneas que, articuladas globalmente, abalaram a Islândia, a Espanha (Indignados) e os EUA (Occupy), o autor evidencia que, com a força e intensidade desses movimentos, regimes mudaram, instituições foram desafiadas e a crença no capitalismo financeiro global triunfante foi seriamente abalada.

 

Praça Tahrir – Cairo
Wall Street
Castells e sua equipe de pesquisadores identificaram o poder do contágio viral nesses movimentos, que lhes permitiu espalhar imagens e ideias por um mundo conectado em redes. Em todos os casos, as rebeliões “ignoraram os partidos políticos, desconfiaram da mídia, não reconheceram nenhuma liderança e rejeitaram toda organização formal, sustentando-se na internet e em assembleias locais para o debate coletivo e a tomada de decisões”. Evidencia-se, na perspectiva de tais movimentos, que as redes de comunicação são fontes decisivas de construção do poder e que  os segmentos dominantes têm o interesse comum de controlar a capacidade de definir as regras e normas da sociedade, mediante um sistema político que responde basicamente a seus interesses e valores.

 O autor nos lembra que, ao longo da História, os movimentos sociais foram e continuam sendo as alavancas da mudança social, geralmente se originam de crises que afetam em profundidade a existência cotidiana dos cidadãos, que “são induzidos a uma profunda desconfiança nas instituições políticas que administram a sociedade”. A degradação das condições de vida deslegitima os governantes e induz as populações afetadas a ações coletivas que extrapolam os canais institucionais estabelecidos.

 

O que há de novo neste início de século é que esses ciclos estão fortalecidos pela explosão das tecnologias de informação e comunicação e pelos novos modelos de organização, que protagonizam o indivíduo conectado em redes locais e globais, criando novos espaços de autonomia (individual e coletiva) e corroendo as bases massivas das mídias tradicionais. Em sua prestigiada obra sociológica, Castells focaliza em profundidade esse novo contexto, que se dá “no cerne da sociedade em rede como nova estrutura social” em que os movimentos sociais contemporâneos se constituem.

É difícil falar de Castells sem encher o texto de aspas. Então vamos nessa, sem traumas nem filigranas sucedâneas. Nesse seu novo trabalho, o autor preconiza que, “embora os movimentos tenham sua base no espaço urbano, mediante ocupações e manifestações de rua, sua existência contínua tem lugar no espaço livre da internet”. Aponta a dispensabilidade de centros de coordenação e deliberação em tais redes abertas e descentralizadas, sem fronteiras definidas, que disseminam e exponencializam as chances de participação do indivíduo e grupos “aderidos” pela confluência e partilhamento de pontos de vista e posicionamentos. Igualmente, reduz a vulnerabilidade do movimento à repressão, “já que há poucos alvos específicos a reprimir, exceto nos lugares ocupados”.

 

Para a efetividade e o êxito dos movimentos de contestação, Castells destaca, além da premissa da conexão em redes, a indispensabilidade da ocupação do espaço urbano, condição que se estratificou nas sedições árabes-africanas e nas rebeliões européias e americanas (a designação occupy é sintomática): “Esse híbrido de cibernética e espaço urbano constitui um terceiro espaço, a que dou o nome de espaço de autonomia”. Segundo o autor, é a nova forma espacial dos movimentos sociais em rede. Mais: os movimentos são simultaneamente globais e locais “e exibem claramente uma cultura cosmopolita, embora ancorados em sua identidade específica, configurando redes individuais globais”.

 

Dublin
Castells assevera que os movimentos, conquanto rejeitem os partidos políticos tradicionais, não têm objeção ao princípio da democracia representativa, embora denunciem a sua prática (tal como hoje se dá) e não reconheçam sua legitimidade. Ele não acredita em uma interação positiva entre os movimentos e os políticos visando “a uma reforma das instituições de governança que amplie os canais de participação política e limite a influência dos lobbies e grupos de pressão no sistema político”, reivindicações fundamentais da maioria dos movimentos sociais.

 

Ele não dispensa, ademais, uma “sugesta” a quem está por cima: “Quando as sociedades falham na administração das suas crises estruturais pelas instituições existentes, a mudança só pode ocorrer fora do sistema, mediante a transformação das relações de poder”. Num cenário em que dificilmente os movimentos sociais serão coptados por partidos políticos tradicionais, o autor apregoa que eles “pretendem transformar o Estado, mas não se apoderar dele”.
Rejeição a militantes de partidos
Black blocs

Enfim, assoprando uns ares refrescantes sobre a aura cinzenta dos pessimistas de carterinha, Castells acena com o surgimento de uma nova utopia no cerne da cultura da sociedade em rede: a utopia da autonomia do sujeito em relação às instituições da sociedade. Nada mal.

Mesmo considerando limitada a influência do movimento sobre os poderes governantes (no Brasil ficou aquém da nulidade), Castells identifica um efeito colateral que, ainda que pareça esquisito para um sociólogo, pode decidir a parada no longo prazo: nos neurônios das pessoas que participam ou se ligam nos movimentos cria-se uma conexão profunda, quem sabe subliminar, entre reforma política e mudanças sociais, aumentando a consciência dos cidadãos, qualificando-os e ampliando-lhes a capacidade de tomar suas próprias decisões em relação à classe política. Valeu, Castells! (Lula Afonso).

Publicado originalmente em http://wagau.blogspot.com.br/2013/10/o-sonho-do-gigante-dorminhoco.html

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