O sonho do gigante dorminhoco por Lula Affonso
São palavras de quem pouco conhece o sono profundo do Gigante. Com elas, o laureado sociólogo espanhol Manuel Castells, pensador favorito das redes sociais inicia o posfácio à edição brasileira do seu livro mais recente: “Redes de indignação e esperança” (Zahar, 2013).
Nos sete capítulos desse seu trabalho recém-saído do forno, o autor atribui a imobilidade estrutural das grandes cidades brasileiras a um modelo caótico de crescimento urbano que ignora as dimensões humana e ecológica, produzido pela especulação imobiliária e corrupção; aponta privilégios à indústria do automóvel, cujas vendas o governo subsidia; e atribui aos nossos profissionais da classe política a privatização dos cargos públicos e o entendimento de que “a política é coisa de políticos e não de cidadãos”, reduzindo a nossa democracia a um mercado de votos dominado pelo dinheiro, clientelismo e manipulação midiática.
Brasília |
Recife |
Blumenau |
São Luiz |
Salvador |
Rio |
Praça Tahrir – Cairo |
O autor nos lembra que, ao longo da História, os movimentos sociais foram e continuam sendo as alavancas da mudança social, geralmente se originam de crises que afetam em profundidade a existência cotidiana dos cidadãos, que “são induzidos a uma profunda desconfiança nas instituições políticas que administram a sociedade”. A degradação das condições de vida deslegitima os governantes e induz as populações afetadas a ações coletivas que extrapolam os canais institucionais estabelecidos.
É difícil falar de Castells sem encher o texto de aspas. Então vamos nessa, sem traumas nem filigranas sucedâneas. Nesse seu novo trabalho, o autor preconiza que, “embora os movimentos tenham sua base no espaço urbano, mediante ocupações e manifestações de rua, sua existência contínua tem lugar no espaço livre da internet”. Aponta a dispensabilidade de centros de coordenação e deliberação em tais redes abertas e descentralizadas, sem fronteiras definidas, que disseminam e exponencializam as chances de participação do indivíduo e grupos “aderidos” pela confluência e partilhamento de pontos de vista e posicionamentos. Igualmente, reduz a vulnerabilidade do movimento à repressão, “já que há poucos alvos específicos a reprimir, exceto nos lugares ocupados”.
Para a efetividade e o êxito dos movimentos de contestação, Castells destaca, além da premissa da conexão em redes, a indispensabilidade da ocupação do espaço urbano, condição que se estratificou nas sedições árabes-africanas e nas rebeliões européias e americanas (a designação occupy é sintomática): “Esse híbrido de cibernética e espaço urbano constitui um terceiro espaço, a que dou o nome de espaço de autonomia”. Segundo o autor, é a nova forma espacial dos movimentos sociais em rede. Mais: os movimentos são simultaneamente globais e locais “e exibem claramente uma cultura cosmopolita, embora ancorados em sua identidade específica, configurando redes individuais globais”.
Dublin |
Enfim, assoprando uns ares refrescantes sobre a aura cinzenta dos pessimistas de carterinha, Castells acena com o surgimento de uma nova utopia no cerne da cultura da sociedade em rede: a utopia da autonomia do sujeito em relação às instituições da sociedade. Nada mal.
Mesmo considerando limitada a influência do movimento sobre os poderes governantes (no Brasil ficou aquém da nulidade), Castells identifica um efeito colateral que, ainda que pareça esquisito para um sociólogo, pode decidir a parada no longo prazo: nos neurônios das pessoas que participam ou se ligam nos movimentos cria-se uma conexão profunda, quem sabe subliminar, entre reforma política e mudanças sociais, aumentando a consciência dos cidadãos, qualificando-os e ampliando-lhes a capacidade de tomar suas próprias decisões em relação à classe política. Valeu, Castells! (Lula Afonso).
Publicado originalmente em http://wagau.blogspot.com.br/2013/10/o-sonho-do-gigante-dorminhoco.html