Use suas ilusões contra os cínicos por Slavoj Zizek
A razão por que a vitória de Obama gerou tamanho
entusiasmo não está apenas em que, contra todas as chances, realmente
aconteceu: ela demonstrou a possibilidade de que uma coisa dessas acontecesse.
O mesmo vale para todas as rupturas históricas
as pessoas a votarem em Obama "sem ilusões". Eu compartilho
plenamente as dúvidas de Chomsky quanto às conseqüências reais da vitória de
Obama: de uma perspectiva pragmática, é bastante possível que Obama faça
algumas melhoras, tornando-se um "Bush com uma cara humana". Ele
seguirá as mesmas políticas básicas num modo mais atrativo e então efetivamente
fortalecerá a hegemonia norte-americana, danificada pela catástrofe dos anos
Bush.
Há, contudo, algo profundamente errado nessa reação – uma dimensão chave está
faltando na vitória de Obama. É que não se trata apenas da eterna luta pela
maioria parlamentar, com todos os cálculos pragmáticos e manipulações
envolvidas. É um signo de algo mais. É por isso que um amigo meu
norte-americano, um esquerdista radical sem ilusões, chorou quando as notícias
anunciaram a vitória de Obama. Quaisquer que sejam nossas dúvidas, por um
momento cada um de nós estava livre e participando da liberdade universal da
humanidade.
No "Conflito das Faculdades", Kant faz uma pergunta difícil
mas simples: há realmente progresso na história? (ele queria dizer progresso
ético, não apenas desenvolvimento material). Ele concluiu que o progresso não
pode ser provado, mas podemos discernir signos que indicam que o progresso é
possível. A Revolução Francesa foi um signo desses, apontando a direção da
possibilidade da liberdade: o que antes era impensável aconteceu, uma
totalidade de pessoas afirmaram sua liberdade e igualdade corajosamente.
Para Kant, ainda mais importante que a – sempre sangrenta – realidade do que se
passou nas ruas de Paris foi o entusiasmo que os eventos na França ofereceu aos
olhos dos simpáticos observadores em toda a Europa e em lugares distantes como
o Haiti, em que esses acontecimentos engatilharam outro evento
histórico-mundial: a primeira revolta de escravos negros. Possivelmente o
momento mais sublime da Revolução Francesa ocorreu quando a delegação haitiana,
liderada por Toussaint l’Overture visitou Paris e foi entusiasticamente
recebida pela Assembléia Popular como iguais dentre iguais.
A vitória de Obama é um signo da história no triplo sentido kantiano designum
rememorativum, demonstrativum, prognosticum. Um signo no qual a
memória do longo passado de escravidão e da luta por sua abolição reverbera; e
um evento que agora demonstra uma mudança; uma esperança para conquistas
futuras. O ceticismo apresentado por trás das portas fechadas mesmo de
progressistas angustiados – e se, na privacidade da cabine de votação, o racismo
publicamente repudiado reemergisse? – provou-se errado. Uma das coisas
interessantes a respeito de Henry Kissinger, o mais recente realpolitiker cínico
é como a maior parte de suas previsões estava errada. Quando as notícias do
golpe militar anti-Gorbachov de 1991 chegaram ao Ocidente, por exemplo,
Kissinger imediatamente aceitou o novo regime como um fato. Ele colapsou
ignominiosamente três dias depois. O cínico paradigmático conta a ti
confidencialmente: "Mas não vês que tudo, na verdade, diz respeito a
dinheiro/poder/sexo, que declarações de princípios ou de valores são apenas
frases vazias que não contam para nada?" O que os cínicos não vêem é a sua
própria ingenuidade, a ingenuidade de sua sabedoria cínica que ignora o poder
das ilusões.
A razão por que a vitória de Obama gerou tamanho entusiasmo não está apenas em
que, contra todas as chances, realmente aconteceu: ela demonstrou a
possibilidade de que uma coisa dessas acontecesse. O mesmo vale para todas as
rupturas históricas – pense na queda do muro de Berlim. Mesmo que todos nós
soubéssemos da ineficiência corrupta dos regimes comunistas, não acreditamos
realmente que ele iria se desintegrar – como Kissinger, éramos todos vítimas do
pragmatismo cínico. A vitória de Obama era claramente previsível desde pelo
menos duas semanas antes das eleições, mas ainda assim foi experienciada como
uma surpresa.
A verdadeira batalha começa agora, depois da vitória: batalha pelo que essa
vitória efetivamente significará, especialmente no contexto de dois eventos
nefastos: o 11/9 e o atual derretimento financeiro, como uma instância da
história que se repete, a primeira vez como tragédia, a segunda, como farsa. O
discurso do presidente Bush aos norte-americanos depois do 11 de Setembro e
depois do derretimento financeiro soaram como duas versões da mesma fala. Em
ambos os momentos, ele evocou a ameaça ao american way of life e
à necessidade de resposta rápida e decisiva. Em ambas as vezes, solicitou a
suspensão parcial dos "valores americanos" (garantias para a
liberdade individual, capitalismo de mercado) para salvar esses valores. De
onde vem essa similaridade?
A queda do muro de Berlim em 9 de novembro de 1989 marcou o começo dos
"felizes anos 90". De acordo com Francis Fukyama a democracia liberal
tinha, em princípio, vencido. A era é geralmente vista como tendo chegado ao
fim em 11 de Setembro. Contudo, parece que a utopia teve de morrer duas vezes:
o colapso da democracia política liberal em 11 de Setembro não afetou a utopia
do capitalismo de mercado global, que agora chegou ao fim.
O derretimento financeiro tornou impossível ignorar a irracionalidade gritante
do capitalismo global. Na luta contra a AIDS, a fome, a falta de água ou o
aquecimento global, podemos reconhecer a urgência do problema, mas sempre é
momento para refletir, para adiar decisões. A conclusão mais importante do
encontro de líderes em Bali para conversar sobre mudança climática foi
celebrada como um sucesso, a de que deveriam se encontrar de novo em dois anos
para continuar as conversações.
Porém, com o derretimento financeiro, a urgência foi incondicional; uma soma
além da imaginação foi imediatamente encontrada. Salvando espécies em extinção,
salvando o planeta do aquecimento global, encontrando uma cura para a AIDS,
salvando as crianças famintas…tudo isso pode esperar um pouco, mas
"Salve os bancos!" é um imperativo incondicional que requer se tome
providências imediatas. O pânico foi absoluto. Uma unidade transnacional e
não-partidária foi imediatamente estabelecida, sem ressentimentos.
Compare os 700 bilhões de dólares gastos para estabilizar o sistema bancário só
pelos EUA aos 22 bilhões de dólares suplicados às nações ricas para ajudar às
pobres a superar sua crise alimentar, dos quais apenas 2,2 bilhões foram
concedidos. A culpa pela crise alimentar não pode ser atribuída aos suspeitos
usuais de corrupção, ineficiência ou intervencionismo estatal. Até Bill Clinton
sabia que "somos todos culpados, inclusive eu", ao tratar da produção
de alimentos como commodities, no lugar de um direito vital dos
países pobres. Clinton foi muito claro ao culpar não apenas estados ou
governos, mas a política ocidental de longo prazo, imposta pelos EUA e pela
União Européia e decretadas pelo Banco Mundial, FMI e outras instituições
internacionais.
Países da África e da Ásia foram pressionados a derrubar os subsídios
governamentais aos produtores, abrindo o caminho para que as melhores terras
fossem usadas no lucrativo plantio para exportação. O resultado desse tipo de
"ajuste estrutural" foi a integração da agricultura local na economia
global: safras foram exportadas, agricultores foram expulsos de suas terras e
levados ao trabalho em condições de escravidão, e os países mais pobres tiveram
de importar cada vez mais comida. Dessa maneira, foram postos numa dependência
pós-colonial, vulneráveis a flutuações de mercado – preços exorbitantes de
grãos (causados em parte pelo uso para os biocombustíveis) têm significado fome
nesses países, do Haiti a Etiópia.
Clinton está certo ao dizer que "comida não é uma commoditie como as
outras. Deveríamos retomar uma política de auto-suficiência alimentar. É
loucura para nós pensar que podemos desenvolver países ao redor do mundo sem
aumentar sua capacidade de alimentarem a si mesmos". Há pelo menos duas
coisas a acrescentar aqui. Primeiro, os países desenvolvidos do Ocidente
tomaram muito cuidado em manter sua própria auto-suficiência alimentar através
do subsídio financeiro aos seus produtores (subsídios agrícolas constituem
quase metade de todo o orçamento dos EUA). Segundo, a lista de coisas que
"não são commodities como as outras" é muito maior: afora os
alimentos (e a defesa, como todos os patriotas sabem), há água, energia,
meio-ambiente, cultura, educação, saúde – quem tomará decisões quanto a essas
coisas, se elas não podem ser deixadas para o mercado? É aqui que a questão do
comunismo tem de ser levantada, de novo.
A matéria de capa na Time de 5 de junho de 2006 foi "A
Lista de Mortos em Guerra no Mundo" – um relato detalhado da violência
política que matou 4 milhões de pessoas no Congo ao longo da última década.
Nenhuma onda de ajuda humanitária se seguiu; só umas duas cartas de
leitores. Timeescolheu a vítima errada: deveria ter mirado em
mulheres muçulmanas ou em monges tibetanos. A morte de uma criança palestina,
para não mencionar a de uma israelense ou norte-americana, vale milhares de
vezes mais centímetros de colunas do que a morte de congoleses anônimos. Por
que?
Em 30 de outubro, a Associated Press fez uma reportagem na qual Laurent Nkunda,
o general rebelde que sitiou a capital da província do leste, Goma, disse que
ele queria falar diretamente com o governo sobre suas objeções à ajuda de um
bilhão de dólares dada pela China para ter acesso à vasta riqueza mineral do
país em troca de ferrovias e rodovias. Questões neocoloniais à parte, esse
acordo põe uma ameaça vital aos interesses dos senhores da guerra locais, à
medida que cria as bases para a infra-estrutura da República Democrática do
Congo como um estado unido funcional.
Em 2001, uma investigação da ONU sobre
a exploração ilegal de recursos naturais no Congo descobriu que o conflito no
país gira fundamentalmente em torno do acesso, controle e comercialização de
cinco minerais-chave: coltan (combinação de duas palavras que descrevem a
columbita e a tantalita, minerais altamente cobiçados), diamantes, cobre,
cobalto e ouro. De acordo com essa investigação, a exploração dos recursos
naturais no Congo pelos senhores da guerra locais e por exércitos estrangeiros
era "sistemática e sistêmica". O exército de Ruanda fez no mínimo 250
milhões de dólares em 18 meses, vendendo coltan, que é usado para fazer
celulares e laptops. A investigação concluiu que a guerra civil permanente e a
desintegração do Congo "criaram uma situação em que todos os beligerantes
ganham. O único a perder nesse negócio monumental é o povo congolês". Por
trás da fachada de uma guerra étnica, discernimos então os contornos do
capitalismo global.
Entre os grandes exploradores estão os Tutsis de Ruanda, as vítimas do
genocídio há 14 anos. No começo deste ano, o governo de Ruanda publicou
documentos que demonstravam a cumplicidade da administração Miterrand com o
genocídio: a França apoiou o plano Hutu para tomar o controle, inclusive
fornecendo-lhes armas, a fim de retomar a influência perdida pelos anglófilos
Tutsis. A negação da França dessas acusações, como sendo totalmente infundadas
foi, para dizer o mínimo, ela mesma sem fundamento. Trazer Miterrand para o
Tribunal de Haia, mesmo postumamente, quebraria uma barreira fatal, ao julgar
um líder político ocidental que se pretendia protetor da liberdade, da
democracia e dos direitos humanos.
Nas últimas semanas tem havido uma extraordinária mobilização da ideologia
dominante para combater as ameaças à ordem atual. O economista neoliberal
francês Guy Sorman, por exemplo, disse recentemente numa entrevista na
Argentina que "a crise será bastante curta". Ao dizer isso, Sorman
está obedecendo à exigência básica no que concerne ao derretimento financeiro:
renormalizar a situação. Como ele disse num outro lugar, essa substituição sem
fim do velho pelo novo – conduzida pela inovação tecnológica e pelo
empreendedorismo, eles próprios encorajados pelas boas políticas econômicas –
trazia prosperidade, mesmo que aqueles deslocados pelo processo cujos empregos
se tornaram redundantes possam, compreensivelmente, oferecer-lhe objeção. (Essa
renormalização coexiste com seu oposto: o pânico das autoridades em tornar o
público pronto a aceitar a solução – obviamente injusta – proposta como
inevitável.) Sorman admite que o mercado é cheio de comportamento irracional,
mas rapidamente acrescenta que "seria absurdo usar o comportamento
econômico para justificar a restauração das excessivas regulações estatais.
Afinal de contas, o estado não é mais racional que o indivíduo, e suas ações
podem ter consequências enormemente destrutivas". Ele continua:
Uma tarefa essencial para os governos democráticos e para os construtores de
opinião, quando confrontados com ciclos econômicos e pressões políticas é
assegurar e proteger o sistema que tem servido tão bem à humanidade, e não
mudá-lo para pior, sob o pretexto de sua imperfeição. Ainda, essa lição é sem
dúvida uma das mais difíceis de traduzir na linguagem em que a opinião pública
aceitará. O melhor dos sistemas econômicos possíveis é na verdade imperfeito.
Quaisquer que sejam as verdades descobertas pela ciência econômica, o livre
mercado é afinal apenas o reflexo da natureza humana, ela mesma dificilmente
perfeita.
Raramente a função da ideologia foi descrita em termos tão claros: para
defender o sistema existente contra quaisquer críticas sérias, legitimá-lo como
uma expressão direta da natureza humana.
É improvável que o derretimento financeiro de 2008 funcione como uma bênção
aparente, o despertar de um sonho, uma lembrança sóbria de que vivemos na
realidade do capitalismo global. Tudo isso depende de como será simbolizado, em
que interpretação ideológica ou histórica vai se impor e determinar a percepção
geral da crise. Quando o curso normal das coisas é traumaticamente interrompido,
o campo é aberto para uma competição ideológica "discursiva". Na
Alemanha de fins dos anos 20, Hitler venceu a competição para determinar qual
narrativa explicaria as razões da crise na República de Weimar e o modo de sair
dela; na França em 1940 a narrativa do marechal Pétain venceu a batalha para
encontrar as razões da derrota francesa.
Conseqüentemente, para pôr em termos marxistas fora de moda, a tarefa principal
para a ideologia dominante na atual crise é impor uma narrativa que não jogará
a culpa pelo derretimento no sistema do capitalismo global como tal, mas em
seus desvios – regulação frouxa, corrupção das grandes instituições
financeiras, etc.
Contra essa tendência, deveria insistir-se na questão-chave: qual "o
defeito" do sistema que o torna de tal modo vulnerável à possibilidade
dessas crises e colapsos? A primeira coisa a ter em mente aqui é que a origem
da crise é "benevolente": depois da bolha tecnológica de 2001, a
decisão nas agendas dos partidos foi a de facilitar o estado real dos investimentos,
a fim de manter a economia funcionando e de evitar recessão – o derretimento
dos dias atuais é o preço pelo EUA ter evitado uma recessão sete anos atrás.
O perigo é, então, que a narrativa predominante do derretimento não seja uma
que nos acorde de um sonho, mas que nos permita continuar sonhando. E é aqui
que deveríamos começar a nos preocupar: não apenas com as conseqüências
econômicas do derretimento, mas com a óbvia tentação de revigorar a
"guerra ao terror" e o intervencionismo norte-americano para que a
economia continue funcionando. Nada foi decidido com a vitória de Obama, mas
ela amplia nossa liberdade e, portanto, o objetivo de nossas decisões. Não
importa o que aconteça, permanecerá um signo de esperança, na contramão desses
tempos de trevas; um signo de que a última palavra não pertence ao cínico
realista, da direita ou da esquerda.
Publicado originalmente na London Review of Books, em 14 de novembro de 2008
Slavoj Zizek é filósofo e psicanalista. Também é co-dirigente do International
Centre for Humanities at Birkbeck College. Seu livro mais recente é In Defence
of Lost Causes [Em Defesa das Causas Perdidas] (Verso). Tem vários trabalhos
publicados no Brasil, entre eles, Às Portas da Revolução – escritos de Lenin de
1917 e Bem-vindo ao deserto do real, ambos pela Boitempo Editorial.
Tradução: Katarina Peixoto