A LEI DA SELVA QUE NOS FAZ CAGAR E ANDAR PARA O PRÓXIMO (OU SALVE-SE QUEM PUDER) por Rogério Menezes
Vivemos era paradoxal, caro
leitor: cada vez mais sabemos detalhes da vida dos outros – (o que gostam, o
que odeiam, o que curtem, com quem fodem, as opiniões, falsas ou verdadeiras, pouco
importa, sobre tudo e todos, via
Facebook e outras mumunhas mais
do nosso virtualíssimo mundo) – e cada vez menos nos envolvemos, de fato, e em
tempo real, com a vida dos outros.
Essa falsa intimidade virtual
mascara o desinteresse que a vida de cada um de nós desperta nos outros, e, por
tabela, o desinteresse que a vida dos outros desperta em cada um de nós.
Viramos legião de criaturas narcísicas que cagam e andam para aquilo que não é
espelho.
Essa atitude não é algo que
defina faixas etárias: garotos recém-entrados na casa dos 20 anos e órfãos de
Woodstock que já passaram dos 60 incorporaram com o mesmo nonchalance esse modus operandi às nossas rotinas diárias. O cronista que ora lhe escreve
se empenha fervorosamente em não cagar e andar para aquilo que não é espelho.
Luta inglória. Quase sempre em vão. Em 2006, por exemplo, me flagrei (mea culpa mea maxima
culpa) entristecido a abatido ao saber, em meio a solar manhã de sábado,
da morte súbita do humorista Bussunda.
No meio desse transe, certo
amigo, da mesma faixa etária, ligou. Ao lhe revelar o motivo da minha
tristeza-quase-angústia, ele disparou, sem choro nem vela: – O que é que você tem a ver com a morte do Bussunda. Bussunda morto
vai mudar a sua vida em quê, cara? Sai dessa!
Desde então, sempre penso duas
vezes antes de me entristecer e de me angustiar diante das mortes súbitas de
outrem, e das dores súbitas de outrem. Mas devo admitir: o meu amigo fracassou
nessa tentativa de me tornar indiferente diante do que não é espelho. É mais
forte do que eu. Fazer o quê? Nasci assim. Vou morrer assim?
Nesta semana dois fatos me
trouxeram de volta essa tristeza-quase-angústia diante das dores alheias:
1. Em texto publicado no blog do
jornalista Luiz Caversan, no UOL,
soube da situação de extrema penúria em que vive atualmente a atriz Ruth
Escobar, um dos nomes mais emblemáticos do teatro brasileiro do século XX. Aos
75 anos, abatida pelo Mal de Parkinson, a outrora fulgurante dama dos palcos
nacionais, vive inferno-na-terra.
Em 1977, ainda de cueiros,
assisti, extasiado, à montagem Torre
de Babel, dirigido pelo franco-argentino Victor Garcia,
protagonizada por Ruth Escobar no teatro homônimo – e que, à
época, fervilhava com a fulgurância do crème
de la crème da inteligência paulistana. Além disso, entrevistei-a nos anos
1980 para a Folha da Tarde (SP). A partir dessa
entrevista, escrevi texto assumidamente queer, alcunhando-a
de ´estrela calva´ (trocadilho infame com ´estrela Dalva´),
por conta da calvície que sempre procurou esconder com indefectível peruca
preta.
Ontem no Facebook comentou-se fartamente sobre
essa débâcle escobariana, e falava-se sobre certa fotografia que registrava a atual
penúria física e mental na qual a atriz vive, ou melhor, morre lentamente.
Poupei-me. Abstive-me de acessar esse flagrante do ocaso dessa grande dama do
teatro brasileiro. Mesmo assim, passei grande parte de minha caminhada matinal
de ontem no Aterro do Flamengo com o pensamento voltado para essa ocorrência
não exatamente alentadora.
2. Também ontem, no começo da tarde,
acessando mensagens no UOL, o
título de certo e-mail me chamou de imediato a atenção: Bad News. Pensei em deletá-la sem lê-la (já não bastam
as milhares de bedinius que nos
rodeiam e nos sangram as jugulares diuturnamente?). Mas li o nome do remetente
(amigo queridíssimo, e a quem amo muitíssimo) – e fui em frente.
O amigo queridíssimo enviava
mensagem aos mais próximos na qual comunicava: acabara de saber por meio
de exames médicos recém-feitos que estava, no viço e no auge do seu poder
intelectual e mental e sexual, apresentando os primeiros sinais do Mal de
Parkinson, doença não exatamente simpática (se é que haverá alguma doença
simpática).
Mas, bravo guerreiro, dono
de alma altaneira, não se deixava vitimizar Ao final do bilhete, brincava: ´Estou désolé (para ser bem fresco e
usar a palavra em francês porque é mais chique), mas não a ponto de me jogar do
oitavo andar. Tentarei seguir trabalhando dentro das limitações. Lamento apenas
não mais poder tomar vinho. A vida é bem injusta. Mas o sexo está liberado (até
onde for possível). Bem, a vida não é tão injusta assim´.
Senti vontade imensa de ir ao
encontro de meu amigo, de ampará-lo, de lhe dar colo, de beijá-lo, e
de lhe dizer que tudo iria acabar bem como nas comédias românticas de
antanho protagonizadas por Rock Hudson e Doris Day. Mas não. Disparei-lhe apenas
amoroso, sincero, e encorajador bilhete.
(Merda: Acho que estou
vivendo e aprendendo a jogar, nem sempre ganhando, nem sempre perdendo, mas
aprendendo a jogar).
Artigo publicado originalmente no Blog: http://olobonoarriodejaneiro.blogspot.com/