A crise financeira atual e a crítica de esquerda hoje por William Vella Nozaki (*)
Lançamento
da Fundação Perseu Abramo, o livro "O abc da crise" cumpre uma dupla
tarefa: organiza os diagnósticos e sintetiza os prognósticos feitos
pela esquerda no ato da crise, de maneira que o livro se torna útil
tanto como instrumento pedagógico quanto como ferramenta política para
quem quer que se interesse por certo pensamento crítico e
contemporâneo. Trata-se de um conjunto representativo das opiniões
não-liberais acerca da crise financeira escritas no calor da hora.
Muito
já se comentou sobre o laço – etimológico e histórico – entre as
palavras crise e crítica. E, embora a crítica seja muitas vezes acusada
de inventar crises inexistentes, nem sempre as crises são acompanhadas
de críticas eficientes. De maneira que, no turbilhão de publicações
oportunistas e salvacionistas sobre a crise financeira atual merece
destaque o livro: "O abc da crise", organizado por Sérgio Sister e
publicado pela Fundação Perseu Abramo.
Trata-se de um conjunto
representativo das opiniões não-liberais acerca da crise financeira
escritas no calor da hora. Como tal, trazem nas linhas o ímpeto de uma
crítica mais conjuntural e de curto-prazo e carregam nas entrelinhas a
tentativa de uma análise mais estrutural e de longo-prazo, dois traços
peculiares das leituras progressistas e heterodoxas.
Nesse
sentido, esse Abc da crise cumpre uma dupla tarefa: organiza os
diagnósticos e sintetiza os prognósticos feitos pela esquerda no ato da
crise, de maneira que o livro se torna útil tanto como instrumento
pedagógico quanto como ferramenta política para quem quer que se
interesse por certo pensamento crítico e contemporâneo.
O livro
é composto por uma série de artigos e entrevistas, inéditos ou já
conhecidos, oriundos tanto do debate intelectual (nacional e
internacional) quanto do cenário político (partidário e governamental).
Causas e conseqüências
Nessa
divisão intelectual da crítica, o texto que dá nome ao livro, assinado
por Jefferson José da Conceição, e produzido coletivamente no âmbito do
Dieese, apresenta uma descrição esquemática e articulada das dimensões
estrutural e conjuntural da crise.
Resgatando os antecedentes
econômicos, políticos e ideológicos, o texto concatena a avanço da
globalização e a expansão do neoliberalismo aos processos de abertura
comercial, liberalização financeira e desregulamentação da proteção
social assim como dos direitos trabalhistas. O objetivo é evidenciar
como todos esses fatores se somam e concorrem produzindo uma associação
perigosa entre bancos nacionais e finanças internacionais, dando margem
a todo tipo de criatividade irresponsável no trato com o dinheiro
público e privado.
Aliás, o efeito em cadeia que converte um
problema no setor imobiliário norte-americano em um problema no sistema
bancário e creditício dando origem a uma crise financeira internacional
não pode ser fruto senão dessa constelação de fatores, nos lembra o
autor.
Logo ficou claro como a quebra dos bancos
norte-americanos e europeus significaria corte em créditos e
investimentos no mundo todo, e que a recessão que se seguiria nos
países centrais acabaria produzindo um efeito dominó para o resto do
mundo, retraindo o comércio e encolhendo a produção, ensejando
desemprego e reduções salariais.
No mesmo caminho segue o artigo
do organizador do livro, Sérgio Sister, que aponta por trás da crise a
transição de uma macroeconomia da poupança para uma macroeconomia do
endividamento. O texto de Jefferson José apresenta ainda uma proposta
de atuação para os trabalhadores do país, enquanto a artigo de Sérgio
Sister avança discutindo as conseqüências possíveis da crise sobre a
economia brasileira.
Superprodução e financeirização
Coube
a Paul Krugman, em uma quadra de artigos publicados originalmente no
New York Times, após o setembro negro de 2008, analisar a crise desde
dentro, a partir dos EUA.
O economista norte-americano revela
que a crise dava indícios de sua eclosão há pelo menos uma década,
desde a última bolha das pontocom e do primeiro colapso de um grande
fundo de hedge, entre 1997 e 1998. O autor nos lembra como nessas duas
ocasiões a maioria dos economistas e analistas de mercado se apressou
em comemorar a saída da beira da crise, esquecendo-se de indagar como a
economia internacional havia chegado tão perto dela.
Mas por que
o establishment tardou em perceber a aproximação e a eclosão dessa
crise? A resposta dada por Paul Krugman a essa questão leva em
consideração dois fatores. Em primeiro lugar, ideólogos do
neoliberalismo norte-americano, como Alan Greenspan, Robert Rubin e
Lawrence Summers, sempre apostaram na desregulamentação em detrimento
da fiscalização do mercado financeiro.
Em segundo lugar, e
como decorrência desse laissez-faire, o avanço de um sistema bancário
“sombra”, “paralelo”, nucleado por bancos de investimento, cercado por
fundos e seguradoras aparecia para esses policy makers menos como
problema e mais como solução, de maneira que a oferta desabrida de
novos serviços financeiros foi encarada como inovação e não como abuso,
do mesmo modo a expansão irrestrita do crédito foi percebida como
avanço e não como perigo, para Paul Krugman uma verdadeira bancocracia
tomou de assalto o Estado e a economia norte-americanas com o
consentimento e a cumplicidade entre tecnocratas e financistas.
Os
artigos do economista norte-americano oferecem uma visão conjuntural e
nacional bastante lúcida para a crise financeira, mas, preocupado que
está com a urgência e a necessidade de uma reforma financeira, o autor
não ousa uma análise estrutural de maior fôlego, tarefa que fica a
cargo dos intérpretes brasileiros da crise.
O artigo de Paul
Singer e a entrevista de Francisco de Oliveira podem ser lidos em
conjunto. Enquanto o economista interpreta a crise financeira como mais
um dos momentos cíclicos da história do capitalismo em que ocorre o
esgotamento da demanda, o sociólogo complementa avisando que estamos
diante de uma crise da globalização do capital, cuja intensidade está
em repor o problema de realização do valor.
Ou seja, para os
dois autores, o descompasso entre a expansão da produtividade e a
redução da capacidade de absorção de mercadorias engendrou uma situação
em que, a despeito da ampliação da mais-valia global, o consumo das
massas não acompanhou a massa de produtos colocados em circulação.
Enquanto
Paul Singer reconstrói, teoricamente, os laços entre a esfera produtiva
e a esfera financeira, apontando complementaridades e contradições
entre, de um lado, mercadorias reais, valores concretos, bens e
serviços e, de outro lado, ativos virtuais, valores monetários,
créditos e dívidas, Francisco de Oliveira demonstra, empiricamente,
como a aliança entre o crescimento industrial de países como China e
Índia e a expansão monetária dos EUA contribuiu para a alteração nos
padrões de acumulação e consumo.
Um dos sintomas dessa mudança
se revela, justamente, na especialização financeira que conduziu ao
financiamento imobiliário irrestrito e à especulação fundiária
exacerbada no mercado norte-americano.
Partindo de uma tese
distinta das duas anteriores, as notas de Maria da Conceição Tavares e
os textos de Luiz Gonzaga Belluzzo enfatizam os tropeços criados para a
circulação do crédito e os empecilhos causados pelo obscurantismo das
inovações financeiras, dando origem a uma espécie de financeirização da
economia.
Luiz Gonzaga Belluzzo ressalta como no capitalismo –
uma economia monetária mais do que industrial – deve-se atentar menos
para o princípio do aumento da produtividade e mais para a finalidade
da acumulação de riqueza. Nesse sentido, a compreensão dessa crise
situa-se antes na esfera financeira do que na produtiva.
A
separação entre os bancos comerciais, que recebem depósitos e realizam
empréstimos, e que portanto são agentes econômicos que compram ativos
para si e para terceiros, e os bancos de investimento, que se dedicam
ao aconselhamento de empresas nas emissões e na gestão de títulos e
ações, e que portanto são agentes econômicos que vendem ativos, criou
uma espécie de esquizofrenia que está na origem dos supermercados
financeiros e da securitização dos créditos que desaguaram na crise
financeira atual. A preferência pela liquidez e a instabilidade
financeira são características do capitalismo que se desvelam no
cenário de hoje.
De quebra o autor esboça um ensaio sobre as
implicações subjetivas de uma visão de mundo que, baseada no
individualismo racional e maximizador de utilidade acaba engendrando a
concorrência e a predação que estão na origem de comportamentos
arriscados e inseguros que conduzem à crises cíclicas e periódicas.
Estado e políticas
A
despeito das divergências entre os intérpretes, todos concordam em um
ponto, sintetizado por Carlos Eduardo Carvalho, o neoliberalismo
pretendeu substituir a política pela economia e reduzir a economia às
finanças, o que ele escondia, entretanto, era uma atuação em favor dos
grupos mais influentes do capital e o que ele revela, agora, é uma
comunhão entre Estado e mercado.
Se, por um lado, é verdade que
a crise reabilitou as possibilidades de intervenção estatal, por outro
lado, é apressado deduzir que isso signifique o fim do neoliberalismo.
Afinal, a principal forma de intervenção tem sido a injeção de liquidez
que é, na realidade, uma emissão de dinheiro público a serviço das
altas finanças e não da população em geral.
No que se refere
ao Brasil, Cézar Manoel de Medeiros ressalta a importância do setor
público no combate à crise, pois, além das reservas internacionais e da
conquista do investment grade, temos três bancos estatais (BB, CEF e
BNDES) e duas grandes empresas públicas (Petrobrás e Eletrobrás) que
podem, e devem, atuar na expansão do crédito e do investimento. O autor
aproveita ainda para ressaltar a importância do projeto do pré-sal como
estratégia nacional de defesa e apresentar a proposta de criação de uma
Empresa Nacional de Ativos (Probr ou Probrasil), concentrando as ações
ordinárias e preferenciais de propriedade da União.
Vale ainda
ressaltar que, enquanto o espírito anti-FHC fica a cargo de Ricardo
Berzoini (presidente do PT), o escudo pró-Lula compete a Guido Mantega
(Ministro da Fazenda).
Enquanto o primeiro relembra as
diretrizes macroeconômicas que filiaram o Brasil ao neoliberalismo,
patrocinando a vulnerabilidade comercial, a fragilidade financeira e a
desestruturação do Estado, o segundo destaca as medidas que,
supostamente, tornaram o Brasil mais forte para suportar a crise, com
destaque para o crescimento do PIB e os investimento do PAC, além das
medidas de curto-prazo para contornar a falta de recursos externos e
para sustentar a atividade econômica interna.
Se, porque
excessivamente político-partidários, os textos não fornecem uma visão
analítica mais acurada da crise, ao menos servem como documentos que
sistematizam as idéias e decisões do governo brasileiro para
combatê-la.
Inconclusões
Talvez seja cedo demais
para que se possa avaliar com precisão o sentido e o significado dessa
crise. Tal fato, entretanto, não deve desencorajar as tentativas de
compreensão, até mesmo porque, como se sabe, os momentos de crise abrem
vagas de incerteza e indeterminação capazes de aproximar a explicação
da intervenção.
Por trás das tentativas de interpretação
reunidas no "Abc da crise", o que se revela são questões sobre a
relação entre as esferas produtiva e financeira, entre Estado e
mercado, entre a globalização e o neoliberalismo. Abrindo
possibilidades de análise sem pressa de concluí-las, ao final da
leitura o que se experimenta são muitas dúvidas e uma única certeza,
como bem expressa Márcio Pochmann: a de que vivemos um momento de
transição. Resta pensar em que nova promessa de modernização iremos nos
apegar, e se ela será capaz de realizar o ideal civilizatório que até
aqui não conseguimos levar a bom termo.
(*) Bacharel em
Ciências Sociais (FFLCH/USP); mestrando em Desenvolvimento Econômico,
área de concentração: História Econômica (IE/UNICAMP). E-mail:
willnozaki@gmail.com.
Artigo publicado originalmente em http://www.cartamaior.com.br