A desmoralização da política por Emir Sader
Um dos maiores consensos nacionais
é a desmoralização da política e dos políticos.
Esporte fácil, dos mais
praticados nas rodas de conversa, alimentado pela imprensa e favorecido pelo
comportamento dos parlamentares, que, no entanto não tem alterado em nada a
composição do Parlamento – individualizado como a instância por excelência da
política -, políticos acusados sistematicamente pela imprensa como pivôs de
grandes escândalos – como Collor, Sarney, Renan, entre tantos outros – têm sido
reeleitos sistematicamente. Ao mesmo tempo, outra instância que personifica a
política – os governos – tem tido em geral grande apoio do eleitorado, nas
eleições e nas pesquisas, salvo casos limites – como o de Yeda Crusius.
Ao mesmo tempo, as pesquisas sobre credibilidade colocam o Congresso sempre em
posição muito ruim e a imprensa em posição de destaque. No entanto, os jornais
baixam sistematicamente sua tiragem em um caminho sem volta para sua crise
definitiva, enquanto suas vítimas privilegiadas são eleitos e reeleitos. E ao
mesmo tempo, a imprensa, que teria muita credibilidade e fabrica – literalmente
– a "opinião pública", é quem mais influenciaria a população, se choca com a
vontade dos eleitores, que tem reiterado a maioria de partidos – como
especialmente o PMDB – atacados centralmente pela imprensa. Quem tem mais apoio
da população – como algum que outro acusado já disse: a imprensa, que não se
sustenta no voto popular, ou os parlamentares, que são submetidos
periodicamente à consulta da cidadania?
Em última instância: de onde vem a desmoralização da política? Quem se
aproveita disso? Qual a credibilidade que a imprensa tem? Qual seu poder de
influência? Como se constróem os consensos no Brasil?
Na transição da ditadura para a democracia, a política estava em alta, contra o
poder militar, que sempre buscou desmoralizá-la: as cassações se faziam contra
dois grupos de políticos, os supostamente subversivos e os corruptos. A derrota
das eleições diretas para presidente – recordemos o papel da Globo, que tentou,
até o ultimo momento, desconhecer a campanha, para finalmente aderir a
contragosto, quando já era um consenso nacional – levou a que o novo regime não
representasse claramente uma vitória da democracia contra a ditadura. A conciliação
feita no Colégio Eleitoral – em que a oposição dependia de votos dos partidos
do governo – deu a nova cara da democracia: uma conciliação entre o novo e o
velho. No lugar do candidato natural da oposição – Ulysses Guimarães, o
conciliador Tancredo Neves, tendo como vice o até poucas semanas antes
presidente do partido da ditadura, José Sarney, que havia liderado a campanha
da ditadura contra as eleições diretas, ao mesmo tempo que nascia um partido
que saia no derradeiro momento do bloco do governo, o PFL, para somar-se ao
carro vencedor e tentar distanciar-se do regime moribundo.
Uma chapa – Tancredo-Sarney -que expressava claramente a conciliação entre o
velho e o novo.
As circunstâncias – morte de Tancredo e presidência de Sarney – consolidaram a
presença do velho, pelo papel mais destacado que tiveram políticos centrais na
ditadura – de que o caso de ACM é o mais significativo, embora não o único. A
frustração do governo Sarney, restringindo a democratização ao plano
político-institucion
econômica, social, midiática, cultural – recolocou o tema da desmoralização da
política, de que Sarney foi uma expressão clara, por seu governo, por sua
capacidade camaleônica de reciclar-se rapidamente da ditadura para a
democracia, pelo poder oligárquico que mantêm no Maranhão e por sua capacidade
de eleger-se, artificialmente, por outro estado como senador, assim como por
seus vínculos estreitos e promíscuos com a grande imprensa – através de ACM,
que distribuiu os canais de rádio e televisão pelo Brasil afora para a
conquista do quinto ano de mandato para Sarney -, de que a propriedade do canal
da Globo no Maranhão é um exemplo, além da transferência da sua influência para
eleger filhos seus – Roseana e Zequinha.
Collor, na sua campanha, tratou de capitalizar essa nova desmoralização da
política, aparecendo como um outsider, supostamente contra as oligarquias
tradicionais da política – como desdobramento da "modernidade" que prometia,
contra os "marajás" e a favor da abertura da economia, contra "as carroças",
que seriam os carros fabricados no Brasil. Como isso, Collor colocava, pela
primeira vez de forma aberta, dois eixos do consenso neoliberal, que se impunha
na America Latina e no mundo: a desqualificação do Estado e a abertura para o
mercado externo.
Seu caráter pretensamente bonapartista de governar, se exercia contra a
política e os partidos – sua própria eleição por um partido de aluguel
expressava a crise dos partidos tradicionais: recordar o pífio resultado de
Ulysses como candidato do PMDB, assim de outros representantes de partidos,
como Covas, Afif Domingos, Roberto Freire, entre outros. Collor buscava
construir um novo bloco no poder, em torno da sua figura e do ideário
neoliberal.
Collor viria logo se somar à lista de políticos coruptos – cuja lista incluía
centralmente a Maluf, ACM, Sarney, Quércia, entre muitos outros. Mas a nomeação
de FHC para comandar a economia por Itamar Franco, permitiu ao PSDB retomar a
plataforma neoliberal, de forma mais articulada. Retomava também os
pressupostos ideológicos do neoliberalismo: o Estado é o problema e não a
solução, promoção da centralidade do mercado no seu lugar.
O neoliberalismio busca desqualificar o Estado, especialmente as regulações –
que se contrapõe à livre circulação do capital, aos gastos em políticas sociais
e em qualificação e melhor remuneração dos funcionários públicos, além da
privatização das empresas públicas.
Um dos seus objetivos, portanto, é enfraquecer o Estado, considerando seus
gastos como fonte inflacionária, pregando a diminuição constante dos impostos,
para favorecer a transferência de recursos do Estado para o mercado.
O Estado e o conjunto da esfera política foram alvo sistemático das forças
neoliberais, tendo a imprensa privada como agente fundamental dessas campanhas,
valendo-se das denúncias – quase sempre reais – de casos de corrupção de
políticos, da malversação de verbas estatais, da contratação de servidores
públicos – sem atentar quando se trata de gastos socialmente inúteis ou quando
se trata da prestação de serviço para a massa da população, como é o caso de
professores, médicos, enfermeiras, assistentes sociais, entre outros.
Sempre se tenta tomar casos individuais para buscar criminalizar a totalidade
da política e das ações do Estado. Toma-se casos particulares de
comprometimento com a corrupção – como os casos de Severino, aliás eleito pela
oposição contra o governo, de Sarney, de Renan (sempre deixando de lado os
aliados atuais do bloco de direita, como é o caso, por exemplo, da ausência de
Quercia, atual aliado de Serra, ou dos membros do DEM e dos próprios tucanos,
como foram os casos de Artur Virgilio, Sergio Guerra, Tasso Jereissatti, Yeda
Crusius – para tentar generalizar para todos os políticos. Toma-se eventuais
irregularidades, por exemplo na distribuição do Bolsa Família, em alguns casos
individuais, para se tentar desqualificar um programa que beneficia mais de 60
milhões de pessoas.
Um Congresso fraco não tem condições de definir leis que limitem a livre
circulação do capital, o poder sem controle da mídia (como pode ser o caso da
Conferência Nacional de Comunicação), a denúncia dos casos de corrupção de
empresas privadas, de sonegação fiscal por parte dessas empresas, de controle
sobre os ganhos gigantescos dos bancos privados, da superexploração dos
trabalhadores pelas empresas privadas, da deterioração do meio ambiente por
conglomerados privados urbanos e rurais – entre outras iniciativas. O Congresso
fica voltado para casos que a imprensa privada escolhe como seu objeto
privilegiado de denúncias – aqueles que buscam afetar políticas de alianças do
governo, como se o PMDB e os políticos denunciados agora fossem menos corruptos
quando eram aliados de FHC e não eram submetidos a essas denúncias. Tenta
colocar o Estado e o governo na defensiva, quando tenta desqualificar programas
sociais, gastos na contratação de servidores públicos, investimentos de
infra-estrutura ou outros planos como os habitacionais, como gastos inúteis,
que recairiam em aumento da tributação.
Tratam de criar o clima de que o Estado tem um papel essencialmente negativo,
ao tributar muito e gastar de forma irresponsável. Era esse o discurso de FHC
quando candidato, tendo como mote a idéia de que "o Estado gasta muito e gasta
mal", que era um Estado falido. Quando terminou seus trágicos 8 anos de
presidência, a dívida pública tinha se multiplicado por 11, o Estado tinha se
desfeito, a preço de banana, depois de sanear as empresas com dinheiro público,
de patrimônios fundamentais do Estado, como a Vale do Rio Doce, os gastos
sociais tinham diminuído e, ainda assim, o Estado acumulava uma inflação alta e
sem controle por parte do Estado. Nunca o Estado gastou tanto e tão mal, como
quando governou o bloco tucano-demoniaco.
Estado e Congresso fracos significam mais espaço para se fortalecer o mercado,
isto é, o espaço de domínio e controle das grandes empresas privadas.. O bloco
opositor termina aceitando que as políticas sociais do governo são positivas,
mas tenta esconder que elas supõem tributação e redistribuição do ingresso
através de um Estado regulador. Tem que reconhecer que o Brasil saiu antes e
mais rapidamente da crise, mas tenta esconder que a indução à retomada do
crescimento foi basicamente estatal. Denuncia casos de irregularidade no
governo, mas busca esconder, por exemplo, o envolvimento da Sadia e do
Unibanco, entre outras empresas privadas brasileiras, na compra irresponsável
de subprimes, o que levou à sua falência e compra por outras empresas. Os
maiores escândalos contemporâneos não se situam na esfera do Estado, mas no das
grandes empresas privadas, como tem se tornado público no caso de algumas das
maiores empresas privadas norteamericanas.
No caso do Brasil, tornou-se consensual a idéia de que o PMDB, por ter sido o
partido majoritário desde o fim da ditadura militar, se vale do seu papel chave
para a obtenção das maiorias pelos governos de turno, para se apropriar de
cargos chave nos governos e no Congresso, onde desenvolve práticas
fisiológicas. Foi assim nos governos Sarney, Collor, Itamar, FHC e agora no
governo Lula. Quando se aliam ao bloco de direita, cala-se em relação a essas
práticas, quando elas favorecem o bloco agora governista, se tornam alvos
privilegiados das denúncias, tentando desarticular as alianças do governo no
Congresso, dado que fracassaram ao tentar desqualificar a Lula com denúncias e
ao se dar contra do imenso apoio popular que o governo tem.
Mas se a imprensa mercantil, com o controle monopólico na TV, nos jornais, nas
revistas e nos rádios, forja a opinião pública, essa maioria do PMDB é o
resultado, como um bumerangue, que retorna do tipo de despolitização que essa
imprensa difunde. Ela costuma dizer que "o povo brasileiro não tem memória".
Mas é essa mídia a que produz o esquecimento. Senão teria que dizer que:
– todas essas empresas apoiaram o golpe militar
– A grande maioria apoiou o governo Sarney
– A grande maioria apoiou o governo Collor
– Todas apoiaram o governo FHC do começo ao fim
– Todas apoiaram o Serra e Alckmin.
Tornaram-se instrumentos de propaganda do bloco de direita, que tenta reaver o
controle do Estado brasileiro, contra um governo que detêm 80% de apoio da
população, enquanto eles conseguem obter apenas 5% de rejeição do governo que
atacam noite e dia.
Querem a política desmoralizada, em favor do mercado. O Estado mínimo, fraco,
em favor da força das grandes empresas privadas. Um Congresso desmoralizado,
para que não possa legislar sobre nada, deixando que as leis de oferta e de
procura defina tudo na sociedade.
Artigo publicado originalmente em www.cartamaior.com.br