A esquerda e a crise por José Luís Fiori
Neste período haverá resistência e haverá conflitos sociais agudos, e se a crise se prolongar, deverão se multiplicar as rebeliões sociais e as guerras civis nas zonas de fratura do sistema mundial. Mas do nosso ponto de vista, não haverá uma mudança de modo de produção em escala mundial, nem tampouco ocorrerá uma superação hegeliana do sistema inter-estatal capitalista. A análise é de José Luís Fiori, em artigo escrito para a revista Margem Esquerda, nº 13, que será lançada em breve.
Esse artigo foi escrito para a revista Margem Esquerda, n° 13 (Editora
Boitempo), que será lançada em breve. O texto integra um dossiê que
trará também artigos de François Chesnais, Robert Brenner e Peter Gowan.
A
esquerda keynesiana interpreta de forma mais ou menos consensual, a
nova crise econômica mundial que começou no mercado imobiliário
americano, e se alastrou pelas veias abertas da globalização
financeira. Seguindo o argumento clássico de Hyman Minsky [1],
sobre a tendência endógena das economias monetárias à instabilidade
financeira, às bolhas especulativas e à períodos de desorganização e
caos provocados pela expansão desregulada do crédito e do
endividamento, quando se faz inevitável a intervenção publica e o
redesenho das instituições financeiras [2], sem que isto ameace a sobrevivência do próprio capitalismo.
Por
isto, apesar de suas divergências a respeito de valores, procedimentos
e velocidades, todos os keynesianos acreditam na eficácia, e propõem,
neste momento, uma intervenção massiva do estado, para salvar o sistema
financeiro e reativar o crédito, a produção e a demanda efetiva das
principais economias capitalistas do mundo [3]. No caso da
esquerda marxista, entretanto, não existe uma interpretação consensual
da crise, nem existe acordo sobre os caminhos do futuro. Alguns seguem
uma linha próxima da escola keynesiana, e privilegiam a financeirização
capitalista como causa da crise atual, enquanto outros seguem a linha
clássica da teoria da sobre-produção, do sub-consumo [4], e da tendência ao declínio da taxa de lucros [5].
E ainda existe uma esquerda pós-moderna que interpreta a crise atual,
como resultado combinado de tudo isto e mais uma série de determinações
ecológicas, demográficas, alimentares e energéticas.
Do ponto de vista propositivo, alguns marxistas acreditam na eficácia de uma solução keynesiana radicalizada [6], outros acham que chegou a hora do socialismo [7],
e muitos consideram que acabou o capitalismo e a modernidade e só cabe
lutar por uma nova forma de globalização solidária, onde as relações
sociais sejam desmercantilizadas, e o produto social seja devolvido aos
seus produtores diretos [8]. Numa linha diferente, se colocam
os autores neo-marxistas que associam as crises econômicas
capitalistas, com o que chamam de ciclos e crises hegemônicas mundiais,
que envolvem – além da economia – as relações globais de poder [9].
Estas teorias lêem a história do sistema mundial como uma sucessão de
ciclos hegemônicos, uma espécie de ciclos biológicos dos estados e das
economias nacionais que nascem, crescem, dominam o mundo e depois
decaem e são substituídos por um novo estado e uma nova economia
nacional que percorreria o mesmo ciclo anterior até chegar à sua
própria hora da decadência. Neste momento, a maioria destes autores
consideram que a crise econômica atual é uma parte decisiva da crise da
hegemonia dos EUA, que deverão ser substituídos por uma novo centro de
poder e acumulação mundial de capital, que provavelmente está situado
na China.
Do nosso ponto de vista, entretanto, a melhor
maneira de pensar o " sistema inter-estatal capitalista, que se formou
a partir da expansão européia do século XVI, não é através de uma
metáfora biológica, e sim cosmológica, olhando para o sistema como se
ele fosse um universo em expansão contínua. Com um núcleo central
formado pelos estados e economias nacionais que lutam pelo "poder
global", que são inseparáveis, complementares e competitivos e que
estão em permanente preparação para a guerra, uma guerra futura e
eventual, que talvez nunca ocorra, e que não é necessário que venha a
ocorrer [10]. Por isto, os estados e economias que compõem o
sistema inter-estatal capitalista estão sempre criando, ao mesmo tempo,
ordem e desordem, expansão e crise, paz e guerra. E as potências que
uma vez ocupam a posição de liderança, não desaparecem, nem são
derrotadas por seu sucessor. Elas permanecem e tendem a se fundir com
as forças ascendentes, criando blocos político-econômicos cada vez mais
poderosos como aconteceu, por exemplo, no caso da sucessão da Holanda
pela Grã Bretanha, e desta, pelos Estados Unidos, que significou de
fato um alargamento sucessivo das fronteiras do poder anglo-saxônico.
Não
existe ainda nenhuma teoria que dê conta das relações entre as crises
econômicas e as transformações geopolíticas do sistema mundial. Mas o
que já está claro faz muito tempo é que dentro do sistema inter-estatal
capitalista, as crises econômicas e as guerras não são,
necessariamente, um anuncio do "fim" ou do "colapso" dos estados e das
economias envolvidas. Pelo contrário, na maioria das vezes fazem parte
de um mecanismo essencial da acumulação do poder e da riqueza dos
estados mais fortes envolvidos na origem e na dinâmica destas grandes
turbulências. Agora bem, do nosso ponto de vista, as crises e guerras
que estão em curso neste inicio do século XXI ainda fazem parte de uma
transformação estrutural, de longo prazo, que começou na década de 1970
e provocou uma "explosão expansiva" e um grande aumento da "pressão
competitiva" interna, dentro do sistema mundial. Esta transformação
estrutural em curso começou na década de 70, exatamente no momento em
que se começou a falar de crise da hegemonia americana, e de início da
crise terminal do poder americano. E no entanto, foi a resposta que os
EUA deram à sua própria crise que acabou provocando esta transformação
de longo prazo da economia e da política mundial que está em pleno
curso.
Basta dizer que foram estas mudanças lideradas pelos
EUA que trouxeram de volta ao sistema mundial, depois de 1991, as duas
velhas potências do século XIX, a Alemanha e a Rússia, além de incluir
dentro do sistema, a China, a Índia, e quase todos os principais
concorrentes dos Estados Unidos, deste início de século. Neste sentido,
aliás, a"crise de liderança" dos Estados Unidos, depois de 2003, serviu
apenas para dar uma maior visibilidade a este processo que se acelerou
depois do fim da Guerra Fria, já agora com novas e velhas potencias
regionais atuando de forma cada vez mais desembaraçada, na defesa dos
seus interesses nacionais e na reivindicação de suas zonas de
influência.
Do ponto de vista do sistema inter-estatal
capitalista, esta dinâmica contraditória significa que os EUA ainda
estão liderando as transformações estruturais do próprio sistema. A
política expansiva dos EUA, desde 1970 ativou e aprofundou as
contradições do sistema, derrubou instituições e regras, fez guerras e
acabou fortalecendo os estados e as economias que hoje estão disputando
com eles, as supremacias regionais, ao redor do mundo. Mas ao mesmo
tempo, estas mesmas competições e guerras, cumpriram e seguem cumprindo
um papel decisivo, na reprodução e na acumulação do poder e do capital
norte-americano, que também necessita manter-se em estado de tensão
permanente, para reproduzir sua posição, no topo da hierarquia mundial.
O fundamental, no fim de cada uma destas grandes tormentas é saber quem
ficou com o controle da moeda internacional, dos mercados financeiros,
e da inovação tecnológico-militar de ponta.
Neste momento, não
há perspectiva de superação do poder militar dos EUA, do ponto de vista
de suas dimensões atuais, da sua velocidade de expansão, e da sua
capacidade de inovação, apesar dos seu insucesso no Oriente Médio. E
tampouco existe no horizonte a possibilidade de substituição dos EUA
como mercado financeiro do mundo, devido a profundidade e extensão dos
seus próprios mercados e do seu capital financeiro, e devido a
centralidade internacional da moeda americana.
Basta olhar
para a reação dos governos e dos investidores de todo mundo que estão
se defendendo da crise do dólar fugindo para o próprio dólar, e para os
títulos do Tesouro americano, apesar de sua baixíssima rentabilidade, e
apesar de que o epicentro da crise esteja nos EUA. E o que mais chama a
atenção, é que são exatamente os governos dos estados que estariam
ameaçando a supremacia americana, os primeiros a se refugiarem na moeda
e nos títulos do seu Tesouro. Para explicar este comportamento
aparentemente paradoxal, é preciso deixar de lado as teorias econômicas
convencionais e também, as teorias das crises e sucessões hegemônicas,
e olhar para a especificidade deste novo sistema monetário
internacional que nasceu à sombra da expansão do poder americano,
depois da crise da década de 70.
Desde então, os EUA se
transformaram no mercado financeiro do mundo, e o seu Banco Central
(FED), passou a emitir uma moeda nacional de circulação internacional,
sem base metálica, administrada através das taxas de juros do próprio
FED, e dos títulos emitidos pelo Tesouro americano, que atuam em todo
mundo, como lastro do sistema dólar-flexível. Por isso, a quase
totalidade dos passivos externos americanos é denominada em dólares e
praticamente todas as importações de bens e serviços dos EUA são pagas
exclusivamente em dólar. Uma situação única que gera enorme assimetria
entre o ajuste externo dos EUA e dos demais países […]. Por isso,
também, a remuneração em dólares dos passivos externos financeiros
americanos que são todos denominados em dólar, seguem de perto a
trajetória das taxas de juros determinadas pela própria política
monetária americana, configurando um caso único em que um país devedor
determina a taxa de juros de sua própria dívida externa. [11]
Uma mágica poderosa e uma circularidade imbatível, porque se sustenta
de forma exclusiva, no poder político e econômico norte-americano.
Agora
mesmo, por exemplo, para enfrentar a crise, o Tesouro americano emitirá
novos títulos que serão comprados, pelos governos e investidores de
todo mundo, como justifica o influente economista chinês, Yuan
Gangming, ao garantir que é bom para a China investir muito nos EUA;
porque não há muitas outras opções para suas reservas internacionais de
quase US$ 2 trilhões, e as economias da China e dos EUA são
interdependentes. (FSP, 24/11). Por isto, do meu ponto de
vista, apesar da violência desta crise financeira, e dos seus efeitos
em cadeia sobre a economia mundial, tampouco haverá uma sucessão
chinesa na liderança política e militar do sistema mundial. Pelo
contrário, do ponto de vista estritamente econômico, o mais provável é
que ocorra um aprofundamento da fusão financeira em curso desde a
década de 90, entre a China e os Estados Unidos, e esta integração será
decisiva para a superação futura da crise econômica. A crise atual
começou na forma de um tufão, mas deverá se prolongar na forma de uma
epidemia darwinista, que irá liquidando os mais fracos, por níveis
sucessivos, nacionais e internacionais, e aprofundará a corrida
imperialista que começou nos anos 90. Na hora da volta do sol poucos
estarão na praia, mas com certeza os EUA ainda estarão na frente deste
grupo seleto. E quase todos os países que estavam ascendendo nas duas
últimas décadas e desafiando a ordem internacional estabelecida, serão
recolocados no seu lugar. Neste período haverá resistência e haverá
conflitos sociais agudos, e se a crise se prolongar, deverão se
multiplicar as rebeliões sociais e as guerras civis nas zonas de
fratura do sistema mundial, e é provável que algumas destas rebeliões
voltem a se colocar objetivos socialistas. Mas do nosso ponto de vista,
não haverá uma mudança de modo de produção em escala mundial, nem
tampouco ocorrerá uma superação hegeliana do sistema inter-estatal
capitalista.
[1] Minsky, P.H.(1975) The Modeling of
Financial Instability: An introduction", 1974, Modelling and
Simulation. John Maynard Keynes, 1975, e "The Financial Instability
Hypothesis: A restatement", 1978, Thames Papers on Political Economy.
[2] Wade, R. (2008), A new global financial architeture", in New Left, n53, set/out
[3] Ferrari, F. e Paula, L.F. (2008), Dossiê da Crise, Associação Keynesiana Brasileira, UFRGS
[4] Oliveira, F. (2009), "Vargas redefiniu o país na crise de 30", in www. cartamaior.com.br, 6/01/2009
[5] Brenner, R. (2008)"O princípio de uma crise devastadora", in , in Against the Current, fev 2008
[6]
Tavares, M.C. (2008), "Entupiu o sistema circulatório do sistema do
capitalismo", in www.cartamaior.com.br13/11/2008 e Belluzzo,L.G. (2008)
Cortar gasto publico?", www.cartamaior.com.br. 13/11/2008
[7]
Amin, S. (2008). There is no alternative to socialism, in Indian’s
National Magazine, vol 25, issue 26, de 20/12/2008 e Meszaros, I.(2009)
A maior crise na história humana", in www.cartamaior.com.br, 07/02/2009
[8] Wallerstein, I. (2008) "Depressão, uma visão de longa duração", in www.cartamaior.com.br, 13/11/2008
[9] Arrighi, G. (2008) "A hegemonia em cheque", in www.cartamaior.com.br, 19/06/2008
[10]
Este argumento está desenvolvido em J.L.Fiori "O Poder Global e a Nova
Geopolítica das Nações" , Editora Boitempo, São Paulo, 2007, e no
artigo "O sistema inter-estatal capitalista, no início do Século XXI",
in J.L.Fiori, C.Medeiros e F.Serrano, "O Mito do Colapso do Poder
Americano", Editora Record, Rio de Janeiro 2008.
[11] Serrano,
F. (2008) "A economia Americana, o padrão "dólar-flexível" e a expansão
mundial nos anos 2000", in J.L Fiori, F. Serrano e C. Medeiros, O MITO
DO COLAPSO DO PODER AMERICANO,Editora Record, Rio de Janeiro.
Artigo publicado originalmente na Agência Carta Maior – www.cartamaior.com.br