A esquerda e o governo Lula por José Genoino*
John Kenneth Galbraith defende que "na
sociedade justa, ninguém pode ser deixado de fora sem renda – ser condenado à
inanição, à falta de teto, de assistência médica ou a privações semelhantes.
Isso a economia e a sociedade politicamente organizada, justas e afluentes, não
podem permitir. (…)
A ninguém, por acidente de
nascimento ou por circunstância econômica, podem ser negadas essas coisas; se
não puderem ser supridas pelos pais ou pela família, a sociedade deverá
proporcionar formas eficazes de cuidado e orientação". Se Bobbio
fundamenta e redefine as distinções entre esquerda e direita tendo como parâmetro
a concepção de igualdade, é a simplicidade da fórmula de Galbraith que nos
orienta no cotidiano da disputa política. Uma noção complementando a outra,
cuja síntese dá o sentido contemporâneo do projeto político de esquerda e
re-atualiza a nossa utopia.
Podemos dizer, sem hesitar, que o governo Lula se sustenta sobre tal idéia. É
nítido, até para a oposição, que toda ação, todo projeto e o conjunto de
programas implantados por nosso governo buscam diminuir a desigualdade e a
injustiça. O governo tem uma política social clara cuja inflexão é conceber
políticas públicas para acabar com a exclusão. É isso que está no cerne do
esforço para elevar o poder de compra do salário mínimo.
Da mesma forma, o Bolsa Família foi concebido não como caridade ou como um
programa da assistência, mas fundamentalmente como um programa redistribuidor
de renda, assim como o Luz para Todos. O Pronaf (Programa Nacional de
Fortalecimento da Agricultura Familiar) e o ProUni (Programa Universidade Para
Todos) são programas cujo esboço também se originou na idéia de diminuir
desigualdades.
E, como foi revelado durante o debate para a aprovação da CPMF no ano passado,
nunca a União investiu tanto em Saúde, Educação, Saneamento e Moradia. O
sucesso desses programas é reconhecido pelas principais instituições e
organismos econômicos do mundo e, a cada pesquisa divulgada, fica evidente a
mudança dos padrões sociais do Brasil. O aumento expressivo do número de
empregos com carteira assinada e a ascensão de vastos setores para a classe C
são os exemplos mais recentes, dentre vários que sinalizam esta transformação.
Por outro lado, é necessário levar em conta que esses impressionantes avanços
sociais foram obtidos sob os limites de uma estrutura institucional de ordem
jurídico-política injusta. Já debatemos, em outros momentos, a necessidade de
reformas profundas na institucionalidade do País. No entanto, para além das
limitações impostas pela realidade exclusivamente brasileira, também é preciso
reconhecer que, se o Brasil avançou socialmente, isso aconteceu sob uma ordem
mundial também injusta. O neoliberalismo ainda é hegemônico e as regras e os
procedimentos são próprios de uma dominação capitalista-financeira. É uma
determinação objetiva o ato de governar buscando a justiça numa ordem fundada
na injustiça, realizando mudanças processuais.
Além disso, nosso governo desobstruiu temas e produziu debates e políticas em
relação aos direitos que estavam interditados há séculos. A criação de
secretarias – com peso político e orçamento – para produzir propostas
específicas para mulheres, negros e jovens e o compromisso da transversalidade
é o lado institucional de uma concepção avançada sobre os direitos. A política
de cotas, o reconhecimento das comunidades quilombolas, o debate atual sobre a
demarcação das terras indígenas, o Plano Nacional de Políticas para os GLBT
(gays, lésbicas, bissexuais e transexuais), este um evento inédito no mundo, a
compreensão do papel da Amazônia, a percepção do Brasil como um país
multicultural e multiracial, a valorização da luta contra a ditadura e a
recuperação desta memória, fazem parte do ideário da esquerda.
Neste quadro, a imposição de
uma agenda social, a inversão das prioridades das políticas públicas no Brasil
e a disposição para enfrentar o conservadorismo são mais do que indícios; é um
balizamento acerca do caráter de esquerda do governo Lula.
Outra evidência da análise dos projetos e programas implantados nestes últimos
seis anos é o antagonismo entre o governo FHC e o governo Lula. O contraste
quase polar não está apenas na visão de cada um sobre o papel das políticas
públicas. Fundamentalmente, está sintetizado na concepção diametralmente oposta
do papel do Estado no desenvolvimento e sua relação com a sociedade. O governo
Lula não só estancou o processo de privatizações como revisou a função das
estatais, revitalizando o papel estratégico dessas empresas. Prova disto é o
posto inédito que a Petrobras ocupa no mundo, cuja atuação determinou uma
soberania energética vital na disputa global contemporânea, e a atuação do BNB
na mudança radical das condições sociais e econômicas do Nordeste brasileiro.
No entanto, é no PAC que se explicita uma concepção de Estado antineoliberal. O
eixo do Programa de Aceleração do Crescimento é o Estado induzindo o
desenvolvimento. Seu objetivo essencial não é resolver questões de
infra-estrutura e tornar o Brasil um país atrativo para o "mercado".
É muito mais do que isso. É um projeto cuja origem é o compromisso de tornar o
Brasil um País mais justo, democratizando o investimento do Estado, induzindo
as economias regionais, fomentando e subsidiando a incorporação de novos
padrões sociais, integrando-o culturalmente. O planejamento macroeconômico do
governo Lula é balisado pelo propósito de tornar a sociedade mais justa, tendo
como base o desenvolvimento econômico sustentável – fiscal, social e
ambientalmente.
Aqui, da mesma forma, a correlação de forças impõe limites. A hegemonia
neoliberal no mundo, evidentemente, é refletida internamente. A atual ordem econômica
vigente nos condiciona e nos constrange. A política de juros e a manutenção do
superávit devem ser entendidas nesta dimensão. Essas não fazem parte do núcleo
do programa; são, antes de tudo, condicionantes objetivos do sistema dominante.
No entanto, é inquestionável que o papel que o nosso governo destina ao Estado,
está indisfarçadamente ancorado numa concepção de esquerda.
O terceiro aspecto é a nova condução que nosso governo está dando à questão
internacional, de forma a reposicionar o Brasil em um outro patamar no mundo.
Após seis anos, pode-se dizer que estamos numa situação muito mais favorável e
nossa relação com os outros países se dá em outro patamar. Ao priorizarmos o
eixo Sul/Sul e a integração regional, alteramos substancialmente o conteúdo da
política externa brasileira. A subserviência deu lugar a uma ação ativa de
disputa, onde o que está em jogo, além de mercados e produtos, são valores.
Se a balança comercial e as questões relacionadas à defesa são dimensões
importantes da política externa do governo Lula, essas não estão acima do nosso
objetivo de tornar o mundo mais justo e humano. A solidariedade, a democracia e
a paz não são elementos derivados. São, antes de tudo, substâncias essenciais
que determinam o sentido das nossas relações internacionais. Não foi à toa que
em um dos primeiros eventos internacionais dos quais participou, Lula se
destacou por apresentar a proposta de criação de um fundo mundial de combate à
fome e à pobreza, iniciativa que até hoje é referência mundial. Além disso,
nosso governo está construindo políticas para situar o Brasil favoravelmente em
questões estratégicas, tais como: matriz energética, recursos hídricos,
produção de alimentos e meio-ambiente.
No entanto, a arena internacional também não nos é favorável. O debate
envolvendo os biocombustíveis e o etanol, em particular, revela apenas a
superfície de uma disputa estratégica, que no fundo são visões distintas sobre
o futuro do planeta e das relações humanas que se enfrentam. Mas, não restam dúvidas
de que a política externa do governo Lula assenta-se nos pressupostos de uma
visão de esquerda.
Como afirmei no debate mencionado no primeiro artigo, "estamos realizando
um programa avançado, considerando que estamos agindo dentro da ordem, sem rupturas.
Nunca o Brasil, conseguiu, a um só tempo, crescimento com diminuição da pobreza
e soberania nas relações internacionais, democracia e recomposição do papel
público do Estado, como promotor da cidadania e do crescimento". E se
levarmos em conta a crise de perspectivas e de valores que a humanidade
enfrenta, os impasses e tragédias gerados pelo neoliberalismo e a desesperança
ideológica que está se propagando no mundo, é fácil perceber que o que estamos
realizando é, historicamente, decisivo e basilar. Hoje podemos dizer que os
brasileiros estão menos desiguais e que o Brasil, após o governo Lula, estará
bem mais próximo do nosso ideal de sociedade justa.
(*) Deputado Federal do PT São Paulo