Aldeia Nagô
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A grande mídia contra as ações afirmativas por Fernando Conceição

12 - 17 minutos de leituraModo Leitura

O
que o Estado Democrático de Direito, o que o republicanismo, o que o
interesse público podem esperar quando se alinham, em uníssono à
maneira de campanha, três conglomerados de comunicação que, no Brasil,
são os proprietários privados dos mais influentes veículos da imprensa
nacional?


Uma única coisa: o abuso do direito constitucional à
liberdade de expressão e de opinião. A coação dos demais poderes
institucionais. O desrespeito ao princípio de igualdade de
oportunidade, cerne da democracia.

Pois é exatamente o que a
sociedade brasileira assiste hoje, estupefata, com a sórdida
manipulação encampada pela Rede Globo, Grupo Folha e Editora Abril –
respectivamente donos da TV aberta de maior audiência, com suas
filiadas em todo o território brasileiro, controladores da TV por
assinatura, de O Globo, de emissoras de rádio; dos jornais Folha de S. Paulo e Valor Ecnômico, do poderoso portal UOL; da maior e mais potente revista noticiosa semanal, Veja, e de vários outros tentáculos midiáticos articulados entre si.

Cotas são o inferno

Esse
poderosíssimo Leviatã apresenta-se na atual conjuntura como o sucedâneo
do Leviatã hobbesiano. O propósito do monstro é amedrontar a sociedade
repetindo insaciável, incontinenti e monocordiamente que o Inferno em
breve se instalará no Brasil. Incansavelmente a Rede Globo, a Folha e Veja anunciam que isso já tem hora e data marcada.

O
Brasil será transformado no reino de Lúcifer a partir do momento em que
deputados e senadores em Brasília votem pela aprovação de dois projetos
que tramitam no Congresso Nacional, um deles há mais de decênio: o
Estatuto da Igualdade Racial (projeto de lei 6564/05, do senador Paulo
Paim, PT), e o projeto de lei 73/99 (da deputada Nice Lobão, DEM)
incorporado ao projeto de lei 3.627/2004, do governo federal. Ambos
estabelecem, pela primeira vez no país, um sistema de políticas sociais
compensatórias, inclusive de acesso às universidades públicas federais,
como forma de corrigir as profundas desigualdades repercutidas até hoje
pelos mais de 300 anos de escravidão negra e indígena que marcam a
história socioeconômica brasileira.

A grande mídia simplifica
tais políticas compensatórias, rotulando-as como projeto de cotas
"raciais". Isso tem reduzido a abrangência daquelas proposições e
tornado irracional o debate. A questão de "raça" é posta no primeiro
plano, em uma sociedade que custa a acreditar na existência do racismo
em suas relações cotidianas e institucionais. Um povo que acredita, a
despeito do desmascaramento do mito, ser o Brasil uma "democracia
racial", mercê de todos os mais respeitáveis dados e índices de medição
da estrutura demográfica afirmarem sempre o contrário. A sociedade
brasileira é cingida por uma forte persistência da herança
escravocrata, que atinge "pretos" e "pardos" (na definição do IBGE),
colocando-os como grupo nas piores posições da pirâmide sócio-econômica.

Racismo como ideologia

Não
são os propositores daqueles projetos de lei que inventaram a noção de
"raça" como fator de identidade atribuída às pessoas de acordo com seus
papéis e o lugar social por elas ocupado na formação da sociedade
brasileira.

"Raça" sempre foi utilizada pelos "senhores da
terra", desde o nascedouro da empreitada colonial nas Américas, como
traço distintivo. Aos africanos, trazidos como escravos para todos os
gêneros de labuta, foi-lhes pregada a definição de "negros" como marca
de um tipo de animal racialmente inferior aos demais humanos. Não
importaram as suas diferenciações culturais, ou étnicas, tampouco as
suas tradições de origem. Todos são (ou eram) da "raça" negra,
consequentemente podendo ser escravos pelo estatuto do ordenamento
jurídico da Colônia e do Império. O racismo foi uma das ferramentas
ideológicas de organização da exploração colonial. A República não
solucionou, até o presente, essa equação.

Qual patriota – e a
pátria, já disse alguém, é o último refúgio dos canalhas – quer ver seu
país "pegar fogo", ter a sua "harmoniosa" população "separada" entre
"brancos" (no Brasil identificados como rico ou doutor) e "negros"
(sempre suspeitos e vilões)? Quem quer ver a "paz" que hoje reina, como
antanho, desde o princípio do escravismo colonial, quem quer todas
essas nossas tradições de cordialidade (no fundo perversas) perdidas
por conta da aprovação do Estatuto da Igualdade Racial e do projeto
3.627?

Nessa tecla batem, de forma orquestrada e combinada, os
grandes conglomerados de mídia. Com seus impressos, telejornais,
experts em antropologia social, rádios, internet, publicações, almejam
influenciar – e muito – os humores e a disposição da opinião pública,
isto é, dos brasileiros formadores de opinião e dos eleitores.

Sem-precedentes a não ser no abolicionismo

O
Estatuto e o outro projeto de lei seriam obra demoníaca (ou
stalinista?). Permitir que congressistas tenham o livre-arbítrio de
votar abalizados por razões éticas, de senso de justiça, de consciência
histórica dos horrores que até hoje vigem da discriminação negativa
contra os negros, isto a Rede Globo, a Folha de S. Paulo e a Veja
simplesmente não querem aceitar. Portanto, mobilizam-se, com poucos
precedentes similares nos debates legislativos, para derrotar aquelas
proposições. Reeditam dessa forma, 130 anos depois, a mesma tipologia
das paixões verificadas durante a árdua luta que resultou na abolição
da escravatura no país.

Todos os artigos, todas as matérias,
todos os editoriais veiculados direcionam-se a semear o pânico e a
disseminar a idéia de que assim procede a mídia em defesa da unidade e
do bem nacionais. Todas as reportagens ou entrevistas são produzidas e
editadas de forma a referendar essa tese.

O método é simples e
corriqueiro. Para disfarçar o flagrante desrespeito às regras básicas
do jornalismo em sociedades abertas (deve-se dar voz a todas as
opiniões), esses grandes veículos usam a fórmula 10 para 1. Dão espaço
e peso diferenciados aos que são contrários àqueles projetos e ao
demais. Este, já que favorável, tem a sua opinião, posta no contexto
das outras contrárias, com um enquadramento que remete ao bizarro, ao
fora de propósito. Vira exotismo defender políticas compensatórias para
os descendentes de escravos no Brasil, que são a esmagadora maioria dos
pobres e miseráveis.

Interesses anti-sociais das empresas

Rede Globo e seu noticioso carro-chefe, o Jornal Nacional – já classificado por seu editor como produto dirigido a gente de mentalidade de Homer Simpson -, Veja e Folha de S.Paulo
querem convencer os formadores de opinião, eleitores e seus
representados no Congresso Nacional de que essas empresas privadas (ou
seja, Globo, Folha e Abril, assim como os seguidores de tal
ideário) defendem nessa campanha o que é melhor para "o país". No
entanto, os formadores de opinião, e principalmente os atuais
detentores de mandatos parlamentares, deveriam atentar para a seguinte
obviedade escamoteada nesse debate: Rede Globo, Folha e Editora
Abril são crias alimentadas pela última ditadura militar que destruiu a
democracia, prendeu, torturou, matou e fechou, por consequência, esse
mesmo Congresso Nacional. Perseguiu e cassou mandatos de parlamentares
e tantos outros líderes sociais e políticos não-adesistas.

Entre
os sombrios anos 1960 ao ocaso dos anos 1980, a maior parte do tempo
foram conflitantes e até mesmo opostos os interesses republicanos e os
interesses dessa hoje tríplice-aliança. Essas empresas se fortaleceram,
se beneficiaram e se consolidaram, cada uma ao seu modo, pelas
facilitações que o regime militar lhes proporcionou. Apoiaram
abertamente ou foram coniventes em algumas fases com aquela ditadura.

Sobre a Globo há vasto corpus
documental a respeito, dentro dele a existência de uma CPI. Carlos
Guilherme Mota e Maria Helena Capelato (1980) registraram em História da Folha de S. Paulo: 1921-1981
a estratégia de posicionamento político que fez este jornal jamais ter
sofrido sequer de leve os abusos ditatoriais infligidos ao seu
concorrente local, O Estado de S.Paulo. A Editora Abril sempre
flertou com a cúpula do sistema, tendo em Golbery do Couto e Silva um
dos seus referenciais de conduta e em Antonio Carlos Magalhães um dos
seus queridinhos.

Dourando a pílula do comprometimento

A Folha
buscou se redimir, a partir dos tempos de Claudio Abramo e mais ainda
com Boris Casoy, na memorável campanha das Diretas-Já, que na primeira
metade da década de 1980 exigia nas ruas o retorno ao Estado de
Direito, com o estabelecimento de eleições livres para a Presidência da
República. Naquela vez, Folha, Veja e Globo ficaram em campos diferenciados.

A
vontade da poderosíssima Globo no período todos nós conhecemos. Se opôs
tenazmente a que o povo brasileiro readquirisse a sua soberania por
meio do voto. Ignorou ou mentiu, seguindo um padrão jornalístico de
obediência à linha-dura do regime à qual serviu o tempo todo com
denodo, demonizando os adversários.

Provas ainda piores de que a
Globo, quando quer, é o reino da perversão dos interesses cidadãos
estão nos anais da história brasileira recente em dois escandalosos
episódios. O que ficou conhecido como "Caso Globo/Proconsult" e o
debate final da campanha eleitoral de 1989, entre Lula e Fernando
Collor. No primeiro, a Globo foi pega de calças curtas na sua ignóbil
tentativa de manipular contra Leonel Brizola o resultado da eleição
para governador do Rio de Janeiro, em 1982. No segundo, a exibição no Jornal Nacional da edição do debate, beneficiando a performance de Collor, até hoje é estudada como um case do histórico de abuso de poder que essa rede televisiva possui.

Nesse
segundo episódio, o então todo-poderoso diretor da Central Globo de
Jornalismo, Armando Nogueira, teve pruridos de hombridade, foi ao
cacique Roberto Marinho e apresentou sua demissão do cargo. Vemos a
confissão envergonhada dele para o teledocumentário Beyond Citizen Kane (Simon Hartog, 1993), que a Globo judicialmente censurou, impedindo sua exibição em todo o território brasileiro.

Um histórico de sujeiras

Esse documentário,
que circulou em cópias piratas, é um consistente trabalho jornalístico
da TV britânica, mostrando os tentáculos do império de Roberto Marinho
e suas ramificações no comando do poder político nacional. Permitir a
sua difusão à época seria contrária à estratégia que com o retorno da
democracia a Globo traçou, visando apagar da memória o seu passado
macbethiano.

Foi nesse vácuo, por exemplo, que alguma programação da emissora, como o Fantástico,
até se deu ao luxo de exibir uma reportagem sobre o nascente Movimento
Pelas Reparações dos Afrodescentente, enfocando o surgimento no Brasil
de uma articulação social por políticas compensatórias de ação
afirmativa.

Entretanto, pruridos iguais ao de Nogueira hoje não
possui Ali Kamel. Este profissional, agora à frente do Jornalismo da TV
Globo, é um dos comandantes do ataque sem trégua ao Estatuto da
Igualdade Racial e ao Projeto de Lei do Executivo. Age de cima de um
armamento pesado de artilharia, muito além do que poderiam vis mortais,
como o autor dessas mal-traçadas linhas, desprovidos estes do
instrumental fabuloso que são os comandos da TV Globo, da Veja, da Folha de S.Paulo.
Nem um desses veículos abre espaço e tempo equitativos para o exercício
de opinião contrária às suas neste tema. Seus colunistas e
articulistas, com raras exceções de um Elio Gaspari, têm todos
não-surpreendentemente o mesmo ponto de vista de quem lhes paga
salários e bônus.

Trapaça e covardia no debate

Não
há em toda a grande mídia brasileira um único articulista ou
comentarista negro comprometido com a luta anti-racista contratualmente
assegurado para, de forma regular, emitir sua opinião nesses veículos.
Mesmo o limitado espaço da seção "Tendências/Debates" da página 3 da Folha,
ou o seu suplemento "Mais!", nos últimos oito anos têm sistematicamente
rejeitado colaborações contestadoras à sua tese. Não faltam pessoas com
esse ponto de vista capacitadas para publicar na Folha, e uma
lista de intelectuais comprometidos na luta por ações afirmativas foi
entregue à Secretaria de Redação desse veículo por uma representação do
Movimento Negro há mais de três anos, em visita àquele jornal.
Certamente a lista foi para o lixo.

Diante de tão avassaladora
campanha "cívica", mentalidades conservacionistas do establishment
sentem-se agora encorajadas a bradar as suas posições contra as
mudanças institucionais previstas por aqueles dois projetos de lei.
Vêem-se estimuladas essas vozes porque sabem poder contar com a tutela
dos grandes veículos de comunicação. Não temem, neste momento, a reação
adversa das ruas. Porque as ruas estão desmobilizadas pela
insuficiência das forças sociais que, sabedoras da justeza política das
ações compensatórias aos estratos sempre excluídos (por razões
históricas), acham-se órfãs do poder belicoso dos que possuem o
controle da grande mídia.

Ouso dizer que por trás de todo esse
poder esconde-se a prepotência dos covardes. Em breve eles também
pressionarão os integrantes do Supremo Tribunal Federal, quando a
matéria for ali analisada.

É esta covardia da Globo, da Veja e da Folha
que interdita o nosso acesso equânime aos seus tempos e espaços. Ali
Kamel jamais nos convidaria para um debate desarmado, ainda que em
ambiente por ele dominado, em qualquer um dos seus jornalísticos ou talk shows
cuja edição seja honesta. Otavio Frias Filho, para cujo jornal muitas
vezes no passado escrevi, tendo dois textos meus reeditados em
coletâneas organizadas pela Publifolha – e a partir dos quais produzi
minha tese de doutorado – não me ofereceria em sua Folha um lugar de articulista frequente em contraponto ao seu pensamento. E Veja,
para estampar uma "página-amarela" que fosse, somente se eu "revelasse"
que Lúcifer não existe no além, Lúcifer é a "alcunha" de Luiz Inácio
Lula da Silva.

Como as coisas assim não se darão, ou os
defensores e interessados pela democratização verdadeira das relações
sociais no Brasil retomam aguerridamente a sua militância, pressionam
os parlamentares, ganham as ruas e outros espaços de cidadania; ou,
então… adeus às mudanças.

***

P.S.
– Uma nota adicional. Comecei a redigir este artigo em Madri, Espanha.
Estou na Europa há oito meses como bolsista de pós-doutorado da Capes
no Lateinamerika Institut da Freie Universität Berlim, verificando a
presença e influência do geógrafo Milton Santos no debate intelectual
em países europeus, subsídio para escrever a biografia autorizada dele.
Dia desses tive de me deslocar em ônibus para Salamanca. Ao desembarcar
na estação, à porta do veículo vieram me recepcionar três homens que se
identificaram como agentes da polícia local. Eu era o único negro entre
os demais passageiros e não estava chegando ao país naquele momento.
Fui o único detido e submetido aos olhares suspeitosos dos demais.

Não
se tratava de agentes da Imigração. Eram policiais comuns à paisana,
que me levaram a um cubículo, me retiraram os documentos e remexeram
minha mochila, cheia de livros – para a surpresa confessa deles – e
folhearam meu passaporte com comentários jocosos sobre o número de
viagens marcado por vários vistos ali apostos. Telefonaram para sei lá
quem, ditando meus nome e sobrenome. Depois do vexame e do
constrangimento, permitiram que eu fosse encontrar com um acadêmico da
universidade local, estudioso da obra do brasileiro. A essa altura eu
já tinha perdido meu humor.

Registro aqui o fato para ilustrar
uma simples verdade, que se tenta escamotear: é muito fácil, para os
prepostos do poder (público ou privado) saber quem é negro. Afirmo em
resposta à questão bizantina levantada pelos inimigos das cotas. No
Brasil, episódios como esse são banais. Na Europa frequentemente
ocorrem. A cor da pele subsiste como valor de distinção, de
discriminação e preconceito. Gostemos ou não, esses são os fatos.

Aerigo publicado originalmente em:



http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=540JDB003

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