A grande mídia e a segunda Confecom por Venício Lima
A
1ª Confecom é a realização de uma reivindicação histórica dos
movimentos sociais e constitui um avanço democrático com o qual os
grupos privados de mídia, atores historicamente dominantes no setor,
não souberam lidar.
Apesar de interessar a todos os atores um marco
regulatório atualizado para as comunicações, os empresários privados
parecem acreditar que as políticas públicas continuarão sendo
indefinidamente estabelecidas com a exclusão da cidadania. Espera-se
que as entidades empresariais que se retiraram da conferência revejam
suas posições e participem dos debates da 2ª Confecom. A análise é de
Venício Lima.
Concluída
a 1ª Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), que aconteceu em
Brasília, de 14 a 17 de dezembro, com a participação de mais de 1.600
delegados, democraticamente escolhidos em conferências estaduais
realizadas nas 27 unidades da federação, representando movimentos
sociais, parte dos empresários de comunicação e telecomunicações e o
governo – independentemente da avaliação de suas deliberações – é hora
de tentar compreender as razões que levaram os principais grupos
empresariais brasileiros de mídia a boicotarem o evento.
O
anúncio público da retirada das seis entidades empresariais da Comissão
Organizadora da 1ª Confecom se deu após reunião realizada entre elas e
os ministros das Comunicações, Hélio Costa, da Secretaria de
Comunicação Social, Franklin Martins e da Secretaria-Geral da
Presidência, Luiz Dulci, no dia 13 de agosto. Os membros da Comissão
haviam sido designados em 25 de maio e a primeira reunião se realizado
há pouco mais de dois meses. Estava-se, portanto, apenas no início de
um longo processo.
Uma nota divulgada
logo após a retirada e assinada conjuntamente pela ABERT – Associação
Brasileira de Emissoras de Radio e Televisão; ABRANET – Associação
Brasileira de Internet; ABTA – Associação Brasileira de TV por
Assinatura; ADJORI BRASIL – Associação dos Jornais e Revistas do
Interior do Brasil; ANER – Associação Nacional dos Editores de Revistas
e ANJ – Associação Nacional de Jornais, afirmava, dentre outros pontos,
o seguinte:
Por definição, as entidades empresariais têm como
premissa a defesa dos preceitos constitucionais da livre iniciativa, da
liberdade de expressão, do direito à informação e da legalidade.
Observa-se,
no entanto, que a perseverante adesão a estes princípios foi entendida
por outros interlocutores da Comissão Organizadora como um obstáculo a
confecção do regimento interno e do documento-base de convocação das
conferências estaduais, que precedem a nacional.
Deste modo, como as
entidades signatárias não têm interesse algum em impedir sua livre
realização, decidiram se desligar da Comissão Organizadora Nacional, a
partir desta data.
É importante registrar que permaneceram
na Comissão Organizadora duas entidades empresariais: a ABRA –
Associação Brasileira de Radiodifusores, uma dissidência da ABERT
fundada pelas redes Bandeirantes e Rede TV!, em maio de 2005; e a
TELEBRASIL – Associação Brasileira de Telecomunicações, criada em 1974,
que tem como missão "congregar os setores oficial e privado das
telecomunicações brasileiras visando a defesa de seus interesses e o
seu desenvolvimento".
Controle social e censura
A
realização da Confecom – a última conferência nacional a ser convocada
de todos os setores contemplados pelo "Título VIII – Da Ordem Social"
na Constituição de 88 – sempre encontrou enormes resistências dos
grandes grupos de mídia. Não seria novidade, portanto, que na medida
mesma em que avançassem as difíceis e complexas negociações, e antes
mesmo do desligamento das seis entidades empresariais, surgissem também
os "bordões de combate" à sua concretização, reiterados na narrativa
jornalística (cf. OI n. 550, Controle Social da Mídia – Por que não discutir o assunto?).
O
que foi inicialmente identificado na nota dos empresários como uma
divergência interna em torno dos "preceitos constitucionais da livre
iniciativa, da liberdade de expressão, do direito à informação e da
legalidade" na Comissão Organizadora, foi aos poucos se transformando
em insinuação permanente de que até mesmo a simples realização da
conferência se constituía em grave ameaça à liberdade de expressão. Seu
foco, dizia a grande mídia nas raríssimas ocasiões em que o tema foi
pautado, era o ameaçador controle social da mídia, isto é, o retorno
aos tempos do autoritarismo através da censura oficial praticada pelo
Estado.
No dia de abertura da 1ª Confecom, 14 de dezembro, o Jornal Nacional da Rede Globo,
que até então silenciara sobre sua realização, deu uma nota que
exemplifica a postura da grande mídia: questiona a representatividade
do evento e insinua que seu foco seria o controle social da mídia,
equacionado sem mais com a censura que cerceia a liberdade de expressão
e o direito à informação. Vale conferir:
APRESENTADORA FÁTIMA
BERNARDES: Começou hoje, em Brasília, a primeira Conferência Nacional
de Comunicação, que pretende debater propostas sobre a produção e
distribuição de informações jornalísticas e culturais no país. Entre as
propostas estão o controle social da mídia por meio de conselhos de
comunicação e uma nova lei de imprensa. O fórum foi convocado pelo
Governo Federal e conta com 1.684 delegados, 40% vindos da sociedade
civil, 40% do empresariado e 20% do poder público.
APRESENTADOR
WILLIAM BONNER: Mas a representatividade da conferência ficou
comprometida sem a participação dos principais veículos de comunicação
do Brasil. Há quatro meses, a Associação Brasileira de Emissoras de
Rádio e Televisão, a Associação Brasileira de Internet, a Associação
Brasileira de TV por Assinatura, a Associação dos Jornais e Revistas do
Interior do Brasil, a Associação Nacional dos Editores de Revistas e a
Associação Nacional de Jornais divulgaram uma nota conjunta em que
expõem os motivos de terem decidido não participar da conferência.
Todos
consideraram as propostas de estabelecer um controle social da mídia
uma forma de censurar os órgãos de imprensa, cerceando a liberdade de
expressão, o direito à informação e a livre iniciativa, todos previstos
na Constituição. Os organizadores negam que a intenção seja cercear
direitos. A conferência foi aberta com a participação do presidente
Lula.
A reclamação do presidente e a resposta dos empresários
Na abertura da 1ª Confecom o presidente Lula fez uma queixa pública
em relação à ausência das entidades empresarias e manifestou
desconhecer as razões que teriam levado a tal comportamento. Disse ele:
Lamento
que alguns atores da área da comunicação tenham preferido se ausentar
desta Conferência, temendo sabe-se lá o quê. Perderam uma ótima
oportunidade para conversar, defender suas idéias, lançar pontes e
derrubar muros. Eu, que sou um homem de conversa e de diálogo, volto a
dizer: lamento. Mas cada um é dono de suas decisões e sabe onde lhe
aperta o calo. Bola pra frente, e vamos tocar nossa Conferência.
Dois dias depois, matéria publicada no jornal O Estado de São Paulo
ouviu representantes de duas das seis associações que se retiraram da
Confecom sobre a reclamação do presidente e sobre quais teriam sido as
razões da retirada. Eles insistem em que o problema foi a ameaça do
controle social da mídia.
Roberto Muylaert, presidente da ANER, afirmou:
"Não temos nada contra os movimentos sociais, mas os representantes das empresas ficaram em minoria, em grande desvantagem".
"Um controle (social da mídia) pressupõe uma mudança da Constituição, que atualmente assegura a livre-iniciativa".
Já Miguel Ângelo Gobbi, presidente da Adjori-Brasil disse:
"Queríamos ter voz ativa, mas éramos voto vencido" (…) (participamos) "de quase 45 horas de reuniões sem conseguir avançar".
"Controle social da mídia é algo que arrepia todo mundo".
Lições para o futuro
No
nosso país, não há tradição de debate democrático entre os atores
dominantes (governo e grupos privados de mídia) e a sociedade civil na
definição das políticas públicas do setor de comunicações. Em outras
ocasiões, tenho chamado de "não-atores" os movimentos sociais que lutam
historicamente pela democratização da comunicação.
O processo
constituinte de 1987/88 talvez tenha sido o exemplo mais acabado de
como os atores dominantes conseguem articular e fazer prevalecer seus
interesses ignorando as reivindicações da sociedade civil ou fazendo
concessões aparentes que se transformam em letra morta, simplesmente
porque não regulamentadas pelo Legislativo.
A incapacidade
crônica de se avançar em relação, por exemplo, à regulação das rádios e
televisões comunitárias e a lamentável situação do Conselho de
Comunicação Social falam por si só (cf. OI 565, CCS: Três anos de ilegalidade).
Por
tudo isso, a 1ª. Confecom é a realização de uma reivindicação histórica
dos movimentos sociais e constitui um avanço democrático com o qual os
grupos privados de mídia, atores historicamente dominantes no setor,
não souberam lidar. Apesar de interessar a todos os atores um marco
regulatório atualizado para as comunicações, os empresários privados
parecem acreditar que as políticas públicas continuarão sendo
indefinidamente estabelecidas com a exclusão da cidadania. Não só
porque, de outra forma, seus interesses correriam riscos, mas também
porque não estão acostumados a negociar com a sociedade civil, a levar
em conta o interesse público que se manifesta de forma organizada e,
sobretudo, democrática.
Não é difícil compreender, portanto,
porque, mesmo afirmando que sua retirada da Comissão Organizadora "não
(impediria) que os associados decidam, individualmente, qual será sua
forma de participação – uma demonstração cabal de nosso ânimo agregador
e construtivo em relação a este evento" a grande mídia tenha
sistematicamente insinuado – apesar de saber, por óbvio, que as
conferências são fóruns propositivos e não deliberativos – que a ameaça
da 1ª. Confecom era a restauração da censura através de um controle
social da mídia definido à priori como autoritário.
Está com razão o presidente Lula ao conclamar na abertura da 1ª. Confecom:
O
País precisa travar um debate franco e aberto sobre a comunicação
social. Não será enfiando a cabeça na areia, como avestruz, que
enfrentaremos o problema. Não será tampouco fechando os olhos para o
futuro ou pretendendo congelar o passado que lidaremos corretamente com
a nova situação.
Isso vale para todos nós: governo, empresas de
comunicação e de telecomunicações, trabalhadores, movimentos sociais,
leitores, ouvintes, telespectadores e internautas.
É chegada a
hora de uma nova pactuação na área da comunicação social que resgate os
acertos do passado, mas também corrija seus erros, e seja capaz de
responder às enormes interrogações e às extraordinárias oportunidades
que temos diante de nós.
Espera-se que as seis entidades
empresariais que se retiraram da Comissão Organizadora da 1ª. Confecom,
sempre tão zelosas na defesa da liberdade de expressão e da democracia,
revejam suas posições e participem ativamente da organização e dos
debates da 2ª. Confecom.
Venício Lima é Pesquisador Sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política da Universidade de Brasília – NEMP – UNB
Artigo publicado originalmente em www.cartamaior.com.br