A grosseria baiana por Antonio Risério
Outro dia, numa conversa,nossa first lady Fátima Mendonça, comentando certas
cenas que presenciara, se lamentou da crescente falta de educação das pessoas.
Concordei imediatamente com ela.
E disse que isto era especialmente triste em Salvador, que já foi uma cidade de
pessoas gentis e educadas, tanto em recintos fechados quanto nos espaços
públicos. E em todas as classes sociais. Mas que hoje, e também em todas as
classes sociais, é uma cidade onde a vulgaridade e a grosseria predominam. Não
sei se ela concordou comigo.
Mas aproveito a ocasião para rabiscar uma nota sobre o assunto. Porque, diante
do fenômeno urbano, é possível distinguir entre, pelo menos, quatro coisas:
urbanização, urbanismo, urbanicidade e urbanidade. E não custa nada definir,
mesmo que superficialmente, esses termos. Recorrendo livremente a John Palen-e
colocando algumas azeitonas em sua empada.
Urbanização diz respeito ao aspecto quantitativo do fenômeno.
Ao número e à dimensão de cidades num país – a coisas como "taxa de
urbanização", etc.Urbanismo, por sua vez, é o campo dasreflexões, dos projetos
e desenhos, das configurações físicas da cidade.Masnãoé com urbanização ou
urbanismo que lidamos, neste momento. E, sim, com urbanicidade (como pano de
fundo) e com urbanidade (a questão queprovocou asobservações denossa
primeiradama).
Urbanicidade é um termo que diz respeito ao aspecto sociocultural da questão. É
o lado cultural humano da urbanização. Diz respeito aos padrões sociais e
comportamentais associados ao viver em cidades. À personalidade do
urbanita(atenção: éurbanita mesmoe não urbanista; o urbanita é o indivíduo
citadino).
Às mudanças sociais, culturais, psicológicas, etc., provocadas pela
urbanização.Aos estilos e técnicas citadinos de viver.
Urbanidade, por fim, tem dois sentidos. De uma parte, é um ideal de
comportamento urbano – tanto da sociedade quanto no plano individual.
De outra parte, diz respeito à educação urbana, à lhaneza no trato social. Meu amigo
Marcelo Ferraz, em suas discussões de arquitetura e urbanismo, costuma lembrar
que o pai dele costumava empregar a expressão.
Defato, não faz tempo, falava-se de urbanidade no sentido de educação pessoal e
social. A urbanidade de um lugar era o seu grau de polidez e respeito aos
outros e aos bens comuns.
Quando alguém empregava a expressão "um sujeito urbano", por exemplo, estava se
referindoa umapessoa polida,educada.E é exatamente isto o que estamos perdendo
ou já foi perdido: a urbanidade. E é a perda de urbanidade que choca nossa
querida Fátima Mendonça.
Com inteira, inteiríssima razão. Urbanismo à parte, esta nossa cidade do
Salvador, por exemplo, possui um grau razoável de urbanização, um baixíssimo
grau de urbanicidade – e parece já não ter a mínima noção do que é ou do que
foi urbanidade.Lamentavelmente.Vemos isto em festas, em recepções, nos
restaurantes supostamente chiques, em filas para isto ou aquilo, nas relações
interpessoais, no atendimento dos serviços públicos, no comportamento diante
dos bens coletivos, nos absurdos agressivos do trânsito, etc. etc.
O educado e informado Marcelo Ferraz se pergunta sempre – e, certa vez, me
perguntou: em que momento foi que algo se esgarçou e rompeu, para que
perdêssemos assim o trato urbano, no sentido da urbanidade, da condição de
viver civilizadamente numa cidade? Sinceramente, Marcelo, confesso que não sei
em que momento foi. Mas perdemos.
Em A Morte e a Morte de Quincas Berro d’Água (por favor, revisor: não coloque
"morte" em caixa baixa, seguindo o atual padrão acadêmico de citar, que foi
adotado pelos professorais daqui, mas não tenho nada a ver com isso), Jorge
Amado fala dos "ritos de gentileza" dopovo daBahia. Masessesritos pertencemjá
ao passado. Éumapena. Chegamos hoje a um grau baixo demais, em matéria de
educação doméstica e urbana.
E isto – esta queda – nada tem a ver com pobreza.
De jeito algum. Vivi minha juventude numa cidade pobre, mas que sabia o que era
trato urbano. Neste sentido de civilidade. De urbanidade. E adianto, sem que
ninguém me pergunte, que me envergonha o fato de que hoje o povo baiano seja
imbatível, no contexto brasileiro,em matéria de grosseria e grossura.
De falta de educação.