A hipocrisia dos “éticos” por Gilson Caroni Filho
No
atual quadro de correlação de forças, Lula deveria, tal como João
Goulart desorientado, atacar, de uma só vez, todos os pilares da
estrutura capitalista numa formação social ainda periférica?
Quando
a indigência analítica é muito grande, torna-se impossível evitar a
suspeita de que estejamos diante de um exercício de má-fé. Tornou-se
moeda corrente, entre atores de certa esquerda, a acusação de que,
chegando ao poder, o Partido dos Trabalhadores abandonou a grande
política, definida por Gramsci como aquela que põe em questão as
estruturas de uma sociedade, para reproduzir a gramática do poder
conservador. Operando em um registro simplificado de abordagem, nossos
esquerdistas de salão têm um mérito: demonstram, de forma cabal, que o
amesquinhamento do debate não é exclusividade da direita que fingem
combater, mesmo se igualando a ela no método e nas formas de ação.
Confundindo,
ou fingindo confundir, a primeira eleição presidencial de Lula com o
fim da hegemonia neoliberal, argumentam que o PT tinha plenas condições
de realizar reformas estruturais já que os adversários estavam
desnorteados. Cabe perguntar se ignoram a capilaridade social dos
derrotados nas urnas, suas estruturas clientelísticas e, como já
frisamos em vários artigos, que a vitória sobre o candidato da direita
necessitou de um amplo leque de alianças que, se bateu forte no
conteúdo doutrinário do partido, deixou evidente a necessidade de
ampliar os termos dos seus debates internos. O que fariam nossos
"bravos companheiros" se tivessem o mesmo capital político do
presidente eleito? Que modificações estruturais implementariam?
É
grande a semelhança com o argumento dos tucanos quanto ao crescimento
do Brasil no período das vacas gordas, ou seja, que o país cresceu, mas
poderia ter crescido muito mais se o governo fosse competente. Mas não
diziam como fazer para que isso acontecesse. O que propõem afinal os
militantes da "esquerda pura"? Uma aventura bem ao gosto do gueto que
esperaria a derrota para capitalizar a tragédia?
No atual
quadro de correlação de forças, Lula deveria, tal como João Goulart
desorientado, atacar, de uma só vez, todos os pilares da estrutura
capitalista numa formação social ainda periférica? Em um país onde
retirar do baú a velha arma do anticomunismo primário ainda é um
expediente que funciona, o governo deveria ter reeditado, com algumas
adaptações, as "reformas de base"? Disciplinar a remessa de lucros,
desapropriar latifúndios, auditar a dívida pública, contando com o
apoio de segmentos militares e núcleos progressistas da burguesia?
Ou
Lula não age com mais sabedoria quando aponta que a saída está na
ampliação da democracia? No resgate de uma esfera pública antes
regulada por corporações multilaterais. Na grande subversão que é,
gradativamente, criar condições para que o trabalho ganhe prioridade
sobre o capital. É uma tarefa que passa pela reversão de valores
arraigados por anos de patrimonialismo. Melhor que ninguém, mais uma
vez, cabe ao ex-líder sindicalista objetivar o significado de sua
vitória em duas eleições e das esperanças políticas das classes
trabalhadoras e dos excluídos.
Nesse contexto, chega a ser
engraçado ver a convergência de opiniões sobre a declaração de Lula
contrária ao linchamento político do senador José Sarney. "Esquerdistas
éticos" e analistas tucanos fingiram espanto, vendo nas palavras do
presidente uma legitimação do coronelismo. Quem conhece os efeitos do
Bolsa-Família sobre os velhos currais, sabe como estão sendo erodidas
antigas formas de dominação.
Faz-se necessário repetir o
ensinamento de Gramsci: "É preciso atrair violentamente a atenção para
o presente do modo como ele é, se se quer transformá-lo. Pessimismo da
inteligência, otimismo da vontade". Voluntarismo e oportunismo andam de
mãos dadas.
Gilson
Caroni Filho é professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio
Alonso (Facha), no Rio de Janeiro, colunista da Carta Maior e
colaborador do Observatório da Imprensa.
Artigo publicado orinalmente em www.cartamaior.com.br