Aldeia Nagô
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A história do Haiti é a história do racismo na civilização ocidental por Eduardo Galeano

6 - 8 minutos de leituraModo Leitura

A democracia haitiana nasceu há um instante. No seu breve tempo de vida, esta criatura faminta e
doentia não recebeu senão bofetadas. Era uma recém-nascida, nos dias de festa de 1991, quando foi
assassinada pela quartelada do general Raoul Cedras. Três anos mais tarde, ressuscitou. Depois de
haver posto e retirado tantos ditadores militares, os Estados Unidos retiraram e puseram o presidente
Jean-Bertrand Aristide, que havia sido o primeiro governante eleito por voto popular em toda a
história do Haiti e que tivera a louca ideia de querer um país menos injusto.


O voto
e o veto

Para apagar as pegadas da participação estadunidense na ditadura sangrenta do general Cedras, os
fuzileiros navais levaram 160 mil páginas dos arquivos secretos. Aristide regressou acorrentado.
Deram-lhe permissão para recuperar o governo, mas proibiram-lhe o poder. O seu sucessor, René Préval,
obteve quase 90 por cento dos votos, mas mais poder do que Préval tem qualquer chefete de quarta
categoria do Fundo Monetário ou do Banco Mundial, ainda que o povo haitiano não o tenha eleito nem
sequer com um voto.
 
Mais do que o voto, pode o veto. Veto às reformas: cada vez que Préval, ou algum dos seus ministros, > pede créditos internacionais para dar pão aos famintos, letras aos analfabetos ou terra aos
camponeses, não recebe resposta, ou respondem ordenando-lhe:
 

Recite a lição. E como o governo haitiano não acaba de aprender que é preciso
desmantelar os poucos 
serviços públicos que restam, últimos pobres amparos
para um dos povos mais desamparados do mundo, os
professores dão o exame por
perdido.
 
O álibi demográfico
Em fins do
ano passado, quatro deputados alemães visitaram o Haiti. Mal chegaram, a miséria
do povo
feriu-lhes os olhos. Então o embaixador da Alemanha explicou-lhe, em
Porto Príncipe, qual é o
problema:
 
– Este é um país superpovoado,
disse ele. A mulher haitiana sempre quer e o homem haitiano sempre
pode.
 
E riu. Os deputados calaram-se. Nessa noite, um deles, Winfried
Wolf, consultou os números. E  comprovou que o Haiti é, com El Salvador, o país
mais superpovoado das Américas, mas está tão superpovoado quanto a Alemanha: tem
quase a mesma quantidade de habitantes por quilômetro quadrado.

 Durante
os seus dias no Haiti, o deputado Wolf não só foi golpeado pela miséria como
também foi  deslumbrado pela capacidade de beleza dos pintores populares. E
chegou à conclusão de que o Haiti está
superpovoado… de
artistas.

Na realidade, o álibi demográfico é mais ou menos recente. Até
há alguns anos, as potências ocidentais falavam mais claro.
 
A
tradição racista

Os Estados Unidos invadiram o Haiti em
1915 e governaram o país até 1934. Retiraram-se quando 
conseguiram os seus
dois objetivos: cobrar as dívidas do Citybank e abolir o artigo
constitucional 
que proibia vender as plantations aos estrangeiros. Então
Robert Lansing, secretário de Estado, 
justificou a longa e feroz ocupação
militar explicando que a raça negra é incapaz de governar-se a si 
própria,
que tem "uma tendência inerente à vida selvagem e uma incapacidade física de
civilização". 
Um dos responsáveis pela invasão, William Philips, havia
incubado tempos antes a ideia sagaz: "Este é 
um povo inferior, incapaz de
conservar a civilização que haviam deixado os franceses".
 
O Haiti fora a
pérola da coroa, a colônia mais rica da França: uma grande plantação de açúcar,
com 
mão-de-obra escrava. No Espírito das leis, Montesquieu havia explicado
sem papas na língua: "O açúcar 
seria demasiado caro se os escravos não
trabalhassem na sua produção. Os referidos escravos são 
negros desde os pés
até à cabeça e têm o nariz tão achatado que é quase impossível deles ter
pena. 
Torna-se impensável que Deus, que é um ser muito sábio, tenha posto
uma alma, e sobretudo uma alma 
boa, num corpo inteiramente
negro".
 
Em contrapartida, Deus havia posto um açoite na mão do capataz.
Os escravos não se distinguiam pela 
sua vontade de trabalhar. Os negros eram
escravos por natureza e vagos também por natureza, e a
natureza, cúmplice da
ordem social, era obra de Deus: o escravo devia servir o amo e o amo devia

castigar o escravo, que não mostrava o menor entusiasmo na hora de cumprir
com o desígnio divino.
Karl von Linneo, contemporâneo de Montesquieu, havia
retratado o negro com precisão científica:
"Vagabundo, preguiçoso,
negligente, indolente e de costumes dissolutos". Mais generosamente,
outro 
contemporâneo, David Hume, havia comprovado que o negro "pode
desenvolver certas habilidades humanas,
tal como o papagaio que fala algumas
palavras".
 
A humilhação imperdoável
Em
1803 os negros do Haiti deram uma tremenda sova nas tropas de Napoleão Bonaparte
e a Europa jamais 
perdoou esta humilhação infligida à raça branca. O Haiti
foi o primeiro país livre das Américas. Os
Estados Unidos haviam conquistado
antes a sua independência, mas tinha meio milhão de escravos a
trabalhar nas
plantações de algodão e de tabaco. Jefferson, que era dono de escravos, dizia
que todos 
os homens são iguais, mas também dizia que os negros foram, são e
serão inferiores.
 
A bandeira dos homens livres levantou-se sobre as
ruínas. A terra haitiana fora devastada pela
monocultura do açúcar e
arrasada pelas calamidades da guerra contra a França, e um terço da população

havia caído no combate. Então começou o bloqueio. A nação recém nascida foi
condenada à solidão. 
Ninguém lhe comprava, ninguém lhe vendia, ninguém a
reconhecia.
 
O delito da dignidade
Nem sequer
Simón Bolívar, que tão valente soube ser, teve a coragem de firmar o
reconhecimento
diplomático do país negro. Bolívar havia podido reiniciar a
sua luta pela independência americana,
quando a Espanha já o havia
derrotado, graças ao apoio do Haiti. O governo haitiano havia-lhe
entregue
sete naves e muitas armas e soldados, com a única condição de que Bolívar
libertasse os
escravos, uma ideia que não havia ocorrido ao Libertador.
Bolívar cumpriu com este compromisso, mas
depois da sua vitória, quando já
governava a Grande Colômbia, deu as costas ao país que o havia salvo.
E
quando convocou as nações americanas à reunião do Panamá, não convidou o Haiti
mas convidou a
Inglaterra.
 
Os Estados Unidos reconheceram o Haiti
apenas sessenta anos depois do fim da guerra de independência,
enquanto
Etienne Serres, um gênio francês da anatomia, descobria em Paris que os negros
são
primitivos porque têm pouca distância entre o umbigo e o pênis. Por essa
altura, o Haiti já estava em 
mãos de ditaduras militares carniceiras, que
destinavam os famélicos recursos do país ao pagamento da
dívida francesa. A
Europa havia imposto ao Haiti a obrigação de pagar à França uma indenização

gigantesca, a modo de perdão por haver cometido o delito da
dignidade.
 
A história do assédio contra o Haiti, que nos nossos dias tem
dimensões de tragédia, é também uma
história do racismo na civilização
ocidental.

Fonte: Carta Maior.
Quarta-Feira, 20 de Janeiro de
2010
www.cartamaior.com.br

Eduardo Hughes Galeano (Montevidéu, 3 de setembro de 1940) é um jornalista e escritor uruguaio. É autor de mais de quarenta livros, que já foram traduzidos em diversos idiomas, entre eles, As Veias Abertas da América Latina. Suas obras transcendem gêneros ortodoxos, combinando ficção, jornalismo, análise política e História.

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