Aldeia Nagô
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A Idade Mendes por Leandro Fortes

8 - 11 minutos de leituraModo Leitura

No
fim
das contas, a função primordial do ministro Gilmar Mendes à frente do
Supremo
Tribunal Federal foi a de produzir noticiário e manchetes para a falange
conservadora que tomou conta de grande parte dos veículos de comunicação
do
Brasil. De forma premeditada e com muita astúcia, Mendes conseguiu fazer
com que
a velha mídia nacional gravitasse em torno dele, apenas com a promessa
de
intervir, como de fato interveio, nas ações de governo que ameaçavam a
rotina, o
conforto e as atividades empresariais da nossa elite colonial. Nesse
aspecto, os
dois habeas
corpus
concedidos ao
banqueiro Daniel Dantas, flagrado no mesmo crime que manteve o
ex-governador do
Distrito Federal José Roberto Arruda no cárcere por 60 dias, foram nada
mais que
um cartão de visitas. Mais relevante do que tudo foi a capacidade de
Gilmar
Mendes fixar na pauta e nos editoriais da velha mídia a tese quase
infantil da
existência de um Estado policialesco levado a cabo pela Polícia Federal
e, com
isso, justificar, dali para frente, a mais temerária das gestões da
Suprema
Corte do País desde sua criação, há mais cem anos.


Num
prazo
de pouco menos de dois anos, Mendes politizou as ações do Judiciário
pelo viés
da extrema direita, coisa que não se viu nem durante a ditadura militar
(1964-1985), época em que a Justiça andava de joelhos, mas dela não se
exigia
protagonismo algum. Assim, alinhou-se o ministro tanto aos interesses
dos
latifundiários, aos quais defende sem pudor algum, como aos dos
torturadores do
regime dos generais, ao se posicionar publicamente contra a revisão da
Lei da
Anistia, de cuja à apreciação no STF ele se esquivou, herança deixada a
céu
aberto para o novo presidente do tribunal, ministro Cezar Peluso. Para
Mendes,
tal revisão poderá levar o País a uma convulsão social. É uma tese tão
sólida
como o conto da escuta telefônica, fábula jornalística que teve o
presidente do
STF como personagem principal a dialogar canduras com o senador
Demóstenes
Torres, do DEM de Goiás.

A
farsa
do grampo, publicada pela revista Veja e repercutida, em série, por
veículos
co-irmãos, serviu para derrubar o delegado Paulo Lacerda do comando da
PF, com o
auxílio luxuoso do ministro da Defesa, Nelson Jobim, que se valeu de uma
mentira
para tal. E essa, não se enganem, foi a verdadeira missão a ser
cumprida. Na
aposentadoria, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva terá tempo para
refletir e
registrar essa história amarga em suas memórias: o dia em que, chamado
"às
falas" por Gilmar Mendes, não só se submeteu como aceitou mandar para o
degredo,
em Portugal, o melhor e mais importante diretor geral que a Polícia
Federal
brasileira já teve. O fez para fugir de um enfrentamento necessário e,
por isso
mesmo, aceitou ser derrotado. Aliás, creio, a única verdadeira derrota
do
governo Lula foi exatamente a de abrir mão da política de combate
permanente à
corrupção desencadeada por Lacerda na PF para satisfazer os interesses
de grupos
vinculados às vontades de Gilmar Mendes.

O
presidente do STF deu centenas de entrevistas sobre os mais diversos
assuntos,
sobretudo aqueles sobre os quais não poderia, como juiz, jamais se
pronunciar
fora dos autos. Essa é, inclusive, a mais grave distorção do sistema de
escolha
dos nomes ao STF, a de colocar não-juízes, como Mendes, na Suprema
Corte, para
julgar as grandes questões constitucionais da nação. Alheio ao cargo que
ocupava
(ou ciente até demais), o ministro versou sobre tudo e sobre todos. Deu
força e
fé pública a teses as mais conservadoras. Foi um arauto dos fazendeiros,
dos
banqueiros, da guarda pretoriana da ditadura militar e da velha mídia.
Em troca,
colheu farto material favorável a ele no noticiário, um relicário de
elogios e
textos laudatórios sobre sua luta contra o Estado policial, os juízes de
primeira instância, o Ministério Público e os movimentos sociais, entre
outros
moinhos de vento vendidos nos jornais como inimigos da
democracia.

Na
imprensa nacional, apenas CartaCapital, por meio de
duas reportagens ("O
empresário Gilmar"
 e "Nos
rincões de Mendes"
), teve coragem de se contrapor ao
culto à
personalidade de Mendes instalado nas redações brasileiras como regra de
jornalismo. Por essa razão, somos, eu e a revista, processados pelo
ministro.
Acusa-nos, o magistrado, de má fé ao divulgar os dados contábeis do
Instituto
Brasiliense de Direito Público (IDP), uma academia de cursinhos
jurídicos da
qual Mendes é sócio. Trata-se de instituição construída com dinheiro do
Banco do
Brasil, sobre terreno público praticamente doado pelo ex-governador do
DF
Joaquim Roriz e mantido às custas de contratos milionários fechados, sem
licitação, com órgãos da União.

Assim,
a
figura de Gilmar Mendes, além de tudo, está inserida eternamente em um
dos
piores momentos do jornalismo brasileiro. E não apenas por ter sido o
algoz do
fim da obrigatoriedade do diploma para se exercer a profissão, mas,
antes de
tudo, por ter dado enorme visibilidade a maus jornalistas e, pior ainda,
fazer
deles, em algum momento, um exemplo servil de comportamento a ser
seguido como
condição primordial de crescimento na carreira. Foi dessa simbiose fatal
que
nasceu não apenas a farsa do grampo, mas toda a estrutura de comunicação
e de
relação com a imprensa do STF, no sombrio período da Idade
Mendes.

Emblemática
sobre essa relação foi uma nota do informe digital "Jornalistas &
Companhia", de abril de 2009, sobre o aniversário do publicitário Renato
Parente, assessor de imprensa de Gilmar Mendes no STF (os grifos são
originais):

"A festa
de aniversário de 45 anos de
 Renato
Parente
, chefe
do Serviço de Imprensa do STF (e que teve um papel importante na
construção da
TV Justiça, apontada como paradigma na área da tevê pública), realizada
na tarde
do último domingo (19/4), em Brasília, mostrou a importância que o
Judiciário
tem hoje no cenário nacional. Estiveram presentes, entre outros, a
diretora da
Globo,
 Sílvia
Faria
, a
colunista
 Mônica
Bergamo
, e o
próprio presidente do STF, Gilmar Mendes, entre outros."

 Olha,
quando festa de aniversário de assessor de imprensa serve para mostrar a
importância do Poder Judiciário, é sinal de que há algo muito errado com
a
instituição. Essa relação de Renato Parente com celebridades da mídia é,
em
todos os sentidos, o pior sintoma da doença incestuosa que obriga
jornalistas de
boa e má reputação a se misturarem, em Brasília, em cerimônias de
beija-mão de
caráter duvidoso. Foi, como se sabe, um convescote de sintonia
editorial. Renato
Parente é o chefe da assessoria que, em março de 2009, em nome de Gilmar
Mendes,
chamou o presidente da Câmara, deputado Michel Temer (PMDB-SP), às
falas, para
que um debate
da TV Câmara
 fosse retirado do ar e da
internet.
Motivo: eu critiquei o posicionamento do presidente do STF sobre a
Operação
Satiagraha e fiz justiça ao trabalho do delegado federal Protógenes
Queiroz,
além de citar a coragem do juiz Fausto De Sanctis ao mandar prender, por
duas
vezes, o banqueiro Daniel Dantas.

Certamente
em consonância com o "paradigma na área de tevê pública" da TV Justiça
tocada
por Renato Parente, a censura na Câmara foi feita com a conivência de um
jornalista, Beto Seabra, diretor da TV Câmara, que ainda foi mais além:
anunciou
que as pautas do programa "Comitê de Imprensa", a partir dali, seriam
monitoradas. Um vexame total. Denunciei em
carta aberta aos jornalistas e em
todas as instâncias corporativas (sindicatos, Fenaj e ABI) o ato de
censura e,
com a ajuda de diversos blogs, consegui expor aquela infâmia, até que,
cobrada
publicamente, a TV Câmara foi obrigada a capitular e recolocar o
programa no ar,
ao menos na internet. Foi uma das grandes vitórias da blogosfera, até
então,
haja vista nem um único jornal, rádio ou emissora de tevê, mesmo diante
de um
gravíssimo caso de censura e restrição de liberdade de expressão e
imprensa, ter
tido coragem de tratar do assunto. No particular, no entanto, recebi
centenas de
e-mails e telefonemas de solidariedade de jornalistas de todo o
país.

Não
deixa
de ser irônico que, às vésperas de deixar a presidência do STF, Gilmar
Mendes
tenha sido obrigado, na certa, inadvertidamente, a se submeter ao
constrangimento de ver sua gestão resumida ao caso Daniel Dantas,
durante
entrevista no youtube.
Como foi administrada pelo Google, e não pelo paradigma da TV Justiça, a
sabatina acabou por destruir o resto de estratégia ainda imaginada por
Mendes
para tentar passar à história como o salvador da pátria ameaçada pelo
Estado
policial da PF. Ninguém sequer tocou nesse assunto, diga-se de passagem.
As
pessoas só queriam saber dos HCs a Daniel Dantas, do descrédito do
Judiciário e
da atuação dele e da família na política de Diamantino, terra natal dos
Mendes,
em Mato Grosso. Como último recurso, a assessoria do ministro ainda
tentou tirar
o vídeo de circulação, ao menos no site do STF, dentro do sofisticado e
democrático paradigma de tevê pública bolado por Renato
Parente.

Como
derradeiro esforço, nos últimos dias de reinado, Mendes dedicou-se a dar
entrevistas para tentar, ainda como estratégia, vincular o próprio nome
aos bons
resultados obtidos por ações do Conselho Nacional de Justiça (CNJ),
embora o
mérito sequer tenha sido dele, mas de um juiz de carreira, Gilson Dipp.
Ministro
do Superior Tribunal de Justiça e corregedor do órgão, Dipp foi nomeado
para o
cargo pelo presidente Lula, longe da vontade de Gilmar Mendes. Graças ao
ministro do STJ, foi feita a maior e mais importante devassa nos tribunais de
Justiça
do Brasil
, até então antros estaduais intocáveis comandados,
em
muitos casos, por verdadeiras quadrilhas de toga.

É
de
Gilson Dipp, portanto, e não de Gilmar Mendes, o verdadeiro registro
moralizador
do Judiciário desse período, a Idade Mendes, de resto, de triste memória
nacional.

Mas
que,
felizmente, se encerra hoje.

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