A independência dos soldados do tráfico por Josias Pires
A
capa do jornal A Tarde, de Salvador, publicada no dia 11 de setembro é uma
síntese eloqüente de algumas das dimensões profundas da sociedade
soteropolitana: abaixo do nome do jornal e acima do título "14 presos são
transferidos para o Paraná", a fotografia do avião bi-motor da FAB ocupando
todo o alto da página, em seis colunas.
As asas e o corpo da aeronave
atravessam a foto de ponta a ponta. Em primeiro plano os soldados da Força
Nacional vigiam os presos, que foram dispostos em duas filas, todos algemados
nas pernas e nas mãos. De dois a dois eles sobem as escadinhas de acesso ao
avião. Na legenda da foto informa-se que foi a maior operação de transferência
de detentos feita na Bahia com destino a prisões de segurança máxima, desta vez
para Cantanduvas (PR).
Na
metade inferior da página uma foto não tão grande, mas respeitavelmente
publicada em quatro colunas, da ialorixá Stella de Oxossi, Maria Stella de
Azevedo Santos, 84 anos, de beca azul segura a comenda da 1a. mulher
agraciada com o títulos de doutora honoris causa da Universidade
Estadual da Bahia. "Reconhecimento à luta em defesa dos direitos humanos", diz
a legenda, fazendo evidente contraponto editorial à manchete da primeira
página.
De
fato, o contraste entre as duas imagens é inquietante. A capa é magistral no
sentido de opor duas realidade que convivem na mesma cidade. É óbvio, milhões
de coisas acontecem todos os dias em todos os lugares. Mas estamos falando de
símbolos. A mulher negra, mãe de terreiro, sacerdotisa de religiões que lutaram
bravamente para continuarem vivas. Lutaram, inclusive, para se defenderem da
polícia, que costumava quebrar atabaques e objetos rituais na tentativa de
dificultar e destruir a crença ancestral.
Estamos
falando de um cidade conflagrada pela crime social, que leva ao banditismo
milhares de jovens, que morrem e nascem incessantemente.
Numa
das reportagens internas do jornal encontramos valioso depoimento da professora
aposentada e makota do terreiro angola Tanuri Junçara, Valdina Pinto. Ela
recomenda o combate ao tráfico indo "além das prisões dos soldados. "É
como numa guerra, quem vai na frente são os soldados, os pequenos. Os poderosos
são poupados". Valdina acredita que há pessoas influentes por trás dos soldados
do tráfico, que tem fácil acesso a armas, drogas e muito dinheiro.
"Somente
o investimento do Estado na atenção aos jovens pobres poderá reverter a
situação da criminalidade"
salvar.
Ao
lado dos investimentos na juventude é preciso avançar no conhecimento do mapa e
da genealogia das organizações criminosas que atuam em Salvador e na Bahia.
Precisamos
conhecer como estruturam-se tais organizações e conhecer as suas relações com a
polícia. Algo absurdo ocorreu na corporação militar da Bahia no governo Paulo
Souto: o comandante-geral da PM pertencia a uma organização criminosa que
envolvia outros coronéis em postos-chave de compras de equipamentos, etc.
A conivência com o crime era tamanha que o então maior traficante de cocaína de
Salvador, conhecido como Ravengar, hoje preso, morava em local por demais
conhecido e tinha larga proteção policial.
O líder Perna passou oito anos na prisão comandando o tráfico até que foi
afastado em 2007. Sob um comando que tolera e pratica o crime não tem como o
crime ser combatido.
Quando o governo decide combater o tráfico, as pressões todas vêm à tona.
É
preciso investir na articulação das políticas públicas, isto é fundamental,
segurança pública, já se disse muito, é um pacote de serviços públicos de
qualidade.
Como
deve ter ocorrido durante outras rebeliões, vi a cidade cair em profundo
silêncio, andei em ônibus vazios em horário de rush, senti no ar e nos
olhares o espanto nos rostos. Quantos ficaram aturdidos com as cenas de
explosões de módulos policiais e ônibus queimados, e mais a promessa terrorista
– veiculada pelos programas de tevê – de novos ataques ainda mais fatais contra
as vidas humanas.
Vimos
e vivemos o sabor amargo do clima de guerra, produzido por uma rebelião feita
por jovens recrutados pela grana do tráfico de drogas. Quem são essas pessoas?
Qual a história de vida de um Campana? Piti? Etcétera? Como foram suas
experiências nas escolas, nas famílias, na vida social, enfim?
Quem sabe se estes poderiam ter virado executivos importantes se tivessem, na
infância e juventude, escolas, trabalho, cultura, lazer, dignidade humana
oriunda de políticas públicas decentes e aplicadas com determinação. Ao
contrário, o crime multiplica-se em meio às injustiças tremendas de toda a
ordem.
É uma vergonha o que os serviços públicos de atenção básica aos pobres ofereçam
tão pouco para a formação e transformação das crianças e dos jovens. Chega de
propaganda, queremos resultados. Antes de tudo, as crianças, pois só as
crianças poderão nos salvar – se ainda houver tempo face às anunciadas
catástrofes ambientais.
As crianças e os jovens.
Bancar o debate sobre o fim da ilegalidade das drogas. Estabelecer um debate
nacional sobre as drogas, a fim de criar um consenso, uma opinião, divergente
que seja, de como equacionar. Liberar significa certificar o mercado, impor ao
mercado paralelo as regras do mercado legal. As drogas movimentam bilhões. Não
sou economista e não saberei dizer qual o impacto social dessa grana sendo
legalizada..
Quanto ao impacto em termos de inclusão social parece-me que poderia ser
enorme.
Está bem, a máfia sempre vai existir. Parece que sim – mas pode ser que fique
cada vez mais difícil para ela operar.
Novos roteiros. O espanto da rebelião. Sintoma social da tragédia brasileira,
da miséria brasileira, rebeldia social trágica. E assim atestamos, mais uma
vez, a falência de certo modelo de Estado brasileiro.
Não é nenhuma novidade dizer que no Brasil o Estado foi erguido pelo Rei e
sempre protegeu os interesses dos poderosos. Lula não acaba com isso, mas ajuda
a acabar na medida em que redireciona importantes prioridades, que as políticas
sociais ganham focos e projetos consistentes. Cabe às prefeituras com o estado
e os agentes federais fazer a gestão competente dos programas. É disto que
carecemos.
Permanece o tamanho gigantesco das transformações que precisamos.
Elas parecem maiores do que pode só o governo fazer.
Ou fazemos a democracia participativa ou perderemos o jogo.
Passou a hora de cair o reis de ouro, o reis de espadas, o reis de copas, o
reis de paus, isso já era há muito tempo …
Vivemos agora a era do pré-sal.
o que será de nós?
Josias Pires Jornalista, mestre em Artes Cênicas, diretor da série de TV “Bahia Singular e Plural”