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A legalização das drogas como pauta do movimento negro por Nilton Luz

6 - 9 minutos de leituraModo Leitura
Nilton_Luz

Sobram motivos políticos, econômicos e raciais para o movimento negro assumir a defesa da legalização das drogas. Esse texto finaliza o conjunto de reflexões a partir da campanha pela redução da maioridade penal.

 

 

 

A cantora jamaicana Judy Mowatt com camisa da campanha “Legalize It”

Há anos, o movimento negro denuncia a falácia do discurso do combate ao tráfico de drogas, acionado pelas políticas de segurança pública como justificativa da violenta repressão do Estado sobre as comunidades negras . Apesar disso, a discussão sobre alternativas pouco avança na militância. O motivo mais importante para essa aparente timidez está no risco (de vida, inclusive) do questionamento das políticas repressivas. O protagonismo da defesa da legalização das drogas (em geral, da maconha) permanece restrito a grupos universitários. É difícil imaginar uma Marcha da Maconha na Rocinha.

O tema precisa ser enfrentado, sobretudo para ampliar a análise além da segmentação, permitindo a visualização dos intercruzamentos. A ampliação do debate complementa, consolida e aprofunda as lutas sociais, promovendo alianças. Uma primeira análise, tão limitada quanto o espaço desse artigo, já é suficiente para reconhecer outros personagens políticos e econômicos. Sem perder de vista uma orientação anti-racista, é possível verificar que (1) o mecanismo repressor do Estado cria o tráfico, (2) o setores da economia envolvidos lucram ainda mais com a ilegalidade, e (3) tudo é pago com o sangue da juventude negra. O racismo tem um papel central na economia do crime.

O primeiro argumento pela legalização é sempre o retumbante fracasso da política de combate às drogas. É a criminalização que “cria” o tráfico. Já a repressão o “alimenta”, pois justifica o aumento do preço do produto e os consequentes ganhos de seus investidores. Também torna essa via mais atraente para uma mão de obra sem alternativas. Essa constatação pode ser comprovada analisando o resultado de inflexões das políticas repressivas nos últimos anos: mais mortos, mais presos, mais drogas, mais dependentes e mais violência. A política repressiva é tão absurda que provoca o inverso do que pretende – ou afirma pretender.

Há um axioma implícito no parágrafo anterior. As constatações pressupõem que a demanda por drogas não é afetada pela repressão. Essa observação é tão consistente que é quase um ponto pacífico do debate, legitimando a tática de criminalizar a produção e o tráfico, mas não o consumo. Os defensores liberais da legalização das drogas (e há muitos deles) afirmam que aí opera a força incontrolável do mercado. Mais visível é a força descontrolada do racismo: o perfil dos presos e condenados mostra o pertencimento racial do traficante punível pela lei, e do outro lado, do consumidor “dependente e carente de tratamento”.

A questão é: as políticas de criminalização fracassaram para os objetivos alentados. E aí surge a proposta de legalização das drogas como alternativa. Importante definir em que consiste. Como o Direito está associado à ideia de “permitir” ou “proibir” práticas sociais, os críticos usam o termo “legalização” com a conotação de “aprovação”, “liberação” ou mesmo “incentivo” ao uso de drogas. Na verdade, legalizar significa controlar o processo de produção, comercialização e consumo, inclusive com adoção de medidas de desincentivo ao uso, campanhas de prevenção e mesmo proibição da propaganda (preferencialmente junto com o cigarro, o álcool e suplementos para emagrecer). O Estado ainda pode adotar mecanismos mais eficazes de prevenção e outras políticas de saúde, que poderiam ser financiadas pelos impostos. Com a simples descriminalização, já cessa a custosa política de combate, representando uma economia substancial[i].

Embora os argumentos que justificam uma política alternativa pareçam bastante convincentes, eles dificilmente ultrapassam as barreiras impostas ao debate, mesmo após o Supremo Tribunal Federal se pronunciar pela liberação de manifestações favoráveis à legalização, em 2011. A primeira barreira é a acusação de “apologia” às drogas, eficiente para conter os movimentos sociais. Se superada (em geral, quando uma autoridade propõe), vem o costumeiro terrorismo futurístico descrevendo o caos em um mundo movido por drogas.

É compreensível que a sociedade demore a se livrar de todo o preconceito ideológico em torno das drogas. Mais difícil é entender porque as iniciativas de redução de danos são precarizadas, e sua eficácia escamoteada. Ao invés disso, o Estado tem adotado a internação compulsória de dependentes químicos em situação de rua, violando direitos humanos previstos na Constituição Federal. Por que adotar a política econômica e socialmente mais custosa?

É pela ótica econômica que o debate torna-se mais interessante. Se o tráfico fosse vencido, o efeito sobre a economia  mundial seria avassalador, desestabilizando o mercado financeiro, quebrando países e lançando várias pessoas para o desemprego.

O mercado de drogas ilegais representa 8% de todo o comércio mundial, valor em torno de US$ 600 bilhões de dólares[ii]. Muitos países são sustentados pela produção de entorpecentes, legalmente ou não. Um mercado que movimenta um volume tão gigantesco de recursos alfere receitas igualmente altas para seus comandantes. Para os investidores, trata-se de uma atividade de alto risco e, consequentemente, alto prêmio de risco.

Dois parceiros importantes são o mercado financeiro e a indústria de armas, mercado de lucro bilionário que sobrevive de guerras. A indústria fornece armas para os dois lados da guerra: o Estado e o tráfico. E quem morre em qualquer lado é o mesmo segmento social: negros em alguns países, indígenas em outros, ou ambos, e sempre pobres. O forte lobby da indústria de armas norte-americana explica todo o esforço desse país no combate às drogas, principalmente na América Latina, principal exportadora do mundo[iii]. Tampouco seria possível a lavagem de volume tão alto de recursos sem a cooperação dos bancos. Quando denunciados e processados, tudo se resolve com o pagamento de uma multa[iv].

Embora apenas os chefes das bocas de fumo apareçam nos noticiários, existem empresários e políticos que atuam na defesa dessa estrutura, direta ou indiretamente. E, ao contrário do que sugere as informações que o Estado disponibiliza e a mídia transforma em show, a economia ilegal está perfeitamente integrada à legal.

E que têm os negros a ver com isso? O racismo está na base do funcionamento dessa estrutura política e econômica tão eficiente. O lucro é justificado pelo risco da atividade ilegal, risco que é totalmente assumido pelos pequenos traficantes, em troca de uma parcela pequena dos rendimentos. O alto faturamento ainda paga o lobby político-midiático e a colaboração do sistema financeiro. A juventude negra sustenta toda essa estrutura econômica com o próprio sangue. Literalmente.

Não fosse o racismo que desumaniza a juventude negra e a criminalização seletiva vigente desde o pós-escravidão[v], a economia do crime teria mais problemas de recrutamento. As comunidades negras fornecem a mão de obra barata, farta, dispensável e substituível que é base elementar do funcionamento de toda a economia do crime. Equivale a um sistema de escravização moderno, cuja legalidade é garantida pela ilegalidade.

É por isso que, a despeito de toda a argumentação, o debate é interditado. Se as drogas são legalizadas, os superlucros dos empresários do crime não resistiriam, desbaratando o funcionamento de toda essa eficiente estrutura como em um castelo de cartas.

Por outro lado, haveria a chance de testar a ampliação de políticas de redução de danos. A inserção dos egressos do tráfico no mercado de trabalho formal (o que não aconteceu no pós-escravidão) reduziria sua vulnerabilidade social e econômica. E o argumento mais forte da política de criminalização da raça atualmente seria vencido, avançando para superar o racismo como estruturante das relações sociais. Com a legalização das drogas, o racismo e capitalismo têm muito a perder e o povo negro, muito a ganhar.

[i] Segundo estudo do economiomista Jeffrey A. Miron, da Universidade de Harvard, o setor formalizado na economia do EUA contribuiria com 76,8 bilhões de dólares, US$ 44,1 bilhões poupados da política de repressão e US$ bilhões arrecadados em impostos. Mais informações nesse matéria: http://www.senado.gov.br/noticias/Jornal/emdiscussao/dependencia-quimica/mundo-e-as-drogas/oposta-a-politica-atual-legalizacao-das-drogas-e-polemica.aspx

[ii] Os dados são de John Grieve, especialista em Inteligência Criminal da Scotlan Yard,http://www.diplomatique.org.br/editorial.php?edicao=2. Há estudos que apontam valores sempre acima de 200 bilhões de dólares, todos eles desatualizados. O especialista brasileiro Walter Maierovitch se refere a valores entre 200 e 600 bilhoes http://www.dcomercio.com.br/especiais/outros/digesto/digesto_17/01.htm .

[iii] É por isso que os principais lobbies defensores das políticas repressivas no Congresso Nacional são ligados aos militares e à indústria de armas – além dos evangélicos. É provável que os militares sigam a orientação da indústria de armas. Ao contrário do que seria esperado, policiais, juízes e outros operadores do Direito criaram uma organização que propõe a legalização das drogas (Acesse o site da Law Enforcement Against Prohibition (LEAP) Brasil http://www.leapbrasil.com.br/).

[iv] O caso do HSBC ganhou notoriedade, provavelmente, em virtude da cooperação com financiadores do terrorismo anti-americano. O banco pediu desculpas, mas teve de pagar a multa recorde de US$ 1,8 bilhão.

[v] Tema discutido no texto anterior, “As Vítimas Algozes“.

Artigo publicado originalmente em http://www.blogs.correionago.com.br/niltonluz/

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