Toda sociedade ou associação estável organiza-se em função do poder, que é a capacidade atribuida aos dirigentes de impor suas decisões, com base em princípios fundamentais, consensualmente aceitos.
Na sociedade
política, que engloba todas as demais, essa aptidão a impor decisões funda-se,
em última instância, na disponibilidade da força pública, isto é, da
organização dos meios de coerção, postos oficialmente à disposição dos
governantes. Mas ela supõe, normalmente, uma obediência voluntária dos
governados, obediência essa que se apoia, em última análise, no reconhecimento
da legitimidade do poder; ou seja, na convicção geral de que ele é justo e necessário.
Com efeito, em
uma sociedade cujo poder organizador é tido como injusto pela maioria dos
sujeitos, os dirigentes são obrigados, para se fazerem obedecer, a recorrer
sistematicamente à força. É uma situação anormal, que não pode subsistir por
muito tempo.
Para manter
inabalada a obediência voluntária dos governados, por conseguinte, importa
sempre zelar pelo reconhecimento geral da legitimidade, quer do sistema de
poder em geral, quer da pessoa de seus detentores em particular.
Ora, esse juizo
de legitimidade do poder nunca é feito intelectualmente, de modo abstrato, mas
sempre concretamente, em função das preferências valorativas, dos sentimentos,
das crenças e opiniões, que formam o que hoje se denomina a mentalidade social.
O advento da sociedade de massas
As sociedades
do passado eram compostas de grupos sociais distintos e heterogêneos, até mesmo
quanto ao seu estatuto jurídico. Em toda a Idade Média européia, por exemplo,
as pessoas distinguiam-se pelo fato de pertencerem a um dos três estamentos
distintos em que se dividia a sociedade: o clero ("os que rogam a Deus"), a
nobreza ("os que portam armas") e o povo.
A partir das
Revoluções do século XVIII – a industrial e as duas políticas, a
norte-americana e a francesa – bem como da expansão mundial do capitalismo,
esse panorama mudou radicalmente. Surgiu algo sem precedentes na História, qual
seja a formação das primeiras sociedades de massas. Nelas, as diferenças
estamentais foram suprimidas, e as classes sociais, embora afastadas entre si
pela crescente desigualdade de níveis de vida, tenderam a fundir-se em uma
massa homogênea sob o aspecto cultural, com o abandono dos costumes
tradicionais e o enfraquecimento da fé religiosa.
Assentou-se aos
poucos um modo de vida voltado para o progresso material, com a inoculação
daquilo que Max Weber, em ensaio célebre, denominou o "espírito do
capitalismo". Ele se funda na preocupação exclusiva com os interesses próprios
e no descaso com a coisa pública, isto é, o bem comum do povo. Segundo a
justificativa apresentada por Adam Smith1, até hoje largamente utilizada pelos
próceres do capitalismo, a busca racional do próprio interesse acaba por
realizar, involuntária mas necessariamente, o interesse coletivo.
Os forjadores
dessa mentalidade de egoismo racional – repito, sem precedentes na História –
foram os empresários industriais modernos. Eles atuaram com um objetivo bem
definido: legitimar a instauração do capitalismo, não apenas como sistema
econômico, mas também como modo global de vida em sociedade, no qual tudo – a
política, a religião, a família, a escola, as forças armadas – deve
subordinar-se ao princípio da utilidade econômica.
Com a
instauração mundial do sistema de produção em série e de padronização do
consumo, criaram-se rapidamente (ou seja, em menos de dois séculos) modos de
vida homogêneos em todos os quadrantes da Terra. Em obra publicada em 2004,2 C.
A. Baily traça um panorama impressionante da uniformidade mundial de vestuário,
alimentação, registros horários, estrutura linguística, atribuição de prenomes
às pessoas, práticas de esporte e lazer, a partir do século XIX, como efeito da
expansão sem fronteiras do sistema capitalista. Toda essa camada cultural
uniforme, contudo, passou a recobrir, ainda por efeito da expansão mundial do
capitalismo, uma desigualdade cada vez mais pronunciada de níveis de vida, não
apenas dentro do mesmo país, mas também entre paises desenvolvidos e
subdesenvolvidos.
Os mal chamados meios de comunicação de massa
Nas sociedades
de massas assim criadas, além do contato tradicional de pessoa a pessoa,
criou-se um relacionamento impessoal e coletivo, mediante o envio de mensagens
homogêneas a destinatários anônimos, para consumo em bloco e sem possibilidade
de diálogo. É o que se denominou, segundo a expressão de origem anglo-saxônica,
mass media communication; ou seja, um sistema englobando a grande imprensa, o
cinema, o rádio e a televisão.
Acontece que o
vocábulo comunicação sofre, no caso, notável variação semântica. Na lingua
matriz, communicatio e o verbo cognato communico, -are, significam pôr ou ter
em comum, receber em comum, ou entrar em relações pessoais com alguém.
Ora, no campo
da mass media communication, a verdadeira comunicação foi excluida. A partir de
determinados centros emitentes, cada vez menos numerosos, mensagens coletivas
são enviadas impessoalmente a consumidores, que se comportam como recipientes
puramente passivos.
Em suma,
instaurou-se nesse campo o mesmo sistema aplicado pelo capitalismo industrial
com pleno êxito, no mundo todo: produção em série e consumo padronizado.
Sem dúvida, a
invenção da internet, agora interligada aos meios de comunicação móveis, como
telefones celulares, i-pods e MP3, veio alterar o esquema original de
comunicação de massa, ao criar um ambiente de diálogo coletivo a envolver um
número crescente de pessoas, no mundo todo. Mas não extrapolemos
inconsideradamente os efeitos de democratização que esse avanço tecnológico irá
produzir. Lembremo-nos de que o público usuário desses engenhos eletrônicos
pertence à minoria do estrato econômico superior da sociedade.
Para que se
compreenda bem a notável transformação social ocorrida com a introdução dos
meios de comunicação de massa, é importante verificar a evolução da imprensa
periódica a partir do início do século XIX. A esse respeito, o testemunho de
Alexis de Tocqueville, que morou nove meses nos Estados Unidos na primeira
metade daquele século, merece ser lembrado.
Ao comparar as
características fundamentais da sociedade norte-americana em relação à
sociedade européia, ele apontou a multiplicidade de jornais locais, então
existentes nos Estados Unidos. "Não há quase nenhuma aldeia que não tenha o seu
jornal", observou ele.3 Contrariamente ao que ocorria nos paises europeus, na
América do Norte não se exigia nenhuma licença oficial para a criação de um
periódico; e bastava reunir um pequeno número de assinantes, para que um só
jornalista editasse o seu próprio jornal.
Tocqueville
acrescentou que, para os americanos mais esclarecidos, a razão da fraqueza da
imprensa, nos Estados Unidos, residia exatamente nessa incrível disseminação
dos jornais. "Constitui um axioma da ciência política, nos Estados Unidos,"
observou ele, "que a única maneira de neutralizar os efeitos dos jornais é
multiplicar o seu número."
Já no segundo
volume dessa mesma obra,4 publicado dez anos depois do primeiro, Tocqueville
não hesitou em dizer que a liberdade de imprensa constitui o modo mais seguro
de se garantirem os direitos individuais, nas sociedades democráticas. "Nos
nossos dias," afirmou ele segundo o estilo grandiloquente da época, "o cidadão
oprimido possui um só meio de defesa: dirigir-se a toda a nação e, se esta não
o ouve, ao gênero humano". E isto, concluiu, só pode ser feito por meio da
imprensa livre.
Menos de um
século depois que essas linhas foram escritas, porém, operava-se nesse setor
uma revolução de 180º. Percebeu-se simultaneamente, em todos os quadrantes do
globo, que a junção da imprensa com o cinema, e em seguida com o rádio e a
televisão, constituia o meio mais eficaz de se forjarem mentalidades novas e de
se modificarem os costumes ancestrais, no sentido de levar as multidões a
obedecer cegamente, senão de modo entusiástico, às orientações veiculadas por
esses canais de difusão unilateral de mensagens.
Na União Soviética
e seus satélites, assim como na Alemanha nazista e demais Estados fascistas,
todos os meios de comunicação de massa foram concentrados em mãos das
autoridades políticas, para atuar na propaganda do regime. Essa organização
autoritária persiste ainda hoje em alguns paises autoritários, como a China, o
Irã e Cuba.
Ao mesmo tempo,
nas nações do chamado "mundo livre", sob a batuta de grandes empresários
capitalistas, iniciou-se um vigoroso movimento de rápida concentração do
controle privado de jornais, emissoras de rádio e canais de televisão. Nos
Estados Unidos, a pressão neoliberal logrou revogar em 1996 a lei de 1934, que
estabelecia limites na concentração de controle empresarial desses veículos. No
mesmo sentido, em 2003 a Federal Communications Commission eliminou as
proibições então existentes para a participação cruzada no capital das empresas
do setor. O resultado não se fez esperar: enquanto em 1983 havia no mercado de
comunicação de massa 50 empresas de médio porte, hoje este é dominado por
apenas cinco macroempresas.5
No Brasil,
assistimos ao mesmo fenômeno. Quatro grandes redes dominam todo o mercado
nacional de televisão: a Globo controla 342 empresas; a SBT, 195; a
Bandeirantes, 166; e a Record, 142.
Com essa
formidável concentração de controle empresarial, operou-se uma modificação de
monta no grau de influência dos meios de comunicação de massa, sobre a
sociedade em seu conjunto.
Como salientei,
quando Tocqueville visitou a América do Norte na primeira metade do século XIX,
quase todos os municípios americanos tinham o seu periódico local, e cada um
desses pequenos jornais divulgava notícias e comentários à sua maneira. Hoje, a
grande maioria dos periódicos locais desapareceu, e os poucos jornais restantes
de ampla difusão quase não se distinguem entre si quanto à sua orientação
editorial.
Por outro lado,
as emissões de televisão e de rádio são hoje captadas nos Estados Unidos,
respectivamente, por 98,3% e 99% das moradias. Tirante algumas diferenças de
estilo sem maior importância, a escolha das notícias e o teor dos comentários
difundidos por essas emissoras obedecem ao mesmo denominador comum: a defesa
dos valores tradicionais da sociedade norte-americana, como a garantia das
liberdades individuais, a intangibilidade da propriedade privada, a redução das
atividades do Estado ao mínimo indispensável e o nacionalismo dominador nas
relações internacionais.
Quem quiser se
manifestar contra essas posições dogmáticas, ao contrário do que sucedia no
tempo de Tocqueville, encontrará fechadas todas as portas dos mass media
communication.
Pode-se dizer
que um cenário análogo existe no Brasil há pelo menos meio século.
Em pesquisa
realizada em 2008, verificou-se que o consumo médio diário da televisão aberta,
entre nós, é de quatro horas e quarenta e dois minutos por pessoa. Observou-se,
aliás, que nos últimos 7 anos o brasileiro tem passado quase 30 minutos a mais
por dia em frente ao aparelho de televisão. Quanto ao rádio, estima-se que 80%
da nossa população ouvem as suas emissões pelo menos 15 minutos por dia.
Na verdade, o
nosso oligopólio privado de meios de comunicação de massa não surgiu
espontaneamente, mas foi montado com o apoio direto das autoridades políticas,
durante o regime militar. Tratava-se, de um lado, de demonstrar que o Estado
autoritário, instaurado com o golpe de 1964, garantia a democracia,
salvando-nos do terror comunista. Cuidava-se, de outro lado, de difundir em
todas as programações o consumismo de massa, em benefício da expansão
capitalista.
Com isto,
reforçou-se sobremaneira, no seio do povo, a tradicional mentalidade passiva e
conformista, indiferente à política, considerada pelo vulgo como um jogo
reservado exclusivamente àqueles que, na linguagem saborosa de Camões, nasceram
não para mandados, mas para mandar.
Como se percebe,
o que Tocqueville estimara ser o melhor, senão o único meio de garantia dos
direitos individuais contra o Estado, transformou-se, nos dias atuais, em novo
poder político de natureza privada, capaz de ombrear-se com os órgãos públicos,
ou de servir de principal instrumento de propaganda de regimes autoritários.
Nos paises que se declaram paladinos da liberdade de expressão, estabeleceu-se,
a esse respeito, uma partilha de competências: enquanto as autoridades
estatais subjugam os corpos, os patrões da comunicação social, à semelhança dos
chefes religiosos, dominam as almas.
A nossa
Constituição, em seu art. 220, proclama livres "a manifestação do pensamento, a
criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo".
Mas no campo da grande imprensa, dos serviços de radiodifusão sonora e de sons
e imagens, essa liberdade só existe para os controladores das respectivas
empresas.
Curiosamente,
ao final do segundo volume de Da Democracia na América,6 Tocqueville
conjecturou sobre a possibilidade de surgir um novo despotismo nos tempos
modernos, diverso daquele que se impôs nas sociedades antigas. "Ao que parece,"
escreveu ele, "se o despotismo vier a se instalar nas nações democráticas dos
nossos dias, ele apresentaria outras características: seria mais extenso e mais
ameno, e degradaria os homens sem os atormentar." Acrescentou que ele
assemelhar-se-ia ao pátrio poder, se tivesse por objeto preparar os homens para
a vida adulta. Mas o que ele busca, na verdade, é fixá-los irrevogavelmente em
um estado de perpétua menoridade, de modo que os atos mais importantes da vida
de cada um devam ser praticados sob a supervisão dessa autoridade tutelar.
Não tenho
dúvidas em afirmar que esse regime de despotismo aprazível existe entre nós, e
se apresenta como um sistema de dupla face: sob a moderna fachada democrática,
exposta na Constituição e louvada na imprensa, no rádio e na televisão,
continua a vigorar a oligarquia tradicional. O povo somente é admitido à cena
política no momento das eleições. Mas estas, em lugar de representarem o
exercício normal da soberania popular, ocultam na verdade a sua alienação.
Dois exemplos
bastam para ilustrar a estrutura dúplice do nosso regime político.
Ao forjar no
século XVI o conceito moderno de soberania como poder absoluto e perpétuo, Jean
Bodin enfatizou que "o ponto principal da majestade soberana e do poder
absoluto consiste em dar lei aos súditos em geral, sem o seu consentimento".7
Pois bem, é esse o privilégio reconhecido, entre nós, aos mal chamados
representantes do povo: além de fazerem as leis, eles se atribuem a competência
exclusiva para reformar a Constituição.
Como se isso
não bastasse, a nossa inventividade jurídica chegou ao extremo de exigir a
prévia autorização do Congresso Nacional para a realização de plebiscitos e
referendos, que a Constituição reconhece expressamente como expressões da
soberania popular (Constituição, art. 14). Ou seja, o mandante precisa da
permissão do mandatário para manifestar sua vontade soberana!
Ora, no
desenvolvimento desse enredo caviloso, a colaboração do oligopólio privado dos
chamados meios de comunicação de massa não pode ser desprezada. O seu poder de
pressão sobre o Congresso Nacional e os políticos em geral tem sido irresistível
nos últimos decênios. A própria Constituição Federal de 1988 foi elaborada sob
a influência dominante dos empresários do setor.
Um programa republicano e democrático para os meios de comunicação de massa
A magna tarefa
que se impõe hoje, por conseguinte, no mundo inteiro, consiste em elaborar e
instituir outra forma de relacionamento coletivo, pela qual os homens possam
verdadeiramente se comunicar; isto é, pôr em comum suas idéias, sentimentos e
opiniões. Sem isto, é inútil pretender ensaiar um verdadeiro regime
democrático, pois ele pressupõe a capacidade do povo soberano de discutir entre
si as grandes questões, de âmbito nacional ou internacional, sobre as quais
deve decidir, e de interpelar constantemente os agentes estatais sobre as
justificativas de sua conduta.
Algumas
diretrizes impõem-se, para tanto.
Em primeiro
lugar, é indispensável contar com uma alternativa fiável aos meios de
comunicação de massa. Nesse sentido, deve-se estimular a criação de blogs
autônomos e das chamadas redes sociais na internet. Muito embora até o momento
restritas à minoria rica, é incontestável que elas restabelecem um
relacionamento pessoal e direto entre os homens, agora no plano macrossocial.
Não se deve, aliás, esquecer que a eleição de Barack Obama, nos Estados Unidos,
deveu-se em boa parte à ação dessas redes sociais.
No terreno
próprio das comunicações de massa, duas grandes diretrizes de reforma devem ser
seguidas.
A primeira
delas consiste em superar a carência legislativa.
Nunca é demais
relembrar que a supressão das liberdades fundamentais pode ocorrer, tanto pelo
excesso, quanto pela ausência de leis.
Nos regimes
totalitários ou autoritários, as prescrições normativas são abundantes e
minuciosas, e muitas delas vigoram secretamente, ao arbítrio dos que comandam.
De modo que os cidadãos jamais sabem, ao certo, o que podem fazer sem sofrer
sanções repressivas.
Mas o vácuo
legislativo, tão louvado pelo liberalismo hodierno, provoca a mesma supressão
das liberdades, porque o terreno social se abre então, amplamente, à dominação
sem limites dos ricos e poderosos.
Ora, em nosso
País o setor de comunicação social encontra-se, há vários decênios, largamente
desprovido de leis. Até hoje, permanece em vigor o Código de Telecomunicações
de 1962, cujas disposições já foram em grande parte revogadas, e as que ainda
se encontram formalmente em vigor são descumpridas. É o que ocorre, por
exemplo, com as normas constantes de seus artigos 38, alínea h, e 124, que
fixam em 5% e 25%, respectivamente, o tempo mínimo para a transmissão de
informações e o tempo máximo para a publicidade comercial.
Por outro lado,
posto que promulgada a Constituição há mais de duas décadas, continuam sem
regulamentação quase todas as suas disposições sobre a comunicação social;
notadamente as que estabelecem as diretrizes gerais sobre a programação das
emissões de rádio e televisão, e a proibição do estabelecimento em todo o
setor, direta ou indiretamente, de monopólio ou oligopólio (artigos 220 e 221).
Para completar
esse quadro em branco, o Supremo Tribunal Federal, em lamentável decisão de 30
de abril de 2009, jubilosamente acolhida pelos patrões das grandes empresas do
setor, julgou implicitamente revogada pela Constituição a lei de imprensa de
1967. Somos, assim, um caso raro no mundo, de país que se dá ao luxo de viver
sem lei de imprensa.
Diante dessa
grave indigência legislativa, impõe-se a propositura, perante o Supremo
Tribunal Federal, de uma ação de inconstitucionalidade por omissão,
relativamente às disposições constitucionais pertinentes à comunicação social.
A segunda
diretriz geral a ser seguida para a reformulação do setor de comunicação de
massa em nosso País diz respeito, especificamente, ao rádio e à televisão.
Ambos
utilizam-se, para as suas emissões, de um espaço público, ou seja, em boa
etimologia e melhor doutrina, um espaço pertencente ao povo. Tratando-se de bem
público, comum a todos, escusa lembrar que ele não pode ser apropriado por
ninguém, nem pelo Estado nem pelos particulares. A função do Estado é
simplesmente a de administrar a sua utilização em benefício do povo.
É exatamente
por isso que, tanto aqui como alhures, a prestação do serviço público de
radiodifusão sonora e de sons e imagens depende de autorização, concessão ou
permissão da autoridade administrativa competente (Constituição Federal, art.
21, XII, alínea a).
Acontece que,
entre nós, o decantado oligopólio empresarial que domina o setor atua na
prática, e se considera em teoria, como proprietário desses canais de
comunicação pertencentes ao povo. Chega-se até ao cúmulo do arrendamento de
canais pelo seu concessionário. Ou seja, analogamente ao que ocorre com o
soberano no campo político, aqui o legítimo dono é substituido por um usurpador
que, a todo momento, alardeia seus pretensos direitos adquiridos e denuncia a
censura estatal quando os Poderes Públicos procuram regulamentar o
funcionamento desse serviço público.
A gestão do
espaço público de comunicação deve, por conseguinte, competir a um órgão
igualmente público, isto é, não subordinado a nenhum Poder estatal e muito
menos a particulares. O Conselho de Comunicação Social, criado por força do
art. 224 da Constituição Federal, não preenche tais requisitos. De um lado,
porque foi declarado órgão auxiliar do Congresso Nacional; de outro, porque a
Lei nº 8.389, de 1991, que o regulamentou, dele fez uma entidade solenemente
inútil.
Importa assim
criar, em todas as unidades da federação, um órgão regulador das atividades de
comunicação social, que não seja mera agência estatal nem mandatário do
oligopólio empresarial que domina o setor.
Da mesma forma,
a utilização do espaço público de comunicação há de ser reservado
preferencialmente a entidades públicas, vale repetir, não estatais nem
privadas.
Sugiro, assim,
que se crie, em todas as unidades da federação, sob a forma de fundação
pública, um organismo de rádio e televisão, cujos administradores sejam
designados pelo competente Conselho de Comunicação Social.
Por outro lado,
vale a pena repetir que, se as emissões de rádio e televisão constituem um
serviço público, as empresas privadas somente podem ser admitidas a prestá-lo
mediante regular contrato de concessão, com a observância das exigências
normais, como a licitação prévia (Constituição Federal, art. 175), inclusive
para a renovação do contrato.
Escandalosamente,
porém, não é o que ocorre no Brasil. Sob a pressão dos
grandes empresários do setor, o Congresso Nacional inseriu na Constituição
(artigos 223 e parágrafos) que as concessões de exploração de rádios e
televisões sejam submetidas, em última instância, à decisão do próprio
Congresso (Constituição, artigos 223 e parágrafos), o qual se revelou, nessa
matéria, bem mais flexível que o Poder Executivo. Impõe-se, pois, a revogação
dessas disposições aberrantes do sistema administrativo comum.
Na concessão do
serviço público de comunicação social, preferência deve ser dada às rádios
comunitárias, que têm sofrido toda sorte de preterições e constrangimentos,
inclusive sanções penais, por iniciativa das macroempresas do setor.
É mister, além
disso, suprimir o poder autocrático no seio das empresas privadas de imprensa,
rádio e televisão, em razão do qual os patrões dispõem do privilégio de
difundir suas opiniões pessoais na massa do público sobre todos os assuntos, e
gozam até mesmo da prerrogativa de insultar impunemente seus desafetos! Em tais
empresas, portanto, a partir de certa dimensão, a orientação editorial deveria
competir a um conselho de administração composto, por metade, de representantes
dos jornalistas que nela trabalham.
Tudo isso, contudo,
seria vão, se não se garantisse efetivamente, a todos, o direito fundamental de
expressão nessa área.
Proponho, com
esse objetivo, duas medidas principais.
A primeira
delas consiste na criação, a par do direito tradicional de resposta, destinado
a garantir o respeito à verdade e à honra individual, um direito de defesa de
interesses coletivos ou difusos, a ser exercido por associações ou fundações,
cujos estatutos contenham essa previsão.
A segunda
medida de reforço ao direito fundamental de expressão é a adoção do chamado
direito de antena, já criado nas Constituições de Portugal (art. 40º) e Espanha
(art. 20, alínea 3, in fine). Ele consiste na prerrogativa – a ser reconhecida,
de preferência, a entidades representativas de setores dignos de proteção
especial, como os grupos sociais vulneráveis – da livre utilização do rádio e
da televisão, em tempo e horário fixados pela autoridade administrativa
reguladora. Atualmente, esse direito existe no Brasil tão-só para os partidos
políticos, por ocasião das campanhas eleitorais. Importa estendê-lo,
permanentemente, aos grupos sociais relevantes da nossa sociedade civil.
Conclusão
Como arremate,
permito-me voltar os olhos ao berço do regime democrático, a Atenas do século V
a.C. Segundo o testemunho unânime dos grandes autores da antiguidade clássica,
o traço fundamental da democracia ateniense era a liberdade de palavra,
reconhecida indistintamente a todos os cidadãos (isegoria). Sócrates, por
exemplo, um de seus críticos mais acerbos, queixou-se, no diálogo Protágoras de
Platão, de que nas reuniões da Ekklésia, a assembléia do povo que decidia sobre
as questões mais importantes da pólis, qualquer cidadão – carpinteiro,
ferreiro, sapateiro, comerciante, armador – rico ou pobre, aristocrata ou
plebeu, instruido ou ignorante, tinha o direito de usar da palavra e exprimir
sua opinião. Na visão socrática, essa prerrogativa deveria ser reservada
exclusivamente aos melhores cidadãos (aristoi).
Ao
reinventarmos a democracia nos tempos modernos, o pretexto ridículo da
impossibilidade de se reunir o povo em uma só praça fez com que a liberdade de
expressão passasse a ser garantida, doravante, tão-só aos governantes e
controladores dos meios de comunicação de massa.
Para abolir
essa farsa, não basta, na verdade, criar as instituições adequadas, como sugeri
nesta exposição. Elas são necessárias, mas não suficientes. É preciso
também formar a consciência cívica do povo, segundo o princípio
republicano e o ideal democrático.
Eis a grande
missão pedagógica, destinada a formar uma nova humanidade para um mundo sem
precedentes na História.
* Professor Emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo,
Doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra.