A linguagem do preconceito. Por Bernardo Kucinski
Virou moda dizer
que "Lula não entende das coisas". Ou "confundiu isso com aquilo". É a linguagem
do preconceito, adotada até mesmo por jornalistas ilustres e escritores
consagrados
Por Bernardo
Kucinski
Revista do Brasil
Um dia encontrei
Lula, ainda no Instituto Cidadania, em São Paulo, empolgado com um livro de
Câmara Cascudo sobre os hábitos alimentares dos nordestinos. Lula saboreava cada
prato mencionado, cada fruta, cada ingrediente. Lembrei-me desse episódio ao ler
a coluna recente do João Ubaldo Ribeiro, "De caju em caju", em que ele goza o
presidente por falar do caju, "sem conhecer bem o caju". Dias antes, Lula havia
feito um elogio apaixonado ao caju, no lançamento do Projeto Caju, que procura
valorizar o uso da fruta na dieta do brasileiro.
"É uma pena que o
presidente Lula não seja nordestino, portanto não conheça bem a farta presença
sociocultural do caju naquela remota região do país…", escreveu João Ubaldo.
Alegou que Lula não era nordestino porque tinha vindo ainda pequeno para São
Paulo. E em seguida esparramou citações sobre o caju, para mostrar sua própria
erudição. Estou falando de João Ubaldo porque, além de escritor notável, ele já
foi um grande jornalista.
Outro jornalista
ilustre, o querido Mino Carta, escreveu que Lula "confunde" parlamentarismo com
presidencialismo. "Seria bom", disse Mino, "que alguém se dispusesse a explicar
ao nosso presidente que no parlamentarismo o partido vencedor das eleições
assume a chefia do governo por meio de seu líder…" Essa do Mino me fez lembrar
outra ocasião, no Instituto Cidadania, em que Lula defendeu o
parlamentarismo.
Parlamentarista
convicto, Lula diz que partidos são os instrumentos principais de ação política
numa democracia. Pelo mesmo motivo Lula é a favor da lista partidária única e da
tese de que o mandato pertence ao partido. Em outubro de 2001, o Instituto
Cidadania iniciou uma série de seminários para o Projeto Reforma Política, aos
quais Lula fazia questão de assistir do começo ao fim. Desses seminários
resultou um livro de 18 ensaios, Reforma Política e Cidadania, organizado por
Maria Victória Benevides e Fábio Kerche, prefaciado por Lula e editado pela
Fundação Perseu Abramo.
Clichês e
malandragem
Se pessoas com a formação de
um Mino Carta ou João Ubaldo sucumbiram à linguagem do preconceito, temos mais é
que perdoar as dezenas de jornalistas de menos prestígio que também dizem o
tempo todo que "Lula não sabe nada disso, nada daquilo". Acabou virando o que em
teoria do jornalismo chamamos de "clichê". É muito mais fácil escrever usando um
clichê porque ele sintetiza idéias com as quais o leitor já está familiarizado,
de tanto que foi repetido. O clichê estabelece de imediato uma identidade entre
o que o jornalista quer dizer e o desejo do leitor de compreender. Por isso, o
clichê do preconceito "Lula não entende" realimenta o próprio
preconceito.
Alguns jornalistas
sabem que Lula não é nem um pouco ignorante, mas propagam essa tese por
malandragem política. Nesse caso, pode-se dizer que é uma postura contrária à
ética jornalística, mas não que seja preconceituosa. Aproveitam qualquer
exclamação ou uso de linguagem figurada de Lula para dizer que ele é ignorante.
"Por que Lula não se informa antes de falar?", escreveu Ricardo Noblat em seu
blog, quando Lula disse que o caso da menina presa junto com homens no Pará
"parecia coisa de ficção". Quando Lula disse, até com originalidade, que ainda
faltava à política externa brasileira achar "o ponto G", William Waack escreveu:
"Ficou claro que o presidente brasileiro não sabe o que é o ponto G".
Outra expressão
preconceituosa que pegou é "Lula confunde". A tal ponto que jornalistas passam a
usar essa expressão para fazer seus próprios jogos de palavras. "Lula confunde
agitação com trabalho", escreveu Lucia Hippolito. Empregam o "confunde" para
desqualificar uma posição programática do presidente com a qual não concordam.
"O presidente confunde choque de gestão com aumento de contratações", diz o
consultor José Pastore, fonte habitual da imprensa
conservadora.
Confunde coisa
alguma. Os neoliberais querem reduzir o tamanho do Estado, o presidente quer
aumentar. Quer contratar mais médicos, professores, biólogos para o Ibama. É uma
divergência programática. Carlos Alberto Sardenberg diz que Lula "confundiu" a
Vale com uma estatal. "Trata-a como se fosse a Petrobras, empresa que segundo o
presidente não pode pensar só em lucro, mas em, digamos, ajudar o Brasil." Esse
caso é curioso porque no parágrafo seguinte o próprio Sardenberg pode ser
acusado de confundir as coisas, ao reclamar de a Petrobras contratar a
construção de petroleiros no país, apesar de custar mais. Aqui, também, Lula não
fez confusão: o presidente acha que tanto a Vale quanto a Petrobras têm de
atender interesses nacionais; Sardenberg acha que ambas devem pensar primeiro na
remuneração dos acionistas.
Filosofia da
ignorância
A linguagem do preconceito
contra Lula sofisticou-se a tal ponto que adquiriu novas dimensões, entre elas a
de que Lula teria até problemas de aprendizagem ou de compreensão da realidade.
Ora, justamente por ter tido pouca educação formal, Lula só chegou aonde chegou
por captar rapidamente novos conhecimentos, além de ter memória de elefante e
intuição. Mas, na linguagem do preconceito, "Lula já não consegue mais encadear
frases com alguma conseqüência lógica", como escreveu Paulo Ghiraldelli,
apresentado como filósofo na página de comentários importantes do Estadão. Ou,
como escreveu Rolf Kunz, jornalista especializado em economia e também professor
de filosofia: "Lula não se conforma com o fato de, mesmo sendo presidente, não
entender o que ocorre à sua volta".
Como nasceu a
linguagem do preconceito? As investidas vêm de longe. Mas o predomínio dessa
linguagem na crônica política só se deu depois de Lula ter sido eleito
presidente, e a partir de falas de políticos do PSDB e dos que hoje se
autodenominam Democratas. "O presidente Lula não sabe o que é pacto federativo",
disse Serra, no ano passado. E continuam a falar: "O presidente Lula não sabe
distinguir a ordem das prioridades", escreveu Gilberto de Mello. "O presidente
Lula em cinco anos não aprendeu lições básicas de gestão", escreveu Everardo
Maciel na Gazeta Mercantil.
A tese de que Lula
"confunde" presidencialismo com parlamentarismo foi enunciada primeiro por
Rodrigo Maia, logo depois por César Maia, e só então repetida pelos jornalistas.
Um deles, Daniel Piza, dias depois dessas falas, escreveu que "só mesmo Lula,
que não sabe a diferença entre presidencialismo e parlamentarismo, pode achar
que um governante ter a aprovação da maioria é o mesmo que ser uma democracia no
seu sentido exato".
Preconceito é juízo
de valor que se faz sem conhecer os fatos. Em geral é fruto de uma generalização
ou de um senso comum rebaixado. O preconceito contra Lula tem pelo menos duas
raízes: a visão de classe, de que todo operário é ignorante, e a
supervalorizaçã
tais como o saber popular ou o que advém da experiência ou do exercício da
liderança. Também não se aceita a possibilidade de as pessoas transitarem por
formas diferentes de saber.
A isso tudo se soma
o outro preconceito, o de que Lula não trabalha. Todo jornalista que cobre o
Palácio do Planalto sabe que é mentira, que Lula trabalha de 12 a 14 horas por
dia, mas ele é descrito com freqüência por jornalistas como uma pessoa
indolente.
Não atino com o
sentido dessa mentira, exceto se o objetivo é difamar uma liderança operária, o
que é, convenhamos, uma explicação pobre. Talvez as elites, e com elas os
jornalistas, não consigam aceitar que o presidente, ao estudar um problema com
seus ministros, esteja trabalhando, já que ele é " incapaz de entender" o tal
problema. Ou achem que, ao representar o Estado ou o país, esteja apenas
passeando. Afinal, onde já se viu um operário, além do mais ignorante,
representar um país?
Fontes: João Ubaldo
Ribeiro, O Estado de S. Paulo, 2/9/2007. Blog do Mino Carta, 16/11/2007. Blog do
William Waack, 2/12/2007. Texto de Lúcia Hipólito no UOL, 24/07/2007 José
Pastore, artigo no Estadão, 11/12/2007. Carlos Alberto Sardenberg, "De bronca
com o capital", Estadão, 10/12/2007. Filósofo Paulo Ghiraldelli, Estadão,
29/8/2007. Rolf Kunz, "Lula, o viajante do palanque", Estadão, 29/11/2007. José
Serra, em Folha On Line, 1º/8/2006, em reportagem de Raimundo de Oliveira.
Gilberto de Mello, escritor e membro do Instituto Brasileiro de Filosofia, no
Estadão de 2/8/2007, reproduzido no site do PSDB. Everardo Maciel, na Gazeta
Mercantil de 4/10/2007. Rodrigo Maia, em declaração à Rádio do Moreno,
6/11/2007, 17h20. César Maia em seu blog, 12/11/2007. E Daniel Pizza em texto do
Estadão de 2/12/2007.