A manchete que a imprensa escondeu por Maurício Caleiro
Imagine o seguinte
acontecimento: dois ministros de Estado de um grande país latino-americano – um
deles candidato a presidente nas próximas eleições – viajam a Washington para
um fórum econômico de cúpula que reúne os assessores para Segurança Nacional
dos EUA, Jim Jones, e o para Assuntos Econômicos Internacionais, Michael
Froman, além de 20 representantes de algumas das maiores empresas e grupos
financeiros dos dois países, como Coca-Cola, Motorola, Cargill e Citibank. O
presidente norte-americano Barack Obama decide prestigiar o evento, dele
tomando parte por cerca de meia hora.
À saída, não apenas o ministro-candidato anuncia o "forte apoio" de
Obama à intensificação do comércio entre os dois países e ao combate mútuo ao
protecionismo, mas o próprio presidente dos Estados Unidos, que a princípio não
deveria se pronunciar (na verdade, sequer costuma participar de reuniões desse
tipo), faz questão de dar uma declaração, na qual enfatiza a importância da
relação bilateral entre os dois países.
Desnecessário dizer que, em linguagem diplomática, o "gesto
espontâneo" de Obama tem significado claro: sinaliza a primazia do tal
país latino-americano como parceiro regional. Como a confirmar tal significado,
ato contínuo o influente Council on Foreign Relations divulga nota em que
sugere olhar o tal país latino-americano "como intermediário em questões de
segurança regional", pois ele "está aprendendo a equilibrar
diplomacia comercial e política de modo sem precedentes".
No dia seguinte, obviamente, o assunto domina as manchetes dos grandes jornais
e é explorado à exaustão pelo noticiário televisivo do país latino-americano.
Nas edições imediatamente seguintes, economistas, cientistas políticos e
experts em profusão debatem as implicações, imediatas e a médio prazo, do
encontro de cúpula em Washington, avalizado por ninguém menos do que o
presidente da (ainda) maior potência mundial.
A imprensa descompromissada
Acontece que o país latino-americano em questão é o Brasil, um lugar em que a
imprensa, em sua maioria, tem simplesmente abdicado de seu papel de informar e
questionar, preferindo agir como partido político. Para piorar, liderou a
missão brasileira em Washington a ministra-candidata Dilma Rousseff, contra
quem até fichas policiais falsas foram utilizadas na tentativa de infamá-la.
Portanto, ao invés de manchetes, esquálidos parágrafos; no lugar de debates, um
epifânico silêncio. A se basear na "grande imprensa" nativa, é quase
como se os desdobramentos surpreendentemente positivos do Fórum de CEOs
Brasil-EUA da segunda-feira, 21 de julho, não tivessem ocorrido.
Mas, além da imprensa norte-americana – que publicou dezenas de artigos e
análises sobre o encontro -, boa parte da mídia internacional demonstrou-se
muito mais atenta ao caso, fornecendo até detalhes do evento e estendendo a
cobertura aos encontros de Dilma com o secretário do Tesouro norte-americano,
Tim Geithner, com o assessor econômico de Obama, Larry Summers, e com o
secretário de Comércio, Gary Locke, este ocorrido no encontro entre as Câmaras
de Comércio dos dois países, pela ministra coordenado.
A imprensa latino-americana, em especial, revelou-se muito mais interesse do
que os jornais brasileiros. O DiarioCritico, do México,
publica uma alentada reportagem, com farta informação e direito a foto da
ministra; o Buenos Aires Herald chega
a ser mais específico, assinalando que "os CEOs recomendaram que os EUA
eliminassem suas tarifas para importação do etanol, mudança que beneficiaria o
Brasil, mas que enfrenta grande oposição dos plantadores de milho
norte-americanos". De acordo com a agência de notícias Ansa Latina, um
porta-voz norte-americano teria declarado que "Washington e Brasilia nunca
tiveram uma relação tão `forte´ e que isso se deve à afinidade de opiniões
entre os mandatários".
A declaração de Dilma Rousseff de que ambos países devem trabalhar com
"ênfase especial" em áreas relacionadas a biocombustíveis e
cooperação científica e tecnológica foi destacada em matéria do site Mendonza On Line, que também ouviu o
secretário de Comércio Locke. Ele, por sua vez, ressaltou a
"sociedade" entre os dos países, em particular para incentivar
investimentos privados no Haiti e em várias nações africanas. Até a imprensa de
países que não estão sequer na esfera geopolítica do tema, como França e
Alemanha, deram mais atenção à cúpula do que a imprensa brasileira. O site
informativo francês Autorecrute salientou
na cobertura que "O comércio bilateral entre Estados Unidos e Brasil
aumentou para 63,4 bilhões de dólares em 2008". Pelo jeito, atingimos um
ponto em que, por vezes, devido a interesses essencialmente políticos, a mídia
mundial interessa-se mais por questões brasileiras do que a própria mídia
nativa…
Desinteresse ostensivo
No Brasil, o desinteresse foi ostensivo, Nos jornalões, nenhuma manchete de
capa. Fotos? A única que este observador deve a oportunidade de ver –
autêntica, e não referente ao encontro anterior entre Obama e Dilma, em que a
ministra era parte da entourage de Lula, e que foi utilizada para ilustrar
diversas matérias internacionais – estava, um tanto surpreendentemente, no
portal Yahoo. O Estado de S.Paulo e os menos prestigiados
Diário do Comércio e Correio do Povo ainda produziram uma matéria de
uma lauda cada um, escondidas longe das manchetes.
A cobertura mais ardilosa foi, uma vez mais, da Folha de S.Paulo, que se
valeu de um expediente editorial que se tem tornado recorrente no jornal quando
quer "esconder" uma notícia: utilizar títulos que simplesmente não
permitem ao leitor correlacioná-
Desta vez, a titulagem não dá a mínima margem para que o leitor adivinhe que a
matéria é sobre o evento de comércio binacional: "Petrobras pode assumir
todos os blocos do pré-sal, diz Dilma". O texto do usualmente bem
informado e eclético Sérgio Dávila é um primor de dissimulação e contradições.
Vejamos:
"À tarde, enquanto o grupo se reunia na sala do assessor de Segurança
Nacional obamista, James Jones, o presidente Barack Obama apareceu no local.
Segundo relatos, ele foi simpático, mas protocolar. Perguntou aos empresários
as principais dificuldades nas relações bilaterais. Disse que o país era
parceiro estratégico não só em questões bilaterais mas também em regionais e
globais e ressaltou a intenção de aprofundar a colaboração em biocombustíveis,
na ajuda à África e ao Haiti e no combate à mudança climática."
Relevemos que "assessor de Segurança Nacional obamista" e
"assessor de Segurança Nacional dos EUA" – como a imprensa
internacional se refere ao ocupante do cargo – sugerem coisas e posições
hierárquicas consideravelmente diferentes, e que a duvidosa primeira
denominação não permite, a priori, afirmar que Jones "ocupa uma das posições
mais poderosas no país", como atestou, quando da nomeação de Jones, a Time
Magazine. A denominação oficial do cargo é National Security Adviser, e não
inclui, é claro, nenhuma referência a Obama. Parece-me lícito deduzir que seu
ocupante, embora naturalmente nomeado pelo presidente, serve contratualmente ao
país. O que vocês acham?
Boa vontade analítica
Como mais uma demonstração de boa vontade analítica, participemos também, como
faz o colunista, da brincadeira de fazer de conta que Obama
"apareceu" no local. Afinal, é divertido supor que o presidente dos
EUA gosta de enlouquecer sua entourage e o Serviço Secreto, improvisando seus
atos a todo momento.
Agora, a sério, vamos à pergunta que não quer calar: Obama teria sido
"simpático, mas protocolar"? A descrição da performance do presidente
norte-americano no encontro, perpetuada no próprio texto de Dávila, contradiz a
afirmação que o jornalista faz na abertura do parágrafo.
Senão, vejamos: um dos homens mais poderosos do mundo adentra, alegadamente por
vontade própria, uma reunião de cúpula, enche os empresários de perguntas,
ressalta a intenção de aprofundar colaboração com o Brasil em nada menos do que
quatro áreas estratégicas e faz ainda questão de afirmar (em público, o que a
matéria omite) que o país é "parceiro estratégico não só em questões
bilaterais mas também em regionais e globais" – e tudo isso é ser
protocolar? O que o colunista esperava, que Obama sapecasse uns beijos na
Dilma?
A Folha oferece, ainda, uma sub-retranca que, uma vez mais, repete o truque
da titulagem dissimulatória, dessa vez não permitindo sequer que se deduzisse
qualquer interação com entes diplomáticos brasileiros: "Empresários dos
EUA condenam tarifa ao etanol".
Mesmo na blogosfera a cobertura foi decepcionante, a ponto de Luís Nassif
transformar em post o comentário do internauta Clovis Campos protestando:
"Nenhuma informação em lugar nenhum" [ http://colunistas.
].
Nos 42 comentários que se seguem ao post, nenhum link para blog sobre o tema,
com a exceção óbvia dos para-oficiais (intitulados "os amigos do
presidente Lula" e, falta de imaginação, "os amigos da presidente
Dilma"). No restante da blogosfera, há reproduções de despachos de
agências e das matérias citadas acima, mas se encontram – com o perdão do
trocadilho – virtualmente ausentes textos críticos.
O Blog Por Simas ao menos conseguiu difundir a lista das empresas brasileiras
que tomaram parte do encontro, ausente das reportagens: "Gerdau, Vale,
Embraer, Coteminas, Odebrecht, Votorantim Participações, Sucocítrico Cutrale,
Camargo Côrrea, Stefanini IT Solutions e Banco Safra" [http://porsimas.
].
Ciclo de omissões
É lícito lembrar, ainda, que esse ciclo de omissões ocorreu no meio de uma
semana particularmente pobre de grandes assuntos, na qual, estivesse o
jornalismo brasileiro funcionando em condições normais de temperatura e
pressão, tais fatos diplomático-comercia
dos grandes jornais, com destaque para a tradicional fotografia dos
protagonistas se cumprimentando – afinal, trata-se, no mínimo, de um momento
histórico para o comércio entre os dois países.
Como explicar essa omissão da mídia ante um fato notório por si mesmo e que
fornece tantos elementos para a discussão das relações Brasil/EUA e do
realinhamento geopolítico do país em relação ao continente americano?
Há três hipóteses principais:
1. O fato não é relevante a ponto de merecer a devida atenção de nossa mídia,
ocupada com denúncias mais sérias;
2. Nossa mídia é incompetente, e não foi capaz de avaliar a importância de um
encontro de cúpula entre a nata do empresariado norte-americano e brasileiro
com a alta burocracia dos dois países, nem de apurar que o presidente dos EUA
participaria do encontro e a seu respeito se pronunciaria publicamente,
conferindo-lhe importância diplomática incontestável;
3. Nossa mídia deliberadamente boicotou o evento por motivações políticas,
preferindo omitir de seus leitores informações de extrema relevância para o
futuro do país. Por quê? Por ser este comandado por uma ministra que é a
principal opção eleitoral das forças políticas as quais, como se partido
político fosse, essa mesma mídia tem sistematicamente repelido.
Passado condena grande imprensa
Vamos por eliminação: os caros leitores que têm fresca na memória as
reportagens de capa (e com direito a fotos) dos grandes jornais com Pedro Malan
e Armínio Fraga – de sobretudo, é claro – se reunindo com algum sub do sub do
sub em Washington, que proliferaram durante as presidências de Fernando
Henrique Cardoso, sabem que, devido ao número e à patente das autoridades
envolvidas, o Fórum dos CEOs, vitaminado pela participação do presidente dos
EUA é, comparativamente, muito mais importante. Mesmo porque significa o
estabelecimento das bases para o redesenho das relações comerciais Brasil-EUA e
o aval deste à estratégia de reposicionamento geopolítico do Brasil em relação
ao resto do continente. Portanto, descartemos a hipótese 1.
Sobram, portanto, duas hipóteses, que não oferecem elementos para serem
categoricamante descartadas a priori: a incompetência de nossa mídia ou sua
omissão por razões político-eleitorais. Minha impressão pessoal é que, a
despeito do atraso técnico e dos seguidos episódios de violação da ética
jornalística (que não deixam de ser uma forma particularmente nociva de
incompetência)
ignorar um fato diplomático de primeira grandeza.
Mas deixo aos leitores a tarefa de julgarem por si mesmos, oferecendo, em
contrapartida a tão dilacerante esforço, sábias reflexões do jornalista Perseu
Abramo acerca da omissão na mídia, que ele interpreta como estratégia
primordial dos grandes grupos de imprensa para desinformar e, assim, manipular
o leitor/espectador.
Em trecho citado no blog do de Altamiro Borges, trata-se, segundo Abramo, de
"um deliberado silêncio militante sobre determinados fatos da realidade [http://altamiroborg
]. Esse é um padrão que opera nos antecedentes, nas preliminares da busca da
informação, isto é, no `momento´ das decisões de planejamento da edição,
naquilo que na imprensa geralmente se chama de pauta… O padrão da ocultação é
decisivo e definitivo na manipulação da realidade: tomada a decisão de que um
fato `não é jornalístico´, não há a menor chance de que o leitor tome
conhecimento de sua existência por meio da imprensa. O fato real é eliminado da
realidade, ele não existe".
Se por leniente incompetência ou se por má-fé eleitoreira, o fato é que a
cobertura acanhada e des-hierarquizada do encontro de Dilma e Obama, além de
manter desinformado o público leitor que a mídia tem por obrigação informar, é
indicadora de um estado de coisas e de uma perspectiva futura temerária. Pois,
se para episódios aparentemente menos consequentes envolvendo Dilma Rousseff o
método adotado foi esse – transformar uma possível manchete em um fato menor,
quase um não-fato -, tem-se uma idéia do que pode vir a acontecer quando os
ânimos se acirrarem ao longo do pedregoso caminho que leva às eleições de
outubro do ano que vem.
Artigo publicado originalmente em
: http://observatorio