A Ponte para o Passado e a Nostalgia de João Ubaldo por Marco Gavazza
Não acho que João Ubaldo Ribeiro tenha qualquer outro motivo,
além da nostalgia, para estar tão trágico, dramático, melancólico e agarrado ao
passado quando escreveu o choroso artigo "Adeus Itaparica" publicado
recentemente no jornal A Tarde. A tentativa de ver o município de Itaparica como
um santuário histórico ecológico me parece exagerada, já que existe
muito pouco a preservar tanto alí quanto em toda a ilha. O que há de relevante,
por exemplo, em Tairú?
João Ubaldo desvia daqui e dali, se envolve no emaranhado das
saudades, segue se equilibrando em memórias pessoais até se agarrar ao poste da
preservação cultural e histórica, como se a ilha fosse uma espécie de Galápagos
ou Creta baianas, quando na verdade só preocupa a ele realmente o município de
Itaparica.
João Ubaldo é uma pessoa irrequieta e um escritor singular.
Nasceu em Itaparica, foi criado em Sergipe (há quem creia até hoje que ele seja
sergipano, inclusive os próprios sergipanos) viveu em Salvador enquanto
praticava a publicidade e a docência universitária como subsistência, até que os
ventos do sucesso literário sopraram sobre ele, com a sutil colocação das velas
na posição certa, feita por Jorge Amado.
Com vento pela popa, João navegou de volta a Itaparica onde
se enfurnou num botequim durante o dia, na cama ao cair da noite e diante da
máquina de escrever nas madrugadas, à espera de um novo dia. Escreveu livros
memoráveis como Sargento Getúlio e Setembro Não Tem Sentido. Escreveu coisas
chatas, como O Sorriso do Lagarto. Mudou-se para o Leblon, chamou Fernando
Henrique Cardoso de sociólogo medíocre, escreveu Viva O Povo Brasileiro,
apareceu de cuecas na capa da revista Caras.
João tem o dom da visão irônica, do humor e da sátira. Não
devia ter permitido que a vida lhe tirasse isso aos goles. João é brilhante
quando mordaz, quando irreverente, quando cortante. Quando fala sério, João é
chato. Para mim, Viva O Povo Brasileiro é um livro chato. O Sorriso do Lagarto é
tão chato que nem a mais competente produção de TV conseguiu tornar agradável.
A crônica "Senhor Presidente", em que ele classifica FHC como sociólogo
medíocre, independente de qualquer outra perspectiva, é chata. Vasculhar o
labirinto da economia mundial para identificar o verdadeiro autor do plano Real,
é muito chato. Comparar FHC a ACM foi chato para ambos.
Entre suas antigas e magníficas crônicas nas páginas do
Jornal da Bahia do início de carreira e o fardão, muito de sua magia desapareceu
misteriosamente, neste estranho Triangulo das Bermudas criado por João e formado
por Salvador, Itaparica e Leblon.
Numa das inesquecíveis crônicas no JBa. -olha que lá se vão
mais de 30 anos e eu lembro perfeitamente dela- João já previa o travamento de
Salvador, com um texto primoroso, no qual ele relatava um engarrafamento
definitivo na cidade, gerado por um caminhão quebrado no Américo Simas, uma
batida de um táxi na Paciência, no Rio Vermelho e um terceiro acidente em local
que não me recordo. A partir daí, a crônica torna-se hilariante, pois João
descreve como as pessoas presas no engarrafamento, ao perceber que ele seria
eterno, passam a se comportar. Enquanto uns abandonam os carros e vão embora,
outros passam a morar neles. Criam-se "pontos comerciais" em alguns que começam
a vender desde alimentos e bebidas até roupas, eletrodomésticos etc. Surgem
pequenos "bairros" de carros engarrafados, as pessoas começam a conviver umas
com as outras ali mesmo e Salvador se torna uma cidade sem trânsito, já que os
carros se incorporaram aos imóveis. A crônica termina de forma brilhante,
mostrando, tempos depois, arqueólogos desenterrando aquilo tudo e sem conseguir
entender nada.
Ou seja, com o poder que possui toda mente privilegiada, João
anteviu em décadas o estrangulamento de Salvador. Mas agora ele acha que não
devemos habitar a ilha, distante 12 ou 14 km bem à nossa frente, onde vivem 55
mil pessoas numa área de 148 km2. Manhattan possui 54 km2 de área. Nela estão o
Empire State, o Central Park e estavam as torres do World Trade Center.
Salvador, abarrotada com 3,4 milhões de habitantes, possui 325 km2 de área.
Porque João não protestou quando invadimos o litoral norte com condomínios
fechados, resorts, lojas de materiais de construção, viadutos, pedágios,
passagens de nível, pistas e pontes duplas, passarelas e outras intervenções
consideradas como soluções, ainda que predatórias, para aliviar o crescimento
galopante de Salvador? Bom Despacho e 0 ferry por acaso são ecológicos?
Mas, não me preocupa e nem estou aqui para defender -muito- a
ponte, como também não estou aqui para contestar -demais- o escritor. A ponte
existirá apesar do choro e queiram ou não João Ubaldo Ribeiro e seus amigos
intelectuais. A ponte será feita, embora não agora. No momento ela será apenas
um desenho garota-propaganda em ano de campanha eleitoral, mas é inevitável que
mais dia menos dia ela exista e atravesse a Baía de Todos os Santos, fazendo
Itaparica desafogar Salvador, assim como Niterói desafogou o Rio de Janeiro,
Vila Velha desafogou Vitória e não faltam exemplos Brasil e mundo afora.
Preservar o que houver para ser preservado em Vera Cruz,
Itaparica, Cacha Prego, Ponta de Areia, Mar Grande ou lá o que for, é uma
questão de levantamento histórico, ecológico, ambiental e planejamento.
Seriedade política e gestão rigorosa. Se as empreiteiras vão ganhar dinheiro ou
não, me parece ser o menor dos problemas que Salvador enfrenta. O que não é
mais possível é continuarmos nos amontoando em apartamentos de 60 m2,
construindo em encostas como a Ladeira da Barra ou em "pirambeiras" como a Baixa
do Tubo, disputando centímetro por centímetro um espaço para estacionar. Tudo
isso terá que acabar e Itaparica é uma solução ainda possível de ser
equacionada. Ter essa possibilidade é um privilégio de poucos e ela será
realidade.
Preocupa-me muito mais a intelectualidade que não revela
novos intelectuais e só se comove emocionalmente, sem buscar soluções concretas
para nossos problemas. Preocupa-me a intelectualidade que usa seu poder sobre as
palavras, para emocionar os leitores sem se envolver, sem lhes apresentar
qualquer sugestão, visão alternativa, proposta concreta diante de um crescimento
urbano visível e que bate nas nossas portas e janelas a cada minuto, com todos
os seus problemas, seu sufoco, sua insegurança.
Preocupa-me o pensador que não vai além da chantagem
emocional e do exagero. Assusta-me esta intelectualidade brasileira, que não é
capaz de apresentar um pensamento orientador, de provocar discussões, de formar
opinião. A intelectualidade brasileira que adora posar de vítima. Assusta-me a
quantidade de órfãos de 64. Compositores que só sabiam compor canções de
protesto, autores que só escreviam enquanto torturados, humoristas que sem a
censura perderam a graça.
Tirando um ou outro aqui e ali, todos ficaram calados ou
chatos, muito chatos. Já que decidiram aposentar a sua participação ativa também
como cidadãos, que fiquem em suas cadeiras de balanço. Toda essa postura de
pensador ferido e magoado, além de não contribuir em nada para o povo
brasileiro, é muito chata.