A propina do PMDB na boca do caixa. Por Maria Cristina Fernandes
“Ninguém entendia como eu fazia dinheiro vivo se eu não recebia dinheiro vivo”. Na maior parte de suas arrastadas 15 horas de depoimento no acordo de delação premiada, Lucio Bolonha Funaro usou o tom de quem dita uma carta para os dois procuradores e para o delegado de polícia que o ouviam.
Fala e raciocínio alinharam-se quando tentou explicar por que a alcunha de doleiro, adquirida no submundo das quadrilhas do poder, lhe era indevida.
Doleiro era Toni Messer, herdeiro de um banco falido que montou uma casa de câmbio. Foi ele quem lhe apresentou a tecnologia de fazer dinheiro vivo com boleto de supermercado. Quando o ex-deputado Eduardo Cunha lhe pedia uma bolada de uma hora para outra, era a Toni que Funaro recorria. Os donos de supermercado eram clientes de sua casa de câmbio. Quando a demanda de dinheiro em espécie aparecia, Toni repassava os boletos a Funaro, que os pagava e recebia a mala. A operação rendia uma taxa aos supermercados, emissores dos boletos. Foi assim, na boca do caixa, que Funaro garantiu os acordos de Cunha nas horas derradeiras do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff.
Funaro é um velho conhecido da Polícia Federal e do Ministério Público. E também a melhor prova de que o instrumento da delação é um cobertor curto. Operador do mensalão e dos esquemas desvendados na operação Satiagraha, Funaro já havia sido preso e feito outros acordos de delação antes de ser pego na Lava-jato. O que o distingue na fauna de deliquentes é sua capacidade de recriar veredas financeiras para organizações criminosas na política e no mercado.
A do PMDB precede Lúcio. Mas foi a intimidade do operador com sua mais ardilosa liderança que moldou a atuação do chamado “grupo da Câmara”. Eduardo Cunha ainda estava no PP e era candidato ao primeiro mandato na Câmara, em 2002, quando foi apresentado a Funaro por Albano Reis, deputado estadual que ficou conhecido como o Papai Noel de Quintino, subúrbio do Rio.
No depoimento, Funaro deu nome e sobrenome a seus interesses. Queria saber quem controlaria o Prece, fundo de pensão da Cedae, companhia de água e esgoto do Rio. Pretendia direcionar operações e fazer dinheiro com corretagem e taxa de administração. Estava comissionado por dois executivos para operar com os papéis da Prece. O sobrenome de um deles, Luciano Lewandowski, fez mais barulho mais do que a Rio Bravo, gestora à qual estavam incorporados.
Albano lhe disse que se Rosinha Garotinho ganhasse a eleição, o controle da Cedae seria de Cunha. A intimidade cresceu com o sucesso das operações: “Havia muita confiança entre nós dois. Ele sabia se eu tava comprado ou vendido na bolsa e como estava meu caixa”.
Ao longo dos 15 anos de parceria, a lente de Eduardo Cunha lhe moldou a visão sobre o PMDB, mas Funaro, na condição de operador financeiro da turma, adquiriu seus próprios filtros. Conheceu Michel Temer nos anos 1990, quando ambos frequentavam o clube Alto de Pinheiros, na zona oeste de São Paulo. Temer era um parlamentar com fluidas relações no setor portuário e o operador, um ambicioso executivo do mercado financeiro cujo sobrenome abria portas no PMDB do ex-ministro da Fazenda do governo José Sarney, Dilson Funaro. Transitava no partido muito antes, portanto, de ser apresentado a Cunha. Foi por intermédio do ex-deputado, no entanto, que se torna o principal arrecadador do partido.
Eduardo enciumava Michel e invejava Renan. É assim que, em meio à descrição da propinagem, o presidente Michel Temer surge, cioso da autoridade compartilhada a partir da chegada do parceiro à presidência da Câmara. O cargo não aquietou em Cunha a ânsia em mitigar o poder do dono da Casa ao lado. Do alto de sua esperteza, aparece engabelado por um pau mandado do senador Renan Calheiros, que vendeu o voto no impeachment, mas não entregou.
O ex-ministro Henrique Eduardo Alves, hoje preso em Natal, é quem aparece, jeitoso, a evitar os atritos no grupo, mas foi Funaro quem entrou para lhes garantir o amálgama. As traficâncias viriam do Ministério da Agricultura, dos jabutis nas medidas provisórias e, principalmente, da sigla de seis letras que fez a felicidade dos pemedebistas nos anos do PT no poder.
Quando ouviu falar pela primeira vez do FI-FGTS, criado em 2007 e administrado pela Caixa Econômica Federal, Funaro estava no setor elétrico. Ao ser apresentado à engenharia do fundo, um dinheiro barato (TR mais 3% ao ano), o operador concluiu que tinha oportunidade de fazer mais dinheiro do que com a hidrelétrica que tinha em sociedade com Furnas: “Vi que era um campo bom e dava pra fazer negócio”.
O fundo foi criado no segundo governo Luiz Inácio Lula da Silva, quando o atual ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República, Moreira Franco, ocupava a vice-presidência de Fundos de Governo e Loterias da CEF e participava do comitê gestor do FGTS. Turbinado, inicialmente, para atender a Odebrecht, onde trabalhava um filho de Moreira Franco, o fundo logo se voltaria ao agronegócio.
Foi para o grupo Bertin o primeiro negócio agenciado por Funaro com o fundo, que lhe abriria as portas para a JBS. Joesley Batista queria dinheiro para construir sua fábrica de celulose, a Eldorado, quando um sócio do Bertin lhe apresentou o operador pemedebista. A pretensão exigia que todas as vice-presidências estivessem sintonizadas com a rede de propina. Daí porque Funaro levou um conselheiro do fundo para explicar a Temer sua gênese: “Tratava-se de um mini-BNDES”.
O esquema lastreia inquéritos de toda a cúpula do governo na Lava-Jato. Mais de um ano depois da primeira delação que detalhou seu funcionamento, porém, tanto o presidente da instituição, Gilberto Occhi, quanto quatro de seus executivos cuja indicação Funaro relata ter sido condicionada à cumplicidade com o esquema, ainda permanecem nos seus cargos. A CEF deu início a nove investigações internas com prazo de 60 dias para serem concluídas. Até hoje, as sindicâncias permanecem inconclusas.
O relato de Funaro revela menos dos métodos do operador que da rede na qual atuou. Descreve, em detalhes, a sala em que se reuniu com o advogado José Yunes, ex-assessor de Temer, em seu escritório no Itaim, zona sul de São Paulo. Conversaram amenidades de campanhas políticas e, ao final, o advogado solicitou que a secretária o acompanhasse até o carro, estacionado no prédio do escritório, onde teria sido colocada uma caixa com R$ 1 milhão. Seu peso não deixava dúvidas sobre o conteúdo mas, para todos os efeitos, Yunes nem vira o volume.
Funaro estava em todos os almoços e jantares promovidos para selar acordos entre políticos e grupos empresariais para os quais mais trabalhou, além da JBS, Gol, Hypermarcas e BTG. Num deles, o anfitrião era um prisioneiro. Fundador da Gol, Nenê Constantino foi condenado pela morte de um líder comunitário e, octogenário, obteve prisão domiciliar. Foi nessa condição que ofereceu um almoço em sua casa a Gabriel Chalita, então candidato do PMDB à vice-prefeito de São Paulo, para cuja campanha contribuíra. A doação, ilegal, dada a condição de concessionária pública da Gol, teria como contrapartida um pacote de agrados como a inclusão do setor na desoneração da folha, o direcionamento em licitações e o empenho do seu partido na liberação para a participação estrangeira em 99% do capital das empresas aéreas. A abertura esbarraria no Congresso mas se imporia, ainda que mitigada, pela mudança de estatuto das empresas à qual a CVM não ofereceria resistência.
Não foi o único fracasso da dupla Cunha/Funaro. André Esteves demonstrou interesse em adquirir o Nacional ou o Bamerindus desde que a dupla conseguisse aprovar a limpeza de seus passivos. Esbarraram no Tesouro. Tentaram ainda transformar a dívida da Eldorado com o FI-FGTS numa participação do fundo no capital da empresa, segundo revés de uma parceria plena de sucessos.
Se o ex-deputado era o banco da propina – “pagava e depois virava dono do mandato” – Funaro atuou na linha de frente da prospecção de novos negócios para o grupo, com um pé na política, outro no mercado. Luiz Otávio Índio da Costa, um dos controladores do Cruzeiro do Sul, preso em 2012, era o banqueiro de estimação: “Se eu precisasse de fiança ele me dava, se precisasse de crédito também. Era o banqueiro que usava na emergência”.
Valeu-se do Brasil Plural para saber dos malfeitos do braço de participações acionárias da CEF, o Caixapar, no sistema financeiro, e o destilou: “Não sei por que é sempre o escolhido para assessorar essas operações”. Não citou Henrique Meirelles, mas demorou-se nas elocubrações sobre a criação do Original, banco que foi presidido pelo ministro da Fazenda.
Disse que o banco Matone, que deu origem ao Original, não tinha risco sistêmico, mas foi vendido para a JBS com financiamento do Fundo Garantidor de Crédito sob a justificativa de que seriam feitos investimentos para a plataforma digital. “Se tivesse quebrado no dia do anúncio da privatização da Eletrobras, a bolsa ia subir do mesmo jeito. Mas Joesley era assim. Só fazia negócio pagando propina”.
Coloca-se como o homem que aproximou a Delta, a empreiteira que afundou junto com Sérgio Cabral, de Joesley. Na opção de compra formatada, o dono da Delta abriria mão de 56% das ações da companhia, sendo 5% do total em favor de Funaro. Além da participação acionária, o operador cobrou de Joesley R$ 10 milhões pela formatação do negócio, mas foi engabelado pelo empresário. O episódio enfureceu Funaro, porque Joesley, que mais tarde desistiria da compra, resolveu debitar sua parte nos repasses de campanha acordados com Eduardo Cunha. “Ele [Joesley] comprou a empresa por R$ 1. Com a força política que tinha poderia resolver a situação da empresa e reativar os contratos”. Ali estava o resumo, feito com espantosa naturalidade, de um histórico tráfico de influência que socializa prejuízos e privatiza lucros. O valor de mercado do depoente, nas duas pontas do negócio, sobrevive, com louvor, a sucessivas forças-tarefa.
Artigo publicado no Jornal O Valor