“A relação entre mídia e etnia é poder se enxergar através do vídeo” Por Lindiwe Aguiar
Entrevista com a cineasta e produtora Lindiwe Aguiar sobre o Projeto
Etnomídia
O
Projeto Etnomídia é fruto de uma parceria firmada entre o Núcleo Omi-DùDú e a
SEDES (Secretaria de Desenvolvimento Social e Combate à Pobreza). Com o intuito
de fomentar discussões sobre as relações entre a produção midiática e o
processo de afirmação da identidade racial, o Etnomídia integra o Projeto Didá
Alamojú "Escola da Sabedoria". Em comemoração aos 20 anos de trabalho e ações
da ONG, esse curso visa capacitar jovens afro descendentes, estudantes da Rede
Pública de Salvador, com idade de 16
a 24 anos, em produção de vídeo e apoderamento
tecnológico. Para isso, aos alunos serão oferecidos noções de Web
Designer, técnicas de filmagem, interpretação para vídeo com base
na linguagem teatral, além de debates e seminários.
A
partir da premissa de "resgate e preservação da cultura afro-brasileira", este
será constituído por aulas teóricas e práticas, sendo que ao final do
Projeto, os estudantes irão exibir vídeos experimentais, jornais on line, entre
outros. Para ministrar essa oficina, o Núcleo Omi-DÙDú convidou a cineasta e
produtora Lindiwe Aguiar. Mulher, negra, 29 anos, trabalha nessa área desde
1993 e dirige a Ogunjá Produções. "Não é um curso que pretende apenas discutir
a mídia e, acima de tudo, fazer a mídia. Esse é o principal ponto do
curso. Uma técnica ligada ao auto-conhecimento", destaca.
Por Jaqueline
Barreto
Qual é
a importância para a juventude negra de um projeto como o Etnomídia?
A importância
é inverter o papel. Ao invés de você ligar a televisão e não se vê,
você além de passar a se vê, vai também poder produzir, entrar nesse
campo de produção. E assim, poder nos inserir nessa comunicação que até então,
vem excluindo a população negra. E, quando inclui é sempre associado à
marginalidade, aos estereótipos. Vamos dar o poder de produzir.
Primeiro
entender como funciona uma produção de vídeo, passando pela produção de televisão,
que também é importante. Criar um núcleo de mídia onde a gente possa ter
materiais próprios, com temas próprios, produzir sobre a linguagem dos alunos.
Produzir muitos documentários. E, a partir daí, proporcionar uma perspectiva a
esses meninos que sempre foram associados à marginalidade. Dar a eles a
oportunidade de ter uma profissão. Que até então, era muito relacionada a outro
público. Promover uma nova perspectiva profissional.
Não só de inclusão social, mas, acima de tudo,
de intervenção social. Além de incluir socialmente, ou seja, eu posso produzir
isso que a TV faz e que eu achava que não era possível, eu agora posso fazer
isso do meu jeito, passar minha mensagem. Se eles mostraram o candomblé como
uma religião do diabo, como algo engraçado, de um homem com charuto, agora
o candomblé vai estar de acordo com a nossa realidade, com o
que a gente acredita. Então, é muito mais do que inserir. É principalmente,
mudar o fio condutor. Mudar a linha de trabalho. É permitir uma nova visão aos
nossos temas, aos nossos questionamentos, a nossa cultura. Mas agora,
falando com aqueles que fazem parte disso. Fazendo uma relação, o Filme Cidade
de Deus, por exemplo, fala sobre uma comunidade negra, mas foi um
filme que foi feito por brancos. Um filme feito sobre pobres e que
foi produzido por milionários. Então, a idéia é que essa comunidade
produza os documentários sobre sua própria realidade, porque eles são as
melhores pessoas para dizerem isso.
Como
se dá essa relação entre mídia e etnia?
A partir de
algumas conquistas nós conseguimos mudar um pouco. Na mídia o negro é sempre
associado a alguma coisa ruim. Como disse Edson Gomes "um papel pior ou
um papel menor". Essa relação entre mídia e etnia é poder se
enxergar através do vídeo. O padrão branco europeu vai mudar e vai passar a ser
um padrão negro afro-brasileiro. A gente vai mudar a cara do vídeo. O
repórter não vai ser branco, vai ser negro, o editor não vai ser branco, vai
ser negro. Essa é a relação. É uma relação direta, não tem nenhum atravessador.
Eles vão falar sobre eles mesmos. E isso, representa legitimidade. Só a gente
tem legitimidade para falar de nossa cultura, de nossa arte. E o mais
importante do que isso é que vamos produzir um vídeo com qualidade
técnica, um vídeo com o mesmo nível da televisão. Com respaldo
técnico para a gente colocar na mídia. Aos poucos, quem sabe,
a gente mostra o outro lado.
Não vai vir um
americano para fazer um trabalho sobre o candomblé. São os meninos que conhecem
o candomblé, que estão inseridos nessa realidade. Com certeza, vai ser um
olhar diferente. Pelos simples fato de ser feito por eles. Essa é a
oportunidade. Acho que não existe nada mais legítimo do que a gente poder falar
sobre a gente. Por melhor intenção que outros possam ter, o fato é que a
realidade, a consciência racial e as referências culturais, nós temos
desde a infância. O que nós do Etnomídia pretendemos fazer não é só criar um
vídeo com o nosso olhar. A conseqüência imediata vai ser se conhecer. Aqueles
meninos, por exemplo, sabem que a avó é do candomblé, mas nunca tiveram
interesse em conhecer.
Eles vão ter que puxar pela memória tudo àquilo que a mídia
ajudou a gente a apagar. A gente vai ter que fazer um resgate de memória
utilizando o vídeo como instrumento.
O Etnomídia
vai ajudar no processo de mudança de
mentalidade?
Principalmente
na busca da nossa mentalidade. Porque a mentalidade que esses jovens estão
expostos é a eurocêntrica, com líderes que fazem parte de
outro grupo social. Essa é a oportunidade de a gente se conhecer. Buscar nas
origens, na nossa memória de infância, na nossa família. Minha mãe que ficava
apenas assistindo às novelas, agora vai passar a dar as referências. É
Ela que vai ser a entrevistada. Não vai ser a pessoa branca, o historiador que
fala dos negros. Vai ser minha mãe, minha avó. Elas sabem contar nossa
História. Minha avó veio na condição desumana da escravidão. Só um negro pode
falar da condição desumana da escravidão, um branco nunca colocaria da mesma
forma. É sentir na pele, na consciência e transformar isso na linguagem de
vídeo.
Vai ser uma mídia alternativa a essa
hegemônica, elitista?
Eu espero que
ela não seja nem alternativa um dia. Espero que seja mídia também. Uma mídia
que fale de todos os povos. Cada qual com sua legitimidade. Uma mídia que fale
de todos os povos sem hierarquizar. Que seja feita com o nosso olhar, eles não
fazem, com o olhar deles? Nós vamos fazer com o nosso. Se é uma mídia
alternativa hoje, a gente espera que não seja mais. Até porque tecnicamente vai
ser igual.
É importante,
inclusive, destacar que o nosso trabalho não vai ser panfletário. Nós não vamos
fazer vídeos revoltosos. A gente vai fazer comédia, como eles fazem. Não é na
comédia que eles riem da gente? Não é no drama que a empregada aparece? Vamos
usar vários gêneros narrativos o drama, a o documentário, a animação, a web, ou
seja, os vídeos não vão ser o simples ato de revoltar. A gente pode usar uma
ficção de um menino que vende picolé e fazer uma associação a partir daí.
Vamos dar voz a quem não tem voz. Se eles podem fazer um
super-homem voar, a gente também vai poder. Fazer um menino negro voar, pois os
aparelhos vão ser os mesmos.
Como
ocorre a inserção dos negros nessa mídia hegemônica?
Não é que não existem negros na televisão. Mas
os negros são assistentes de câmera, os cabomem , eletricistas, gerador
de caracteres, eles ficam no trabalho de base. O que aparece na frente
é o jornalista branco. Mas, se esse menino negro com
consciência, entrar lá ele vai fazer imagens diferentes. Ele vai ter um olhar
que não o exclui das imagens. Ele não vai virar a câmera com
determinadas imagens que, normalmente alguns virariam por estarem
contaminados. É uma visibilidade sim, mas uma visibilidade com consciência e
técnica. Não é um curso que pretende apenas discutir a mídia e, acima de tudo,
fazer a mídia. Esse é o principal ponto do curso. Uma técnica ligada ao
auto-conhecimento.
A
gente pode usar o aparato midiático para fazer um processo de resgate de
memória?
Ao processo de
resgate. A gente não pode obrigar esses meninos a terem consciência se eles não
conhecem a História. Quando a gente começa a pesquisar, começa a descobrir as
coisas. Um trabalho que eu fiz com alunos negros de uma determinada
Instituição, era o primeiro trabalho da turma, a gente trabalhou com recortes
de revista. E a música tema era " Mundo Negro" do Ilê Ayê. Eles
encontraram no decorrer da pesquisa, Carmen Costa e tinham que saber quem
foi Carmen Costa. Tinham que saber que elas se pintavam de branca para cantar.
E aí no meu do caminho, eles encontraram Milton Santos e
tinham que descobrir que era um geógrafo. E aí eles começam a ver
que tem negros em várias áreas fazendo os mais diversos papéis.
Aquela imagem,
aquele espelho africano que nos é imposto de negro com fome, de negro na
guerra, ela se inverte. Eles passam a perceber que tem
negro jornalista, tem negro cineasta, tem negro Presidente. Começam a
entender e a aceitar o papel da gente na sociedade. E até a perceber que
aqueles papéis que foram delegados a gente são ficção. Isso não é
realidade. Isso é resultado de um processo histórico. É inevitável
que isso seja discutido e percebido por eles. Seria impossível se fazer um
documentário sem procurar entender um pouco da História. Porque para se fazer
um documentário a gente passa por etapas , no qual a pesquisa e o conhecimento
são fundamentais. É um processo que eles não vão perceber nitidamente. Mas eu
tenho certeza que no decorrer do processo, luzes irão se acender e novas
referências irão aparecer.
É importante a
gente não associar o negro ao carnaval, a baiana de acarajé, a mulher de biquíni.
O negro que é Timbalada vai ter que dar lugar a outros negros que existem aqui
na Bahia. Realmente, vem uma Salvador diferente por aí. Não vai ser essa
Salvador turística, não vai ser a que está sendo vendida para eles, a
folclórica. Vai ser uma Salvador com outras vertentes, com outros olhares
e com outros caminhos.
Vamos
mostrar o que eles não colocam porque não têm interesse. Não é tão
lucrativo como as imagens da Cidade turística, da Cidade do carnaval. Esse
estereótipo do negro maravilhoso, da mulata sensual, a gente vai ter que
derrubar isso. A gente sabe que o negro não é apenas isso. Vamos
ver se vai aparecer com essa Salvador que dizem que é. Será que quando a gente
fizer um documentário no qual a gente fale dos trabalhadores a gente vai
dizer que eles são preguiçosos? Será que esses são os baianos preguiçosos que a
mídia divulga? A Salvador que a gente vai mostrar é a mesma que existe
aqui. Porém, a que fica escondida, aqui não é dita. Salvador vai ser a mesma, o
olhar e o conteúdo é que vão ser outros.
Como
você avalia o mercado de trabalho nessa área aqui em Salvador?
Vídeo se você
souber fazer, você trabalha. Claro que a gente sabe como se processa o
racismo nas Instituições. Ao dominar a tecnologia, ao dominar a mídia, abrem-se
novos campos. E não é só o da TV ou da produtora. Mas também a do bairro,
a de fazer um casamento da rua ou fazer um documentário da escola. É um
campo muito abrangente. Com a auto-estima resgatada, com a semente do
empreendedorismo plantada, esses adolescentes podem trilhar seus caminhos
usando o vídeo. Como eu trilhei. Uma mulher negra, há 15 anos fazendo vídeo.
Imagine o que era uma mulher negra fazendo vídeo. As pessoas olhavam para mim e
se assustavam.
Até hoje
muitas pessoas ficam em dúvida em relação ao meu trabalho. Eu tenho certeza que
aqueles que quiserem continuar atuando na área passando por todas as
dificuldades, como em todas as profissões, vão conseguir. A tecnologia
hoje é poder. A partir do momento que eles dominarem a técnica, será muito
difícil que eles não consigam se inserir nesse mercado de trabalho. Ao dar
oportunidade, a gente vai inserir esses meninos no mercado de trabalho. E a
oportunidade significa capacitação. Eles não vão entrar no mercado de trabalho
por serem negros e sim, por serem bons profissionais. E o objetivo do
Etnomídia é formar bons profissionais.
Link: www.nucleoomiduudu.org.br