A República e seus intocáveis. Por Maria Fernanda Arruda
Os que se apossaram da República, inaugurando uma nova modalidade de golpe de Estado no Brasil, e agora sob o reinando de Michel Temer, reúnem-se em ágapes que vão se repetindo e que se documentam em muitos vídeos e fotos, numa exibição que lembra as misses,iniciando seus reinados efêmeros. São os intocáveis.
O encontro dos Poderes, documentado na foto que abre essas considerações, é resumo enfático afirmativo: o Brasil hoje está nas mãos desses senhores, que se encontram, confabulam, ajustam seus interesses; e se entendem muito bem. A Polícia Federal havia cometido a prisão de policiais legislativos e o Diretor da Polícia do Senado, procedendo a uma operação de busca e apreensão de documentos, vasculhando tudo(no Senado).
“Enquanto esse juiz ou qualquer juiz continuar a usurpar a competência do Supremo Tribunal Federal contra o Legislativo, eu sinceramente não posso chamá-lo no aumentativo”, isso foi o que disse Renan Calheiros, qualificando o juiz autor da proeza como “juizeco”. O Presidente do Senado criticou com muito rigor a ação da Polícia Federal e o Ministro da Justiça.
Seguiu-se a reação dura da ministra Carmen Lúcia, que estava a inaugurar sua incumbência, como Presidente do STF. E assim começou uma briga digna de “moleques de rua”: “cospe aqui” – “tua mãe não é mulher séria” … Calheiros reiterou as suas críticas e Carmen Lúcia não aceitou em seguida o convite para uma reunião, sob a presidência de Michel Temer. Mas, todavia (contudo, outrossim), não foram necessários muitos dias para que as figuras em questão estivessem reunidas, respeitando as regras da civilidade, entre cumprimentos e sorrisos.
Sem dúvida, causa espanto a existência de uma “polícia legislativa”. Qual o seu papel? por que ela existe? para fazer o que? Mas ela existe e a ação de um juiz de 1ª instância, ao determinar a invasão do Senado, é ilegal, irresponsavelmente ilegal. A reação raivosa da ministra Cármen Lúcia não é menos lamentável. Não menos surpreendente e merecedora de registro foi a reação de senadores líderes do DEM, do PPS e do PR, que se negaram a emprestar apoio ao seu presidente, deixando evidente o quanto os parlamentares tremem e temem diante da ação da polícia: um bando de rabos-presos.
Voltemos a foto: comprova que se assinou tacitamente um acordo de paz. Se as feições de Cármen Lúcia não convencem, o carinho de Renan Calheiros para com o Ministro da Justiça, pouco antes qualificado por ele como “chefete de polícia”, é suficiente. Amigos para sempre? De maneira nenhuma! O ministro Edson Fachin já havia encaminhado para o plenário do STF a denuncia apresentada contra Calheiros, já passados quatro anos, denúncia feita com as suas feições de malandro aprendiz pelo Procurador Geral da República (em 2013).
E a presidente Cármen Lúcia, no uso de suas atribuições, determinou que o STF, pelo seu plenário, decida já no dia 4 de Novembro. Qual a motivação? a pura e primária vingança de uma mulher que se sentiu ofendida (obviamente não)? condenar Renan, fazendo-o carta “descartada”? livrá-lo em definitivo e por completo? A decisão caberá a quem? Ao “Capo di tutti i capi”. Ainda sobre a foto: ela estampa as três famiglias, os seus capi … Mas eles obedecem a quem?
Corporativismo
Renan Calheiros é uma figura exclusiva de bastidores. Houvesse algum resquício de Moral naquela concha projetada por Niemeyer, já não estaria lá, desde há muito tempo. Acusado de ter despesas pessoais pagas pela Mendes Junior, referentes aos pagamentos feitos a uma jornalista sua amante e com quem teve uma filha, ele terá adulterado documentos e negou sempre a paternidade, um escândalo que quase lhe custou a perda do mandato, sendo absolvido pelo corporativismo dos companheiros, que o defenderam em “votos secretos”.
Mas teve que renunciar à presidência do Senado, que exercia também àquela época. São onze os inquéritos em que está envolvido, nove deles relacionados ao esquema de corrupção na Petrobrás e mais um ligado à operação Zelotes (fraudes no Carf). Falar sobre Ética no/do Senado Federal? A sua Comissão de Ética já teve como seu presidente o senador Golberto Mestrinho, dono e senhor do tráfico de entorpecentes, cassinos e prostíbulos de Manaus. Mas Renan não será o capo da famiglia do PMDB. Quem poderá ser? Jose Sarney, hoje alquebrado, apontado por denunciantes a serviço do juiz Moro, senhor das terras do Maranhão e senador do Amapá. Uma sujeira de esgoto a céu aberto, ora pois.
Michel Miguel Elias Temer Lulia, presidente do PMDB, biombo que sempre escondeu os verdadeiros senhores da famiglia. Segundo Ciro Gomes, um capacho de Eduardo Cunha (acusação que faz todo sentido), político de pouquíssimos votos, posto onde está por descuido primário de Lula. Não está envolvido nos grandes escândalos,homem pequeno, até seus crimes são pequenos. Já condenado por leviandades e descuidos, ele é um “mão suja”, incapacitado eleitoralmente por oito anos.
Agora, vai sendo envolvido em delações da Odebrecht e sua figura, rejeitada por uma quase unanimidade nacional, vai se fazendo cada vez menor, a cada mentira, a cada erro que comete. Para ele vale um velho ditado popular: “quem puxa aos seus não degenera”. Michel, mal saído da Escola de Direito da São Francisco, foi levado à política pelas mãos de seu mestre Ataliba Nogueira, como auxiliar de gabinete do então Secretário da Educação do governador Adhemar de Barros, ‘o que roubava, mas fazia’. Ao descuido lastimável de Lula e Dilma, Temer respondeu com uma traição de Judas tosco e primário.
Seu Ministério se tornou abrigo de marginais: o que ia sendo posto como braço direito do usurpador, Romero Jucá, apontado como assassino de indígenas e larápio na FUNAI, foi obrigado a deixar o Ministério e retorna agora como líder do Governo no Senado, mesmo depois e reconhecido como o planejador da obstrução ao trabalho do “Lava Jato”. Muitos de seus convidados foram postos de lado por suas implicações com a Justiça. Ninguém lhe fez a indagação óbvia: “diga-me com quem andas, e direi quem és?”.
Geddel Vieira Lima ministro chefe da Secretaria de Governo e responsável pela coordenação política desse governo, tem no seu passado o envolvimento no escândalo dos chamados “Anões do orçamento”, descoberto em 1993, em que parlamentares manipulavam emendas orçamentárias com a criação de entidades sociais fantasmas ou participação de empreiteiras no desvio de verbas. O esquema era comandado pelo deputado baiano José Alves, que ficou conhecido por referir ter ganhado 56 vezes na loteria só em 1993.
Esperança versus medo
Geddel era apoiado político de João Alves e foi responsável pela liberação de várias emendas. Acusado de ter recebido verba de empreiteiras. No momento atual, ganha destaque especial, como defensor da tese de que caixa dois não é crime e defendeu que beneficiários desse mecanismo não podem ser penalizados. O presidente Michel Temer deu posse recentemente a um novo ministro do Turismo, Marx Beltrão, que se licenciou do mandato de deputado federal pelo PMDB de Alagoas.
A condição de réu no Supremo Tribunal Federal por falsidade ideológica não impediu que o peemedebista fosse escolhido para substituir o ex-titular da pasta, Henrique Eduardo Alves, que deixou o cargo após ver seu nome envolvido em novas citações na Operação Lava Jato.
Cármen Lúcia também está na foto histórica. Formada pela Faculdade Mineira de Direto, em 1977, passou também pela Fundação Dom Cabral, mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais, cursou o programa e Doutoramento pela USP, mas sem conclusão, não tendo defendido tese. Seu currículo é inexpressivo, com menos do que se exige de um professor universitário, que necessariamente terá doutoramento e pós-doutoramento. Em 2006, foi indicada pelo presidente Lula da Silva para o cargo de ministra do Supremo Tribunal Federal, tornando-se a segunda mulher a ocupar esta vaga. Logo expressou sua vontade em condenar o PT: “Houve um momento que a maioria de nós brasileiros, acreditou, num mote segundo o qual uma esperança tinha vencido o medo.
Depois deparamos com a Ação Penal 470 e descobrimos que o cinismo tinha vencido aquela esperança. Agora parece se constatar que o escárnio venceu o cinismo. O crime não vencerá a justiça. Aviso aos navegantes dessas águas turvas de corrupção e das iniquidades: Criminosos não passarão a navalha da desfaçatez e da conclusão que imunidade, impunidade e corrupção… ” Uma prova clara de sua tendência, jogando ao chão a imparcialidade que se exige de quem ministra a Justiça.
Alexandre de Moraes é figurinha, mas tem a sua importância. Protegido de Geraldo Alckmin, notável pela violência das ações policiais, já deixou provado seu relacionamento íntimo com a Policia Federal, a Procuradoria da República e a Operação Lava-Jato. Não deve subordinação ao presidente Temer e desrespeita com tranquilidade a Renan Calheiros. É um nome que assumirá proeminência maior, na medida em que se insista na experiência macabra de um Governo ilegítimo, que enfrentará oposição crescente das ruas.
Ele saberá como utilizar com violência a lei “anti-terrorismo”, que foi promulgada pela presidenta Dilma Rousseff, atendendo ao que desejavam os senadores e deputados do PSDB, em vigor desde 17 de março; lei que permitirá que todo e qualquer ato de protesto contra um governo ilegítimo seja qualificável como ato de terrorismo. Alexandre de Moraes, ao aprovar a invasão do Senado Federal, provou que a sua estatura não o impedirá de se envolver em grandes aventuras de violência. Na foto contemplada nesse artigo, ele troca carícias com Renan Calheiros.
Supremo
Os intocáveis contam-se a mais de mil, não podem ser retratados numa tomada única. Há os que já não estão entre os vivos. Eduardo Campos, aquele que foi lastimado por Lula, como “o grande homem que o Brasil perdeu tão cedo”, não escapa ao furor do Procurador Geral da República, para quem ele foi beneficiário de um tenebroso esquema de corrupção: “Fernando Bezerra e Eduardo Henrique Accioly Campos solicitaram e aceitaram promessa, com vontade livre e consciente e unidade de desígnios de vantagens indevidas no total de cerca de R$ 20 milhões cada das empreiteiras”.
E existem aqueles que são feitos intocáveis pelos que podem faze-los assim. Políticos em geral, senadores e deputados em especial, circulam pelos espaços da capital Brasília, falam, declaram, assumem, para isso contando, quanto possam, com a complacência da Justiça. Ao todo, cerca de 150 parlamentares respondem a inquérito ou ação penal no Supremo.
Em fins de 2015, pelos menos dez senadores foram liberados de investigações pelo STF: Acir Gurgacz (PDT-RO), Ângela Portela (PT-RR), Antonio Anastasia (PSDB-MG), Flexa Ribeiro (PSDB-PA), Marta Suplicy (PMDB-SP), Omar Aziz (PSD-AM), Paulo Bauer (PSDB-SC), Randolfe Rodrigues (Rede-AP), Roberto Requião (PMDB-PR) e Telmário Mota (PDT-RR). Nem todos foram absolvidos. Alguns casos, como os dois inquéritos contra Marta, foram arquivados por prescrição devido à idade da ex-petista, que chegou aos 70 anos. Ou seja, o Estado demorou tanto para julgar que perdeu o direito de punir. Descuido?
Neste começo de século, a política de Brasília se tornou pródiga na produção de escândalos. A série parece não ter fim: o comando do Legislativo do Distrito Federal, por exemplo, está afastado há quase dois meses de suas funções, após determinação judicial, por suspeita de envolvimento em um esquema de corrupção.
Os campeões em suspeitas são o atual presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), e o senador Ivo Cassol (PP-RO), condenado a quatro anos e oito meses de prisão pelo Supremo em agosto de 2013. Cassol aguarda análise de seu último recurso para evitar o início do cumprimento da pena imposta pelo STF em agosto de 2013. Outros três senadores são réus no Supremo: Dário Berger (PMDB-SC), Sérgio Petecão (PSD-AC) e Valdir Raupp (PMDB-RO). Desde 2003 Raupp é acusado de liderar um esquema que, segundo a denúncia, desviou R$ 10 milhões do governo de Rondônia para grupos de comunicação em troca de apoio político. O senador é réu em outros dois processos por crimes eleitorais e contra o sistema financeiro nacional.
Membro aposentado
A bancada dos pendurados no Supremo é liderada por sete senadores do PMDB, quatro do PP e outros três do PP. O PSDB tem dois representantes. PR, PSD, PSC, DEM, PCdoB, PSB e PTC, com um nome cada, completam a relação, que ainda tem Delcídio do Amaral (sem partido-MS). Os investigados do Senado representam 18 estados. Alagoas é o único a ter seus três senadores denunciados por crimes: além de Renan e Collor, Benedito de Lira (PP-AL) também é alvo de denúncia da PGR por participação no esquema de corrupção da Petrobras. Rondônia, Acre, Pernambuco e Mato Grosso do Sul têm dois representantes. Amazonas, São Paulo, Paraíba, Piauí, Santa Catarina, Maranhão, Sergipe, Roraima, Paraná, Pará, Rio Grande do Norte e Rio de Janeiro aparecem com um nome cada.
O que está comprovado é que o Congresso Nacional está encabrestado: senadores e deputados dependem do que decidam os manipuladores da Justiça, no caso e especialmente os Ministros do STF, aqueles que, para avaliar, ponderar e julgar, antes de nada mais tratam de ouvir as vozes dos “intocáveis”, ou, mais exatamente dos capi e ainda mais do capo di tutti i capi. Cármen Lúcia e Gilmar Mendes, presidindo respectivamente o STF e o TSE, assumem de forma cada vez mais clara a sua vocação politica, que os identifica com o PSDB, colocando-se a serviço desse partido político. O PT, descuidado ou incoerente, nomeou oito dos onze ministros do STF, perdendo em sequência qualquer possibilidade de diálogo com a “Suprema Corte”.
Prestigiou o Ministério Público e a Polícia Federal, e se tornou vítima de uma perseguição inédita na História. Não se preocupou com a presidência do TSE, que assim está assumida por seu inimigo figadal, Gilmar Mendes. Não atentou para o que se tramava no covil do TCU, posto nas mãos de um egrégio membro aposentado do PMDB.
Cria-se o cenário para a ópera bufa: Gilmar Mendes, o que age, fala, conspira e decide.
O que podemos imaginar? FHC, o amigo de todos os momentos, receberá pela terceira vez a faixa presidencial? Para o término de um mandato que vai se fazendo um coito interrompido ou
para um mandato inteiro? A vaidade antológica de FHC o tornou e poderá novamente faze-lo uma figura dócil e cordata, satisfazendo vontades: os banqueiros do passado, substituídos pelos juízes de agora.
E o juiz de 1ª instância, Sergio Moro? Ahh! Sua cabeça será negociada em casa de câmbio.
Maria Fernanda Arruda é escritora, midiativista e colunista do Correio do Brasil.
Artigo publicado originalmente em http://correiodobrasil.com.br/republica-e-seus-intocaveis/