A revolução dos pobres por Emiliano José
O Bolsa Família é distribuição de renda sem
submissão às leis do mercado, e é condição, portanto, para a
transformação dos
valores sociais e políticos. Por Emiliano José
Encontrei-me
com Giuseppe Cocco no lançamento de um livro em que os autores eram Boaventura
dos Santos e Tarso Genro, além dele próprio. Os três estavam à mesa, e o
encontro se deu no Teatro Vila Velha, velho espaço da resistência e criatividade
cultural de Salvador. Não me lembro a data exata, Tarso Genro ainda era
ministro. Pela primeira vez, ouvi uma abordagem original sobre o Bolsa Família,
esse extraordinário programa executado pelo governo Lula, hoje famoso
mundialmente por suas espantosas conseqüências positivas para os pobres do
Brasil.
Boaventura dos Santos, um dos mais importantes intelectuais do
mundo atualmente, a par de fazer uma análise muito positiva sobre o governo,
arriscou-se a dizer que ele lamentava apenas que houvesse programas de natureza
assistencialista no governo Lula, naturalmente querendo referir-se, entre
outros, ao Bolsa Família. Giuseppe Cocco não contou conversa e não revelou
nenhum temor reverencial diante do monstro sagrado Boaventura dos Santos. Diria
que desmontou os argumentos do intelectual português, subvertendo os termos da
análise. O buraco era mais embaixo. Vou tentar interpretar a sua fala.
E
o faço porque ela foi reavivada no dia 25 de maio, na histórica cidade de
Cachoeira, a 100 quilômetros de Salvador, e histórica porque Cachoeira antecipou
a luta pela independência em junho de 1822. Foi reavivada na conferência feita
por Giuseppe Cocco sob o título As políticas sociais do governo Lula para
algumas centenas de trabalhadores, lideranças religiosas, muitos estudantes e
professores da Universidade Federal do Recôncavo, vindos de Cruz das Almas,
Valença, Conceição do Jacuípe, Santo Amaro, Muritiba, Maragogipe, São Félix,
Santo Antônio de Jesus, além naturalmente de Cachoeira, municípios do Recôncavo
Baiano.
A conferência e o debate foram promovidos pelo Núcleo de
Comunicação e Política, da Universidade Federal da Bahia, que lidero ao lado dos
professores Gilberto Wildberger e João Carlos Salles, ambos da UFBA. Ela integra
um ciclo denominado A política e a vida na esquina do mundo, que já trouxe a
Salvador o jornalista Mino Carta para a conferência O partido político da mídia.
A Universidade Federal do Recôncavo, co-patrocinadora da conferência de Giuseppe
Cocco, tem sacudido a região positivamente, seja do ponto de vista das condições
materiais, seja principalmente da oxigenação do pensamento, do estímulo ao
debate. E a presença de Cocco foi um desses momentos altos de reflexão, trazendo
um pensamento original a toda a região.
Voltemos, então, à fala de
Cocco, e creio que ele, um dos principais discípulos de Antonio Negri, merecia
muito mais destaque em nossa mídia. Mas, nossa mídia é o que é, e a fala dele
vai na contramão de tudo que ela pensa sobre o governo Lula. Ele disse lá, no
lançamento do livro a que me referi no início desse texto, e cá, no dia 25 de
maio, que a política dos pobres dos dois governos Lula desnorteia a oposição
conservadora – ou a mídia conservadora, que é a mesma coisa – e a
extrema-esquerda, e que curiosamente as duas convergem nas críticas à política
social do governo Lula, e particularmente ao Bolsa Família. É estranho, mas
compreensível que direita e extrema-esquerda se encontrem, mas tem sido assim
também no Congresso Nacional.
Antecipo que posso equivocar-me na
interpretação do pensamento dele porque não estou sendo literal. Tento, no
entanto, ser o mais fiel possível. Eu o ouvi agora e antes, em duas ocasiões. Na
contestação a Boaventura, recordo-me, ele surpreendeu a todos ao conferir ao
programa Bolsa Família uma natureza revolucionária. Lá como cá, ele afirma que o
Bolsa Família tem o mérito de não se render à lógica econômica e de se inscrever
positivamente a favor dos pobres, numa conjuntura em que o capital não está mais
limitado a um determinado país ou região e nem se baseia mais na
industrialização como motor do desenvolvimento. O capitalismo de hoje está em
todo lugar e funciona em rede, por esquinas como ele mesmo diz, "juntando as
esquinas e mantendo as suas especificidades – digo isso para jogar um pouco com
o tema desses colóquios ricos que vocês estão fazendo".
O capitalismo
neoliberal, globalizado e organizado em rede, trabalha pela exclusão sistemática
do acesso aos direitos e pela redução dos sistemas de proteção social. Desse
ângulo, é excludente. Isso, no entanto, é apenas um lado das transformações do
capitalismo nessa quadra do mundo. E aí vem outra surpresa da análise dele: esse
novo capitalismo é altamente inclusivo. Mas, anotem, inclusivo no sentido de
incluir todo mundo dentro do processo de exploração, desde algumas centenas de
milhões de chineses até os 200 milhões de brasileiros. Anteriormente, ser
incluído era estar integrado ao capitalismo industrial e ao que a ele se ligava,
era o capitalismo do mundo formal, do emprego formal. O resto, ficava excluído.
O capitalismo contemporâneo funciona de forma diferente, muito
diferente, incluindo todo mundo num mesmo sistema, inclui cada esquina na sua
particularidade, "conectando essas esquinas em rede", como disse em Cachoeira.
Ele usou o exemplo, que pode ser entendido como uma grande metáfora, ou como
expressão dessa nova e estonteante realidade, que é o da telefonia.
Antes, sob o capitalismo industrial ou planejado, era a telefonia fixa,
direito adquirido apenas para quem tinha um emprego. "Se eu tinha uma inserção
na relação salarial era porque eu tinha um emprego, e assim era considerado
cidadão, por isso eu tinha um telefone fixo". Se não tivesse trabalho
assalariado, não tinha o direito do telefone fixo.
O telefone celular,
como expressão das mudanças do capitalismo, como expressão do regime de
acumulação, "cabe no bolso de qualquer esquina, construindo e se constituindo
como base para uma rede". Ele inclui os excluídos enquanto tais.
E de
que modo inclui, com que novas características? O capitalismo contemporâneo
explora não só o nosso tempo de trabalho quando estamos dentro da fábrica ou
submetido a qualquer emprego. Ele explora todo o nosso tempo de vida, exatamente
como no modelo da telefonia celular, que incluiu a todos e que subtraiu a
possibilidade da separação entre o tempo do trabalho e o tempo livre. Não há
mais tempo livre. O novo capitalismo explora a vida de todos o tempo todo, junta
todos num mesmo saco.
"O que é explorado é a nossa própria relação
social, é a nossa própria forma de vida". Ainda permanecendo na metáfora do
celular, ele afirma que, nesse caso, o que é explorado quando se cobra o uso do
telefone celular é o pulso, é o minuto do uso pulso. Mas o que é esse minuto? É
o que decidirmos que seja. "É o que usamos para viver, para trabalhar, para
circular, pra ter afetos, para organizar a vida". Em síntese, o que é explorada
é a nossa vida social, e não a nossa vida individual simplesmente. Vivemos sob
um capitalismo que explora toda nossa vida em sua diversidade, na sua
multiplicidade.
Num capitalismo dessa natureza, as políticas sociais não
podem mais ser vistas como compensação em relação aos problemas de extrema
pobreza, nem de falta do crescimento econômico, mas elas, as políticas sociais
do governo Lula, significam o reconhecimento das dimensões produtivas da vida, o
reconhecimento de que todos são produtivos, mesmo os que não estão empregados
formalmente.
Eu volto agora à contestação que Cocco fez a Boaventura.
Quem disse que o capitalismo pode ensejar o pleno emprego? Quem disse que ainda
vige o capitalismo industrial, com seu sonho de tornar a todos um operário ou
tornar todos empregados em torno da lógica fabril?
O Bolsa Família, ao
reconhecer o capitalismo em rede, ao localizar a multidão de pobres que se
integra a ele, e que não se integrará nos termos formais anteriores, persegue
uma lógica anticapitalista, não se subordina à lógica do mercado, não se atém à
idéia de que o mercado irá absorver todos no emprego formal, por mais
crescimento econômico que o país experimente.
Por isso, estava certo
Lula quando disse que longe de diminuir tinha que aumentar os recursos para o
Bolsa Família. E me lembro também de Patrus Ananias, numa das ocasiões em que
veio à
Bahia, quando disse que não se tratava de pensar na "porta de saída",
como afirmam alguns destacados membros de nossa burguesia, de nossa mídia, de
nossa oposição desnorteada, mas de pensar em abrir mais e mais as portas de
entrada para os pobres.
O Bolsa Família é distribuição de renda sem
submissão às leis do mercado, e é condição, portanto, para a transformação dos
valores sociais e políticos, e também para a transformação da política
econômica, para provocar outra lógica na política econômica.
"É
necessariamente uma política dos pobres pelos pobres que, necessariamente, é a
política da diferença". Por isso, talvez, é que Cocco, numa palestra que fez
pela manhã no mesmo dia 25, no auditório da Reitoria da Universidade Federal da
Bahia, tenha dito que a verdadeira política cultural do governo Lula era o Bolsa
Família que, com a distribuição de renda, reconhece a dimensão produtiva da
vida, transforma o conceito de cidadania e, com isso, o próprio conceito de
cultura "na medida em que a cidadania não é mais, e não será mais, a
conseqüência do mercado, nem da recuperação do processo de industrialização
anterior".
A cidadania será a condição, o ponto de partida para o
desenvolvimento que seja, ao mesmo tempo, outro desenvolvimento, que não precisa
ser mais capitalista, que caminha para a reformulação do próprio conceito de
valor. Como podem ver, é muita provocação num único autor, e que por isso merece
ser lido e estudado.