A tristeza não gosta de mim. Por Franciel Cruz
Há coisa de 15, 20 anos, não me perguntem a data exata pois não uso relógio, o poeta Ferreira Gullar (que Sarney o tenha) disse o seguinte, em uma destas modorrentas palestras nas quais as platitudes desfilam com jeito de verdades inoxidáveis.
Às aspas, maestro.
“Esta história de que o contentamento é superficial e a dor é algo profundo não passa de uma grande bobagem. O sofrimento não é sinônimo de inteligência – e a alegria pode ser, sim, algo maravilhosamente complexo e substantivo”.
Pois bem.
Há cerca de 3 ou 8 anos, já disse pra esquecer este negócio de exatidão, pois relógio serve pra nada, a menina Maya Manzi padecia de uma angústia ancestral, coisa de botar Graciliano no chinelo. O tempo, que nunca suspende seu voo (beijo, Alphonse de Lamartine), estava mais implacável do que nunca. Prazo pra tese é um negócio que não se deve desejar nem mesmo às pessoas mais infames, muito menos às gentis e generosas.
E, com a mente apertada, a coitada já estava naquela de se abraçar com o chibacon do desespero. O desânimo a atormentava tanto que a coitada chegou a pensar até mesmo em jogar tudo no despenhadeiro, na queda para a alto, largar a zorra toda. Minto. A criatura era (e é) tão inconsequentemente obstinada que nunca se entregaria a qualquer desistência. A canadense mais sertaneja que conheço foi lambuzada nos ensinamentos de Corisco e jamais se entregaria. Eu coloquei todos estes percalços em forma de dúvida apenas para tentar dar um tom ainda mais grandiloquentemente dramático. Mas que o plantão era rigoroso, era.
Depois de muito choro e ranger de dentes, um dia ela aparece quase rindo e larga logo. “Franci, não vou mais reclamar de nada, não. Hoje entrei num buzu e vi uma pessoa com tanta dificuldade, mas com luz e alegria tamanhas que entendi que tudo é bobagem. A alegria é superior”.
Este alguém era (e é) Sidnei. E só agora, tanto tempo depois, finalmente, tive coragem de entabular uma conversa com ele num ônibus. E lhe contei esta história de Maya. E disse que ele poderia se considerar praticamente um doutor.
“Rapaz, ganhei meu dia. Que história linda”, respondeu-me com os olhos já rasos d’água, após saber que era um dos responsáveis pela conclusão de um doutorado. E acrescentou, já quase rindo. “Eu sabia que transmitia coisa boa, pois tenho a voz MELODIOSA, mas não que era tão importante assim”.
Quando ele botou a voz na ciranda, aproveitei para tirar uma dúvida que me corroía há séculos.
(Ah, sim. Antes abro este parágrafo para informar que, quando entrei no buzu, Sidnei estava entoando “Oi”, linda canção de Bruno Caliman, gravada agora por Pablo, o mesmo Pablo que atormentou a pobre da Maya na época dos estudos. No Largo 2 de Julho só rolava ele. Vejam que contradição, só a música faz).
– Você gosta mais de Pablo ou Silvano Sales?
Diplomático, tentou se esquivar pela tangente.
“Gosto de música e respeito todos os artistas”.
– Não me enrole, véi. E responda. Pablo ou Silvano?
“Respeito muito Pablo, mas Silvano é outa coisa. Até quando canto uma música de Carlinho Brau, se botar uma cortina a pessoa pensa que é o próprio Silvano quem tá cantano. É o timbre de voz. Se bem que ele tem muito carisma, mas já me disseram que minha voz é melhor do que a dele”.
– Caralho, Sidnei, você nestante estava todo humilde, agora, que é doutor, já se acha melhor do que o Rei Silvano? Que porra é esta?
Então, ele, em tom auto-esculhambativo (tem uma doença que o impede de ficar em pé, apesar de, moralmente, estar sempre de pé para a vida), respondeu, com firmeza e gaiatice. “Acho que vou ser mais cantor do que meu ídolo, mas só quando eu crescer”.
Óbvio que ri do humor ingênuo e cortante, que alguns chamariam de negro. E, meio sem jeito diante de tanta potência na adversidade, perguntei.
– Meu velho, de onde é que vem esta energia brutal?
Então, ele largou o xeque-mate.
“Seguinte. A tristeza não gosta de mim. E quem não gosta de mim eu não dou ousadia”.
Desconcertado, dei razão a Ferreira Gullar e à dupla sertaneja Oswald & Gil: Realmente, crianças, alegria é a prova dos noves.
Motô, olhe o ponto, disgrama, que este peito sertânico num tá preparado pra tanta coisa emocional, não. E nem posso culhudar, dizendo que estas lágrimas aqui são as águas de março fechando o ciclo, pois ainda estamos sob o signo imperial do inconsequente verão.
Franciel Cruz é Jornalista